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MOODY BLUES (HENRIQUE LEAL)

Moody Blues
Por: Henrique Leal (This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.) em Sábado, Agosto 13, 2016 - 21:42

 

13 ago. / 2016 - Noites de cetim branco que nunca chegam ao fim, era o primeiro verso de uma cantiga dos meus tempos de rapaz. Grandes bailações nos aqueciam os pés e a alma à boleia de músicas como aquela. A rapaziada costumava filosofar que era música para constituir família. Parece que ainda sinto as emoções brancas daquelas tardes vermelhas a tingirem-me os sentidos.

Foi num desses devaneios que me cruzei com a Celisa. Maneirinha mas esbelta, prudente mas com os olhos brilhantes mais mortíferos que até hoje me mantiveram à distância. É uma forma de dizer. Depois dos primeiros embates atrevidotes – era sempre bem vinda alguma coragem e doseada comiseração para lamber as feridas se as houvesse - o gelo tendia a derreter e, galã emproadito e perfumado, deixava o resto por conta do encanto natural da juventude, mercê em que a mãe natureza costuma ser generosa.

Era uma tarde de Fevereiro, daquelas tardes assim-assim, em que copiosas bátegas de chuva alternavam com bagos de sol, ora tímido e quase enevoado, ora brilhante e garboso, com ganas de nos obrigar a semicerrar os olhos. Havia baile na sede do rancho, ali no carunchoso palácio Mogo, uma daquelas matinés indeléveis em que as mamãs acompanhavam as filhotas não fosse aparecer por lá algum aldrúbio gabiru, mestre de manigâncias por modos de indrominar as cachopas.

O Quinzé era sempre dos primeiros a chegar mas não entrava. Ficava por ali, como sentinela na entrada, a garantir um controle avisado sobre as saias que desfilavam. Havia cumplicidade e sentimento de partilha entre os marialvas. Hoje estás com sorte, já entrou a sicrana, aguenta aí mais um bocado que a beltrana ainda não apareceu. Neste jogo de acertos e desencontros, falava-se da bola e perspetivava-se o futuro. Se o Benfica era quase sempre consensual, a guerra do ultramar já o não era tanto. Era assim como uma espécie de calamidade que, concordássemos ou não, tínhamos de gramar.

Naquela tarde de domingo, Celisa foi das últimas a aportar. Notava-se que pertencia à família do rancho, não apenas pela cordialidade com que era tratada pela nomenclatura da casa, mas também pelo olhar embevecido com que as outras mães a regalavam. Mal a música disparou era um ver se te avias, cada um dos garbosos galãs a estugar o passo para catrapiscar um par. Normalmente não nos atrevíamos a cruzar a sala sem uma sinalética prévia, a evitar, não apenas o passo em falso mas, sobretudo, a vergonhaça de afinfar uma tampa. Troquei duas pestanadas com a Celisa e a ninfa, talvez para baralhar e voltar a dar, assentiu no mesmo dialeto.

A série de três voltas antes do podem descansar não foi muito profícua e o encosto soube-me a pouco. E, antes que conseguisse investir no carrocel seguinte, já o Ventolas piscara o olho à minha deusa, ameaçando assim as minhas probabilidades de uma matiné à maneira. Fiquei-lhe com um pó que nem vos conto. O que valeu foi o bar onde havia sempre uma arca frigorífica carregada de minis. Sempre íamos afogando as mágoas e retemperando forças para novas investidas.

O Ventolas deve ter-lhe ajeitado bem o ouvido, garantindo nova incursão, porque, ao terminar a série, repeti o convite à Celisa e dei comigo a digerir uma tampa. O valente safado! Não perdes pela demora. Fui dançar com a Cristina, uma vizinha descoroçoada por um namoro desfeito no ultramar e que tendia a ficar para tia. Aguentei bem a refrega e, de cada vez que passava pela Celisa, fazia-lhe olhinhos de carneiro mal morto e procurava descortinar raízes de insucesso para o meu rival. Numa dessas reviravoltas, às voltas com uma valsa mal amanhada, desenroscou-se-me o passo e, inadvertidamente, encostei na anca da minha eleita. Pedi desculpa e arrisquei trocar de novo a tal pestanada. Abençoado calor e bendita aselhice para valsar. A moça assentiu e, daí em diante, o Ventolas deixou esfumar todas as hipóteses. Mais tarde tentou redimir-se garantindo que foi apenas aquecer o forno para eu cozer o pão.

Gostei de dançar com a Celisa. E não, não era pelo empernanço que pernas e boas havia ali muitas. A Celisa era especial, era assim a modos que dialética, recatada e atrevida, perspicaz e ousada mas também calma e quase tímida, era loquaz sem se afundar em lugares comuns. E tinha uns olhos…

Na calor da refrega, foi boa a tarde e excelente a conversa. E, dali em diante, tantas foram as vezes que bailámos naquela sala do rancho, ali mesmo na parte velha da vila, quase resvés com o castelo. A modéstia aconselha o recato mas não consigo esquecer-me que, depois daquela tarde, não foram necessárias mais pestanadas. Quando eu chegava ela despachava o par do momento, quando ela entrava já me encontrava à sua espera. Não, não nos apaixonámos mas passámos momentos fantásticos. Aliás, ainda hoje ouso interrogar-me porque é que nunca cedemos aos encantos da carne, tal era a cumplicidade em tudo o mais. Ficámos sempre bons amigos.

No derivar das galáxias, a vida transportou-nos a encruzilhadas desconcêntricas e deixei de ver a Celisa. No ocaso do último outono, de chuvas murchas e frio a ameaçar a ossatura, convidaram-me para um funeral. Eu sei que é ousado dizer assim mas, foi mesmo um convite. O Quinzé, de quem nunca perdera de todo o azimute, topou-me casualmente na fila da caixa de um hipermercado e, constrangido, lá me foi soltando novidades como aquela de ir, dali a minutos, acompanhar à morada final um amigo que partira. Anda daí, já te conto quem era. E era o Luís Capelo, companheiro de muitas luas da Celisa com quem casara há três décadas e pai dos seus dois filhotes.

Lugares comuns à parte, só aqui é que vamos encontrando os amigos, é aqui e nos casamentos, blá, blá, blá, e dei de caras com a Celisa. Magra, grisalha e… encantadora. Minha querida amiga, minha parceira das tardes cálidas das matinés do rancho. Ainda hoje desdobro o desconforto de não descortinar o que senti. Alegria, tristeza, encanto, desencanto, e também desconheço se ela gostou de me ver, se guardou as mesmas doces recordações, se me reconheceu sequer, que isto de o tempo passar por nós não é o mesmo de nós passarmos pelo tempo…

Henrique Leal - http://www.entroncamentoonline.pt/portal/cronica/moody-blues

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