SAMUEL RAWET: O SOLITÁRIO CAMINHANTE DO PLANALTO (1976)
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— Tenho hoje uma ideia confusa e simplória das relações entre escritor, editor, livreiro e leitor. Acho tudo muito simples, ou muito complexo, o que vem a dar na mesma. Não tenho o hábito de cultivar paradoxos. O acaso e a raiva, me fizeram viver uma experiência fabulosa de autor, editor, revisor, diagramador,c apista, distribuidor e cobrador. Não acho que o escritor seja um profissional no sentido escrito do termo, e não acho também que se possa obrigar alguém a publicar qualquer coisa. Mas acho que as editoras deveriam editar permanentemente os autores nacionais mesmo com prejuízo. São eles que em média traduzem os sucessos internacionais, e criam o clima necessário para vender qualquer "cobra" estrangeiro — Samuel Rawet in O Globo, 30 jul. / 1972
O solitário caminhante do Planalto
(Esdras do Nascimento*)
Não adoto nenhuma fórmula. Quando o miolo é personagem, parto do personagem. Quando é incidente, parto do incidente.
Em 1969, a professora Lúcia Helena, da Faculdade de Letras da Universidade do Estado da Guanabara, ganhou o prêmio Esso de Literatura com ensaio intitulado Rawet Em Questão.
Um ano antes, um artigo publicado no suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, Urbano Tavares Rodrigues colocava Samuel Rawet ao lado de Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar e Alejo Carpentier, e considerava Os Sete Sonhos como “uma das grandes obras da literatura contemporânea”.
Com esse livro, Samuel Rawet conquistou o Prêmio Guimarães Rosa, no concurso de contos instituído pelo Governo do Estado do Paraná. Comentando-o, escreveu Urbano Tavares Rodrigues:
“A extraordinária novela do livro, aquela que podemos considerar verdadeira obra-prima, é a Crônica de um vagabundo, com a extensão de um pequeno romance. Nela temos como figura central o outsider, emigrado da vida quotidiana normal, homem sem amanhã, cujo hoje escorre numa torrente de sensações, entre os dejetos do passado e o zero de um futuro que ele resolveu anular. Esse anti-herói, que gasta os últimos dinheiros, vende o próprio relógio, deixa-se vigarizar com irônica indiferença, mas luta pela vida, ante o brilho de uma faca, na noite dos instintos primitivos; que, pisando a fita incolor do vago, do impreciso, na margem dos sentimentos indefinidos, deambula por uma cidade concreta, onde lhe sucedem coisas extraordinárias, como ser pago por um desconhecido para dar banho a uma velha quase paralítica, ou ser abordado por um jovem e triste sodomita, a cujas instâncias não cede, mas de quem se compadece e com quem confraterniza; dar todo o seu dinheiro (mas sem piedade, sem descortinar sequer a que móbil profundo obedece) a uma prostituta envelhecida – esse anti-herói, novo Ulisses de um pesadelo quase paranóico, faz o périplo da cidade grande dos noturnos temores, dos gritos que ecoam noutros gritos, cidade onde todas as vozes se fundem num só rumor indistinto. O pitoresco convizinha com o mistério profundo, com o horror e com o lirismo, nestas páginas apaixonadamente geradas”.
Um homem silencioso
Quase como o herói de sua novela, Rawet é um homem calado, arredio, de poucos amigos. Certa vez recusou-se a entrar em contacto com uma aluna de cursos de pós-graduação que estava preparando tese de mestrado sobre sua obra: “Quem está escrevendo tese é ela. Nada tenho a ver com isso”.
Morando em Brasília – cidade que ajudou a construir, como engenheiro – vai ao Rio, de vez em quando, telefona rapidamente a três ou quatro pessoas (uma delas invariavelmente é a escritora Nélida Piñon) e ocupa suas férias cariocas em longas caminhadas, que começam em qualquer ponto da cidade e terminam sempre num boteco do Largo do Machado, com paradas num ou noutro bar, para cafezinhos solitários. Às vezes nem sai do hotel do Flamengo onde se hospeda. Fica no hall, olhando o movimento, vai fazer refeições na lanchonete perto do cinema Paissandu, arruma outra vez a mala e retorna a Brasília.
Antigamente, Rawet bebia muito, mas desde que lhe serviram álcool iodado, em vez de uísque, numa cidade satélite de Brasília, e ele quase morreu, nunca mais tocou em bebida. Para compensar, talvez, consome agora pelo menos dois litros de café por dia. Tem sempre em casa uma garrafa térmica com água quente e faz cafezinho de cinco em cinco minutos. Deve fumar cerca de três maços de cigarro por dia.Anda vários quilômetros todas as noites, sendo comum vê-lo caminhando sozinho, de madrugada, pelos gramados desertos das superquadras de Brasília. Conhece todos os bares, inferninhos e botecos da cidade. E vai diariamente ao sofisticado Hotel Nacional, onde freqüenta a sauna e faz massagem com um japonês. Adquiriu esse hábito por necessidade, desde que sofreu acidente, na estrada de Alexânia, em Goiás, quando viajava de automóvel com o escritor Almeida Fischer. Passou muito tempo usando colete de gesso e nunca mais deixou de sentir, na coluna e nas costelas, dores que só passam com as massagens do japonês do Hotel Nacional.
Zacarias
Abama, - segundo trabalho de Rawet, em ordem de publicação – começa com um homem de bicicleta acendendo um a um os letreiros luminosos das lojas de uma rua e termina com o mesmo homem de bicicleta apagando-os ao amanhecer.
A novela decorre entre esses dois momentos e relata as andanças noturnas do personagem Zacarias, pelas vielas, becos e bairros de uma grande cidade.
“Passamos a vida inteira à espera de um homem que nos diga algo de fundamental, e quando percebemos vagamente que talvez ele já nos tenha procurado, não podemos deixar de concluir com amargura que nós não o soubemos ouvir, e muito menos identificar. Esperávamos sem estar preparados para a espera”.
A geração dos duplos
“Vivia-se um sonho para afastar o terror. E numa rápida seqüência "Abama" se multiplicou e para cada unidade de sua forma um duplo surgia e esse duplo gerava outros dois, e cada um deles projetava um lamento em paisagem diversa. Desertos, dunas, sóis, vilarejos,casebres, palácios; palmeiras, carvalhos, tamareiras; lágrimas, choro, pranto. Reunir tudo isso, extrair o sumo, deixar que a sucessiva marca de humilhações estiole o gesto mais espontâneo, e aceitar o que sobra como irremediável. Irremediável como as acusações que entre si faziam os vários duplos gerados pelo duplo Abama, até que o desgaste fez com que desaparecessem. E de novo a sós, Zacarias e Abama, num clima de contornos definidos, em que não se distinguia bem vida e sombra de vida. Havia uma pergunta entre eles. Por que transformar em palavreado complexo o que era simples e não precisava de definição?”.
O contrato rasgado
Um crítico carioca apontou o ano de 1956 como divisor de águas da literatura brasileira, por causa da publicação de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, e Contos do imigrante, de Samuel Rawet. Haveria assim um antes e um depois para o romance e o conto no Brasil.
Entusiasmado com as referências ouvidas, um editor do Rio pediu a Rawet um livro de contos. Foi assinado o contrato, o clima era de cordialidade. Mas o autor de Os sete sonhos ficou sabendo que o editor demitira um dos seus funcionários graduados por que ele tivera a audácia de programar o pagamento de direitos autorais dos livros publicados pela empresa, como ato de rotina. Rawet procurou o editor, pediu o contrato e o rasgou, sem comentários. Vendeu a seguir um apartamento de três quartos que possuía em Brasília e gastou o dinheiro reeditando seus livros esgotados e publicando alguns trabalhos novos que não haviam interessado aos editores, por serem considerados anti-comerciais, devido ao reduzido número de páginas que se compunham. Foi assim que chegaram às livrarias "Consciência e valor", "Alienação e realidade", "Homossexualismo (sexualidade e valor)", "Contos do imigrante" (2.ª edição), "Viagens de Ahasverus" e "Eu-tu-ele".
Infância e adolescência
Samuel Rawett nasceu a 23 de julho de 1929, em Klimotow, uma aldeia perto de Varsóvia. Veio para o Brasil em 1936. Aprendeu o português na rua. Até os vinte e poucos anos morou na Leopoldina, em Ramos e Olaria, no Rio: “Sou fundamentalmente suburbano. O subúrbio está muito ligado a mim”, Suas leituras foram desordenadas. Ia escolhendo e apanhando livros, recuando e avançando. Ficou muito marcado pelos escritores russos, que começou a ler em traduções: Gorki, Dostoiévsqui, por aí afora, mas principalmente Gorki. Na época se apaixonou também pelos romancistas que chama de “os gigantes do Nordeste”. Teve crises, andou deixando de escrever por causa deles. Achava que nada tinha a dizer, que diante de Graciliano, Zé Lins e outros, o melhor que podia fazer era ficar calado. Só mais tarde é que foi descobrir outros autores cujos trabalhos o estimularam e ajudaram, como Cornélio Pena e Lima Barreto, por exemplo. Começou a escrever contos para os suplementos literários dos jornais do Rio, concluiu curso de engenharia e passou a viver o drama que persiste talvez até hoje: o de sobreviver na profissão de calculista e de seguir a vocação de contista.
O escritor
Samuel Rawet, neste começo de 1976, mora num pequeno apartamento na Asa Sul de Brasília. Da janela se vêem extensos gramados, largas pistas e raros automóveis. No terreno de 160 mil metros quadrados onde se situa o seu edifício, ao lado de outros dez prédios, quase nunca se vê uma pessoa caminhando. Os automóveis entram e saem das garagens, com as luzes acesas, em baixa velocidade, quase em silêncio. Ao atingirem a pista que separa as quadras, chegam rapidamente a 100 km/h e desaparecem quase misteriosamente na distância. É como se tudo se passasse em Alphaville.
— Costuma reler seus livros publicados? – pergunto a Rawet.
Ele se levanta, vai À janela, abre um pouco mais os vidros, tira e bota os óculos:
— Não. Às vezes folheio algumas páginas, levado por uma lembrança, pela necessidade de encontrar algum elemento particular de expressão.
— Já pensou em escrever um romance? – Não. Além do conto, só um tipo particular de novela me interessa: novela curta com estrutura de poema sinfônico (Abama, etc). – Por que seus contos cada vez mais se reduzem de tamanho? Você acha que o leitor de hoje não dispõe de muito tempo para ler? É por isso? – Não sei. Necessidade de não estagnar numa forma rígida.
Quanto ao tempo de leitura do leitor, isto é ilusão. Os calhamaços de alguma superprodução cinematográfica continuam sendo devorados.
Leitor e autor
— Em que tipo de leitor você pensa quando escreve?
Samuel Rawet bebe nova xícara de café, acende outro cigarro, sem perceber que o anterior, ainda pela metade, está queimando no cinzeiro, e responde incisivo:
— Penso no leitor que tenha algum interesse em ler exatamente o que estou escrevendo.
— Já pensou em escrever um livro no qual você aparecesse como personagem, com seu próprio nome?
— O autor é sempre personagem, dentro e fora de seus livros. Não, nunca pensei. No final de “Viagens de Ahasverus” meu nome aparece como uma das metamorfoses da personagem, exatamente o contrário.
— A leitura de jornais e revistas serviu alguma vez como ponto de partida para a elaboração de seus contos?
— Não como ponto de partida, mas como elemento de fusão de episódios.
— Gosto de conviver, mas não em formas organizadas (associação, etc.). Gosto do relacionamento concreto, do relacionamento em que há alguma coisa a dizer, ou a ouvir. Quanto ao resto, sinto uma necessidade profunda de solidão.
— Qual é o seu processo de criação? Você parte de um personagem, um incidente, um tema definido, um vago estado de espírito? Planeja o que vai escrever, ou só a partir do momento em que começa adquire consciência do trabalho em andamento?
— Não adoto nenhuma fórmula. Quando o miolo é personagem, parto do personagem; quando é incidente, parto do incidente, etc.
As religiões
— O fenômeno da religiosidade está ocorrendo intensamente nos dias atuais. O que pensa disso? Você é um homem religioso?
— A imbecilidade do espírito científico encarado como totalidade só poderia acarretar uma exacerbação da religiosidade no péssimo sentido. A organização rígida das religiões oficiais tem muito de científico. Daí a confusão. Não, não sou religioso nesse sentido. Medito sempre sobre um trabalho de Martim Buber: "Eclipse de Deus".
O conselho e os hábitos
— Que conselho daria a um jovem interessado em se tornar escritor?
— Não acredito em jovem interessado em se tornar escritor. Acredito em escritor jovem. Este não precisa de conselho. Aprenderá ou não a dar murro em ponta de faca.
— Quais são os seus hábitos de trabalho?
— Habitualmente datilografo, em pé, numa Hermes 3000 apoiado numa prancheta.
— Até onde vai o seu interesse pela teoria literária?
— Até o ponto em que pode me servir de estímulo para a criação.
Ensino da literatura
— O que pensa do ensino da literatura no Brasil?
— Tenho algumas idéias particulares no momento. Não acredito que o ensino da literatura como vem sendo feito possa despertar o gosto pela literatura, única finalidade, me parece. Isso poderia ser conseguido com alguma coisa parecida com as escolinhas de arte. As crianças não se transformam necessariamente em artistas, mas passam a encarar a criação artística de maneira diferente, bem mais aberta. Embora pareça estranho, o espírito modernista venceu em todas as áreas, menos na literatura. Atribuo isso a ensino. Vivemos dentro da arquitetura moderna, por mais medíocre que seja, dispomos de móveis produto de muita vanguarda, utilizamos lâmpadas que derivam do que há de mais abstrato em escultura, mas ainda resistimos ao poema moderno.
Os projetos e a censura
— Quais são os seus atuais planos literários?
— Pretendia voltar ao teatro, mas a proibição pela censura da minha peça "Farsa da Pesca do Pirarucu e da Caçada do Jacu" me fez retomar outros trabalhos. "Que os mortos enterrem seus mortos", contos; "Angústia e conhecimento", ensaio. Gostaria ainda de escrever um ensaio pequeno sobre pornografia e obscenidade.
*Ficção – Histórias para o prazer da Leitura. Mar. / 1976 - Nº.3