Artigos de Hunter Thompson retratam fim do sonho americano

Gonzo Journalism versus New Journalism
(Cardoso - planeta.terra.com.br)

A Captação Participativa

As técnicas de captação utilizadas para a confecção da reportagem também vão influenciar na determinação do seu estilo. Enquanto o New Journalism vale-se de uma coleta de dados ampla e metódica, o Gonzo prima pela espontaneidade e urgência. Segundo Hunter Thompson, uma reportagem gonzo deve ser escrita à medida que a ação acontece, sem revisão ou edição. Em entrevista concedida na época da publicação de The Kentucky Derby is decadent and depraved, Hunter fala sobre como estava deprimido em uma banheira de um hotel em Nova York por não dispor de tempo suficiente para digitar o artigo rascunhado em um caderno espiral antes do fechamento:

Eu lembro de estar deitado numa banheira no Royalton Hotel, pensando 'Bom, estou acabado, agora. Eu perdi o prazo. Eu não consigo fazer nada. Minha vida profissional está acabada'. Foi aí que eu comecei a arrancar as páginas do caderno. Eu havia descoberto recentemente o fax. Foi como mágica para mim. O artigo sobre o Derby foi para as prensas direto das páginas do meu caderno. (Thompson, 1990, p.120)

Em "Fear and loathing in Las Vegas", o nono capítulo, "Breakdown on Paradise Blvd"., é a transcrição completa e sem edição de uma das muitas fitas que Thompson enviou à Rolling Stone para verificação, uma vez que o manuscrito original estava tão "fragmentado" (Thompson, 1971, p.161) que era impossível compreendê-lo. O livro, ainda que seja um de seus preferidos, é freqüentemente citado pelo próprio autor como um experimento fracassado em Gonzo Journalism, uma vez que "sua idéia era, a princípio, preencher um caderno grosso com relatos dos fatos conforme eles fossem acontecendo durante sua viagem a Las Vegas e publicar o resultado, suas notas, sem edição" (Giannetti, 2002, p.30).

Esta técnica caótica de captação de dados aparece bem representada graficamente nas duas adaptações para o cinema das obras de Thompson. Em Where the buffalo roam (1980), cujo roteiro foi livremente adaptado de diversos artigos publicados na Rolling Stone é possível ver, em diversas cenas, Thompson narrando os eventos ou mesmo emitindo opiniões sobre eles enquanto segura um gravador de bolso próximo à boca.

O mesmo acontece em Fear and loathing in Las Vegas (1998) onde Thompson interpretado por Johnny Depp aparece freqüentemente portando um grande gravador de rolo colado ao corpo. No livro homônimo, logo no segundo capítulo, Thompson aparece listando três itens essenciais para a sua viagem até Las Vegas, onde cobriria a Mint 400 - um carro, drogas e um gravador. "Conseguir as drogas não foi nenhum problema mas o carro e o gravador não eram coisas fáceis de se achar às 6:30 da tarde de uma sexta-feira em Hollywood." (Thompson, 1971, p.12)

Ainda que seja de fato praticada por Thompson em muitas ocasiões, esta técnica de não-edição não deve ser levada necessariamente ao pé da letra. Em muitas passagens nos filmes supracitados, Thompson aparece datilografando em uma máquina de escrever em hotéis ou em sua casa na Owl Farm, o que nos leva a crer que quando Thompson fala da não-revisão de seus artigos, na verdade está se referindo à espontaneidade que deve fazer parte do Gonzo Journalism, o que remete às técnicas de redação utilizadas por beatniks como Jack Kerouac. Em "O livro dos sonhos", Jack Kerouac descreve esta técnica logo na introdução:

É bom que o leitor saiba que este livro não passa de uma compilação de sonhos anotados às pressas, à medida que ia despertando - e estão todos descritos da maneira mais espontânea e fluida, tal como sucede durante o sono, por vezes até mesmo antes de me sentir totalmente acordado. (1998, p.3)

A escola do New Journalism, por outro lado, celebrava um maior cuidado e refino na apuração dos fatos e percepção das sutilezas, o que lhes permitiria o uso de sofisticadas técnicas narrativas como o uso de monólogos interiores e a descrição de ambientes com juízo de valores em textos de caráter jornalístico. A aplicação destas técnicas literárias só se justificaria se houvesse uma base sólida de informações que permitissem ao repórter refletir sobre o material coletado e então emitir o seu juízo de forma legitimada. Com o Gonzo Journalism, Thompson simplificou os conceitos e acelerou esse processo.

Um dos principais problemas do New Journalism resolvido em parte pelo Gonzo Journalism é justamente esta velocidade na apuração e redação de matérias, dispensando, inclusive, a etapa da edição. Segundo Wolfe, muitos diretores de redação diziam que o New Journalism não poderia se adaptar à imprensa diária, ficando relegado apenas à temas triviais. O respeitado jornalista britânico Nicholas Tomalin tentou provar o contrário com a sua matéria The General Goes Zapping Charlie Cong, publicada numa edição do The Times, em 1966. Tomalin precisou de apenas um dia para acompanhar o General Hollingsworth em sua Missão Extermínio e escrever o artigo, que causou grande impacto na época de sua publicação.

No prefácio de "The dogs bark: public people and private places", de 1973, Truman Capote fala sobre os seus métodos de captação na entrevista de celebridades:

Depois de escolher Brando como o espécime da experiência, passei em revista o meu equipamento (cujo principal ingrediente é o talento para registrar mentalmente longas conversações... pois estou firmemente convencido de que o ato de tomar anotações - para não falar do uso de um gravador de fita - cria um clima artificial, e distorce, ou mesmo destrói, qualquer naturalidade que possa existir entre o observador e o observado, entre o nervoso beija-flor e o seu pretenso captor). (apud Instituto Gutenberg, 1998)

A entrevista, aliás, é o instrumento mais poderoso do New Journalism - uma vez que ele é focado mais no fator humano do que no fato noticioso em si. É somente através dela que o repórter toma conhecimento dos mais íntimos detalhes físicos e psicológicos que vão ajudar a construir os seus personagens. O Gonzo Journalism abre mão da entrevista como instrumento de pesquisa principalmente por focar sua atenção em um personagem-narrador que é o próprio repórter, o protagonista da ação. Aqui chegamos a mais um ponto de divergência entre o gonzo e o New Journalism: o foco narrativo.

*Autor: Cardoso. Texto extraído do site http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/monogonzo09.html

 

Artigos de Hunter Thompson retratam fim do sonho americano
(Nicolau Sevcenko*)

 

O que há de errado com a América? Os sintomas de que algo vai mal abundam, pululam, pipocam como bexigas numa infecção de varíola. Não foi um presságio ominoso o presidente Bush desmoronar sobre o colo do primeiro-ministro japonês, entre vômitos, calafrios e excreções, em meio a uma desastrosa expedição para vender carros. Foi um evento histórico emblemático, além de patético.

De ponta a ponta dos Estados Unidos não se fala mais de recessão, mas de depressão. A década de 90 é vista da perspectiva dos anos 30. Acabado o risco do apocalipse nuclear, a grande ironia é que após o colapso do comunismo a América desabe em seguida, solapada pelo corporativismo japonês e pelo protecionismo europeu. Pior ainda, o berço da democracia e dos direitos individuais inaugura a violação institucional da propriedade, da liberdade e até dos corpos dos seus cidadãos, no desespero para resistir à inundação das drogas e da criminalidade.
Que se passas? Porque definha o sonho americano?

Um dos diagnósticos mais atordoantes do mal americano está nessas Canções dos Malditos, do dr. Hunter S. Thompson. Nelas, além de fixar o quadro da “malaise”, ele exorta a atitudes que a revertam e demonstra, simultaneamente, ser ele mesmo parte constitutiva da maldição que ele pretende exorcizar.

Não se espere nenhuma complacência moral no consultório do dr. Thompson. O homem é um gênio, um ciclone, um réptil repulsivo. Mistura de Walt Whitman e Billy the Kid, de Jack Kerouack e Joe Hill, de Thomas Jefferson e Mohammed Ali, essa criatura teratológica é a prova de que, se o sonho americano definha, ele de fato ainda não morreu e pode reagir bem a um adequado tratamento de eletrochoque em alta voltagem. O dr. Hunter se dispõe sem reservas a operar o seletor do voltímetro. Como as conseqüências são imprevisíveis, ele só aceita tratar com voluntários e desavisados. São os ingênuos e os puros de coração que ele invoca para restaurar o sonho americano À força.

Junto com outros intransigentes eméritos, com Tom Wolfe e Alex Haley, ele foi um dos criadores do chamado “novo jornalismo” americano. Por si mesmo ele se considera o fundador do que batizou como “gonzo journalism”, um estilo político-literário feito de poesia, asco e fúria.

O doutor nunca foi um observador distante, sempre se envolveu até o pescoço para reportar os picos dos altos e baixos do mundo pós-guerra. De golpes na América Latina à política estudantil radical nas universidades americanas, dos Hell’s Angels às campanhas presidenciais, do Super Bowl ao Vietnã, das orgias dos magnatas de Palm Beach às pancadarias antinazi de Chicago, das corridas suicidas em supermotos à aclamação como messias pelos nativos do Havaí, do Freak Power aos Panteras Negras, o doutor se meteu em tudo. Isso sem contar suas candidaturas a prefeito e senador, o hábito de arrebentar quartos de hotel e fugir sem pagar a conta e de se orgulhar de ser o único escritor cujo estilo é o resultado destilado de 25 anos sem dormir, vividos sob o torpor permanente de álcool, drogas e música pesada.

Canções dos Malditos envolve uma antologia de alguns dos melhores textos de Hunter Thompson desde os anos 50, acrescidos de notas, comentários autobiográficos e reavaliações do passado e futuro. Em parte é ensaísmo político, mas é também romance de aventuras, antropologia da cultura americana, reflexões sobre o jornalismo, balanço da história recente e apelo à democracia jeffersoniana.

O livro todo recende à baba da ira antifilistéia. Em sua resenha, o “The New York Times Review” chamou Hunter Thompson de “lenda viva do jornalismo”. O “London Review of Books” lhe dedicou nada menos que três páginas. Jack Nicholson o chamou “o mais estonteante iceberg humano do nosso tempo”. No seu próprio julgamento, Thompson é um pouco mais modesto: “Eu sou um dos melhores escritores usando atualmente a língua inglesa tanto como instrumento musical como arma política...”.

HunterS Thompson

A obra: Songs of the Doomed (“More notes on the Death of the American Dream”) de Hunter S. Thompson. Nova York/Londres. Pocket Books, Paperback. 320 páginas.

* Folha de S. Paulo, 21 jun. / 1992 - Nicolau Sevcenko é professor de história na USP e autor, entre outros livros, de “A Literatura como Missão” (Brasiliense).

 

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Ei, Cabeça-Oca! Eu Te Amo


Reflexões Lúgubres a respeito de Combustível, Loucura e Música de Hunter S. Thompson
Traduzido por Diego Fernandes This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

Dize, pois, Senhor nosso, a teus servos que estão na tua presença, que busquem um homem que saiba tocar harpa; e quando o espírito maligno da parte do Senhor vier sobre ti, ele tocara com a sua mão, e te sentirás melhor. I SAMUEL 16:16


É domingo de manhã e estou escrevendo uma carta de amor. Do lado de fora da janela da cozinha, o céu está radiante e planetas colidem. Minha cabeça está quente e me sinto um pouco perigoso. Meu cérebro está começando a se comportar como um motor V-8 com as velas de ignição cruzadas. As coisas não são mais o que parecem ser. Meus telefones estão assombrados e animais sibilam em minha direção de lugares ocultos.
Na noite passada um enorme gato preto tentou saltar em mim perto da piscina, e subitamente desapareceu. Dei outra volta e avistei três homens em capotes verdes me observando de uma porta distante. Ops, pensei, algo estranho está acontecendo por aqui. Mergulhe fundo n’água e rasteje pelo fundo próximo ao meio da piscina. Fique distante das bordas. Não permita que te estrangulem por trás. Fique alerta. O trabalho do Diabo nunca é completamente revelado até depois da meia-noite.
Foi nesse momento que comecei a pensar a respeito da minha carta de amor. As luzes no céu acima da piscina pareciam envoltas em névoa, plantas estranhas se movendo em escuridão espessa e completa. Era impossível enxergar de um extremo a outro da piscina.
Tentei me manter imóvel e permitir que a água se acalmasse. Por um momento pensei ter ouvido outra pessoa entrando na piscina, mas não poderia ter certeza. Um rompante de terror me fez ir ainda mais fundo na água e assumir uma posição de auto-defesa. Existem apenas uma ou duas coisas mais aterrorizantes no mundo do que a súbita sensação de que você está nu e sozinho e que algo grande e hostil está se aproximando de você em água escura.
São momentos como esse que te fazem querer acreditar em alucinações – porque se três homens grandes vestindo capotes estivessem me aguardando de verdade nas sombras atrás daquela porta e alguma outra coisa estivesse deslizando na minha direção na escuridão, eu estaria condenado.
Sozinho? Não, eu não estava sozinho. Eu com certeza vi três homens e um enorme gato preto, e então consegui distinguir a silhueta de outra pessoa se aproximando. Ela estava mais fundo na água do que eu, mas podia com certeza ver que era uma mulher.
Claro, pensei. Deve ser minha garota, chegando furtivamente para me fazer uma bela surpresa na piscina. Sim, senhor, é apenas aquela vadiazinha biruta. Ela é uma romântica incorrigível e conhece bem esta piscina. Houve uma época em que nadávamos aqui toda noite, brincando feito lontras.
Jesus Cristo!, pensei, que idiota paranóico eu fui. Devo estar ficado louco. Uma torrente de afeto me atravessou enquanto eu me posicionava e me movia rapidamente para abraçá-la. Eu já conseguia sentir seu corpo nu em meus braços... Sim, pensei, o amor a tudo conquista.
Mas não por muito tempo. Não -- levei um minuto ou dois de busca desesperada na água antes que eu entendesse que, na verdade, estava completamente sozinho na piscina. Ela não estava aqui, e nem aqueles escrotos estavam no canto. E não havia gato nenhum. Eu fui um imbecil e um ingênuo. Meu cérebro estava me pregando peças e me senti tão fraco que mal consegui sair da piscina.
Foda-se, pensei, não consigo mais suportar este lugar. Está destruindo minha vida com toda essa esquisitice. Saia e não volte nunca mais. Tinha enganado meu afeto e estilhaçado meu senso de romance. Essa experiência horrível me valeria a indicação para "Cabeça-oca do ano" em qualquer anuário ginasial.
Estava amanhecendo e dirigi de volta pela estrada. Quando passei pelo cemitério, joguei uma moeda de 25 cents por sobre o muro, como sempre faço. Não havia cometas colidindo, nenhum rastro na neve exceto o meu, e nenhum som em dez milhas com exceção de Lyle Lovett cantando no rádio e o uivo de uns poucos coiotes. Dirigi com os joelhos enquanto enchia um cachimbo de vidro com haxixe.
Quando cheguei em casa carreguei minha 45 automática e dei alguns tiros numa lata de cerveja no jardim, e então comecei a rabiscar, febril, num caderno... Mas que diabos?, pensei. Todo mundo escreve cartas de amor em um Domingo de manhã. É uma maneira de louvor autêntica, uma arte extremamente elevada. E em alguns dias eu sou realmente bom nisso.
Hoje, senti, era definitivamente um desses dias. Pode apostar. Faça isso agora. O telefone tocou e eu ergui o gancho, mas não havia ninguém na linha. Me curvei em direção à lareira resmungando, e então ele tocou de novo. Atendi, mas novamente não havia ninguém na linha. Deus!, pensei. Alguém está fodendo comigo... eu estava precisando de música. Precisava de ritmo. Estava determinado a me acalmar, então coloquei para tocar Spirit in the sky, de Norman Greenbaum.
Toquei isso de novo e de novo nas três ou quatro horas seguintes enquanto finalizava minha carta. Meu coração estava frenético e a música estava fazendo os pavões gritarem. Era domingo, e eu estava louvando a meu modo. Ninguém precisa pirar no "Dia do Senhor".
Minha avó nunca pareceu louca quando a visitávamos aos domingos. Ela sempre tinha biscoitos e chá, e estava sempre com um sorriso no rosto. Isso era no lado oeste de Louisville, próximo das represas do rio Ohio. Eu me lembro de uma estradinha de concreto e de um grande carro cinza na garagem. A estradinha era formada por duas linhas de cimento com um monte de grama crescendo ao meio. Passava entre ameaçadores arbustos de rosas selvagens e conduzia àquilo que parecia ser uma barracão abandonado. Ninguém caminhava por aquele jardim, ninguém dirigia o carrão cinza. Ele nunca se moveu. Não haviam rastros na grama.
Pelo que me lembro, era um sedã LaSalle, com uma aparência esguia e bruta, um poderoso motor de oito cilindros com uma câmbio saindo do chão, talvez um modelo 1939. Nunca demos partida nele, porque a bateria estava morta e a gasolina era escassa. Havia uma guerra em progresso. Você tinha que ter cupons especiais para comprar cinco galões de gasolina, e os cupons eram severamente racionados. As pessoas os cobiçavam e os escondiam, mas ninguém reclamava porque estávamos em guerra com os nazistas e nossos tanques precisavam de toda a gasolina para quando alcançassem as praias da Normandia. Olhando para trás, vejo claramente que a razão de dirigirmos até o lado oeste de Louisville para vistar minha avó no "Dia do Senhor" era para aproveitar seus cupons de gasolina para o LaSalle. Ela era um senhora já velha e não precisava de gasolina nenhuma. Mas o carro continuava registrado e ela continuava recebendo seus cupons todo mês. Por isso íamos até sua casa todo domingo.
Grande coisa – eu faria o mesmo se minha mãe tivesse gasolina e eu não. Todos faríamos. Essa é a oferta e a demanda – e esse é, afinal de contas, o ano insano e final do século Americano e as pessoas estão ficando nervosas. Saqueadores estão saindo do armário, murmurando sombriamente a respeito do "Bug do milênio" e comprando carne enlatada. Figos secos estão em voga, juntamente com arroz e presunto enlatado. Eu, pessoalmente, estou estocando balas. Munição sempre vai ser valiosa, especialmente quando as luzes se apagam e a comida dos seus vizinhos começa a acabar. É aí que você vai descobrir quem são seus amigos. Até mesmo familiares próximos se voltarão contra você. Após o ano 2000, as únicas pessoas que será seguro ter como amigas serão pessoas mortas.
Eu costumava respeitar William Burroughs por ele ter sido o primeiro cara branco a ser preso por porte de maconha na minha época. William era O Cara. Ele foi vítima de uma batida policial ilegal em sua residência na Wagner Street 509, um subúrbio barato do outro lado do rio em New Orleans, onde tinha se estabelecido para treinar um pouco sua mira e fumar marijuana.
William não era de frescura. Era sério a respeito de tudo. Quando o Real Deal caiu por terra, William estava Lá, esperando com uma arma. Click! Boom. Um passo para trás. Eu sou a lei. Ele foi meu herói mesmo muito antes de eu ouvir falar dele.
Mas ele não foi o primeiro cara branco a ser preso por porte de maconha na minha época. Não. Foi Robert Mitchum, o ator, que foi preso três meses antes em Malibu na porta da frente de sua casa de praia por posse de maconha e suspeita de molestar uma adolescente em 31 de agosto de 1948. Eu me lembro das fotos: Mitchum estava vestindo uma camiseta e rosnando para os tiras com o oceano estourando ao fundo e as palmeiras balançando ao vento.
Sim, senhor, esse é que era meu garoto. No meio de Mitchum e Burroughs e James Dean e Jack Kerouac, me vi iniciado pra valer antes dos vinte anos de idade, e não havia retorno. Comprou o bilhete, cumpra o percurso.
O que nos leva a Thunder Road, camaradinha. Esse foi um daqueles filmes que me fisgou quando eu era jovem demais para resistir. Me convenceu de que a única maneira de dirigir era a toda velocidade, com um carro cheio de uísque, e tenho dirigido deste modo desde então, para o bem ou para o mal.
A garota nas fotos com Mitchum parecia ter uns quinze anos, e também estava vestindo uma camiseta ordinária, com um pequeno e elegante mamilo despontando. Os tiras tentavam cobrir o peito dela com uma capa de chuva enquanto irrompiam porta adentro. Mitchum também foi indiciado por sodomia e contribuição à corrupção de menores.
Eu andava tendo meus próprios problemas com a lei por aqueles anos. Na quinta série, fui oficialmente detido pelo FBI por derrubar uma caixa dos Correios na frente de um ônibus. Logo em seguida, me tornei um detento habitual em várias prisões pelo sul, sob acusações de embriaguez, furto e agressão. As pessoas me chamavam de criminoso, e, em cerca de metade das vezes, estavam certas. Eu era um delinquente juvenil irremediável, e tinha um monte de amigos.
Nós roubávamos carros e bebíamos gim e fazíamos um bocado de pegas pela noite dirigindo para lugares como Nashville e Atlanta e Chicago. Precisávamos de música nessas noites, e normalmente o rádio resolvia isso – estações de rádio como a WWL de New Orleans, e a WLAC de Nashville.
Foi aí que eu me perdi – escutando a Wlac e dirigindo noite afora pelo Tennessee em um carro roubado que não seria notado por três dias. Foi assim que fui apresentado a Howlin’ Wolf. Nós não o conhecíamos, mas gostávamos dele e sabíamos do que ele estava falando. I smell a rat ("engoli um sapo") é um monumento de puro rock’n’roll ao axioma que diz: “Não há nada como paranoia”. Wolf podia botar pra foder, mas tinha um lado melancólico. Ele podia despedaçar seu coração como o mais triste honky-tonk. Se a história faz o julgamento de um homem por meio de seus heróis, como dizem, então que fique registrado que Howlin’ Wolf é um dos meus heróis. Ele era um monstro.
Música sempre foi uma questão de combustível para mim. Pessoas sentimentais chamam isso de inspiração, mas o que elas realmente querem dizer é combustível.
Eu sempre precisei de combustível. Sou um grande consumidor. Em algumas noites, eu ainda acredito que um carro com a agulha do combustível no ‘vazio’ pode rodar cinqüenta milhas a mais se tiver a música certa tocando alto no rádio. Um Cadillac V-8 vai andar dez ou quinze milhas a mais se você lhe servir uma dose completa de “Carmelita”. Isso já foi comprovado diversas vezes. Essa é razão pela qual você vê tantos Cadillacs parados em frente às paradas de caminhões da Rota 66 à meia-noite. São compulsivos sexuais por velocidade, abastecendo mais do que mera gasolina. Você observa um desses lugares por algum tempo e percebe uma espécie de padrão: um grande carro pára rente à porta e uma garota de aparência selvagem desce, nua exceto por um casaco de pele ou uma parca de esquiador, entra no lugar com um punhado de dinheiro, louca para descolar algumas fitas com música espanta-tédio para dirigir.
Isso acontece de novo, e de novo, e cedo ou tarde você é fisgado, e fica viciado. Toda vez que ouço White rabbit, estou de volta à meia-noite viscosa de San Francisco, procurando por música, dirigindo uma motocicleta vermelha veloz ladeira abaixo em direção ao Presídio, me curvando desesperadamente nas curvas através dos eucaliptos, tentando chegar ao Matrix a tempo de ouvir Grace Slick tocar sua flauta.
Não havia música enlatada nessas noites, nada de fones de ouvido ou walkmans ou mesmo capota plástica para nos abrigar da chuva. Mas eu conseguia ouvir a música de qualquer jeito, mesmo quando vinha de cinco milhas de altura. Uma vez que você ouvisse a música tocada direito, você podia trancafiar isso na sua cabeça e levar para qualquer lugar, para sempre.
Sim, senhor. Esse é meu legado e essa é minha canção. É domingo, e estou criando novas regras para mim mesmo. Vou abrir meu coração para os espíritos e prestar mais atenção aos animais. Vou comprar algum tipo de música com harpas e dirigir até o Texaco mais próximo, onde possa comprar um taco de carne de porco e ler o New York Times. Depois disso, vou atravessar a rua e meter minha carta na caixa de correio.
Res Ipsa Loquitor.


Hunter S. Thompson, figurinha carimbada no meio indie desde que começou a sujar as linhas da contracultura no fim dos anos sessenta. Autor do célebre "Fear And Loathing In Las Vegas"*, livro-reportagem (?) inaugural do gonzo journalism, estilo do qual é o único representante legítimo.
O texto aqui apresentado foi originalmente publicado na edição 812 (maio de 1999) da revista Rolling Stone, e apresenta o ponto de vista de Mr. Gonzo a respeito da tensão pré-milênio – tudo isso entremeado pela inserção de assuntos que lhe são tão caros: reminiscências, música pop, paranóia, armas e, para não fugir à regra, drogas. Pungente - ainda que chapado.
* (extraído do site http://www.screamyell.com.br)


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Trecho do Livro 'Reino do Medo'

PARTE 1
Quando a coisa fica bizarra,
o bizarro vira profissional


Não existem piadas. A verdade é a piada mais engraçada de todas.
Muhammad Ali


A CAIXA DE CORREIO: LOUISVILLE, VERÃO DE 1946


Meus pais eram pessoas de bem e fui criado, como meus amigos, para acreditar que a Polícia era nossa amiga e protetora - o Distintivo era símbolo de uma autoridade extremamente elevada, talvez a mais elevada de todas. Ninguém jamais perguntava por quê. Era uma dessas perguntas impróprias que é preferível deixar quietas. Se você precisava perguntar isso, com certeza era Culpado como o diabo por algo e provavelmente devia estar atrás das grades havia muito tempo. Ninguém ganhava com isso.
Meu primeiro confronto com o FBI ocorreu quando eu tinha nove anos. Dois Agentes carrancudos vieram à nossa casa e aterrorizaram meus pais dizendo que eu era o “principal suspeito” de ter derrubado uma Caixa Postal Federal na frente de um ônibus que vinha em alta velocidade. Era um Crime Federal, disseram, e implicava uma sentença de cinco anos de prisão.
“Ah, não!”, chorou minha mãe. “Na prisão, não! Isso é loucura! Ele é só uma criança. Como poderia saber?”
“O aviso está impresso claramente sobre a caixa de correio”, disse o agente de terno cinza. “Ele já tem idade para ler.”
“Não necessariamente”, meu pai retrucou com rispidez. “Como sabe que ele não é cego ou debiloide?”
“Você é debiloide, filho?”, o agente perguntou para mim. “Você é cego? Você só estava fingindo ler aquele jornal quando entramos?” Ele apontou para o Louisville Courier-Journal sobre o sofá.
“Era só a seção de esportes”, falei. “Não consigo ler as outras coisas.”
“Viu?”, disse meu pai. “Eu falei que ele era debiloide.”
“A ignorância da lei não é desculpa”, respondeu o agente de terno marrom.
“Interferir no Correio dos Estados Unidos é um crime federal punível pela lei federal.
Aquela caixa de correio ficou bastante danificada.”
As caixas de correio daquela época eram imensas. Eram cofres verdes pesados que se erguiam como marcos miliários nas esquinas dos itinerários dos ônibus da vizinhança e que raramente eram deslocadas, para não dizer nunca. Eu mal tinha altura para alcançar a abertura para o depósito de correspondência, muito menos tinha tamanho para derrubar a desgraçada na frente de um ônibus. Era claramente impossível que eu tivesse cometido aquele crime sem ajuda, e era isto que eles queriam: nomes e endereços, seguidos de uma confissão completa. Eles disseram que já sabiam que eu era culpado, porque outros criminosos tinham me dedurado. Meus pais baixaram a cabeça e vi minha mãe chorar.
Eu tinha feito aquilo, claro, e com muita ajuda. Foi cuidadosamente tramado e planejado, uma emboscada premeditada que preparamos e executamos com a diabólica habilidade de que são capazes as crianças inteligentes de nove anos com tempo de sobra à disposição e uma ânsia vingativa contra um motorista de ônibus idiota e grosso que se divertia fechando a porta e indo embora bem quando corríamos morro acima implorando lhe que nos deixasse subir... Ele era novo no emprego, talvez um substituto com problemas mentais ocupando temporariamente o lugar do motorista oficial, que era amistoso, gentil e sempre estava disposto a aguardar alguns segundos pelas crianças que corriam atrasadas para o colégio. Toda a garotada do bairro concordava que o porco do novo motorista era um sádico que merecia ser punido, e os mais aptos a fazê-lo eram os Hawks a. c. Víamos mais como dever do que travessura. Era um Insulto insolente à honra de todo o bairro.
Íamos precisar de cordas, roldanas e certamente de uma ausência total de testemunhas para executar bem o serviço. Tínhamos que inclinar o monstro de aço a ponto de ele ficar perfeitamente equilibrado para cair de imediato, bem na hora em que o imbecil invadisse o ponto de ônibus com a velocidade arrogante de sempre. Tudo que mantinha a caixa mais ou menos em pé eram minhas mãos segurando um longo cordão “invisível” que tínhamos esticado cuidadosamente a partir da esquina, atravessando cerca de quinze metros de grama até a posição em que ficamos agachados, fora da vista, em meio a uns arbustos.
A engenhoca funcionou com perfeição. O desgraçado chegou bem no horário e veio rápido demais para frear quando viu aquela coisa caindo na frente dele... A colisão provocou um barulho horrível, como uma bomba sendo detonada ou um trem de carga explodindo na Alemanha. Pelo menos é assim que me lembro. Era o pior barulho que eu já tinha ouvido. As pessoas saíram correndo e gritando de suas casas como galinhas espavoridas de medo. Ficaram berrando umas com as outras enquanto o motorista saía trôpego do ônibus e desabava com tudo na grama... O ônibus não trazia nenhum passageiro, como era costume no final da linha. O homem não se feriu, mas espumou de raiva quando nos viu fugindo pela colina até uma ruela próxima. Entendeu num piscar de olhos quem tinha sido responsável por aquilo, assim como a maioria de nossos vizinhos.
“Por que negar, Hunter?”, disse um dos agentes do FBI. “Sabemos exatamente o que aconteceu sábado naquela esquina. Seus amiguinhos já confessaram, filho. Eles delataram você. Sabemos que foi você, portanto não minta para nós agora, ou piorará as coisas para o seu lado. Um bom garoto como você não merece ir para o presídio federal.” Ele sorriu de novo e piscou para o meu pai, que reagiu rosnando: “Diga a verdade, droga! Não minta para esses homens. Eles têm testemunhas!”. Os agentes do FBI entreolharam-se com seriedade, trocaram um aceno de cabeça e fizeram menção de me prender.
Foi um momento mágico da minha vida, um momento marcante para mim ou para qualquer menino de nove anos que estivesse crescendo nos anos 1940, depois da Segunda Guerra Mundial - e lembro claramente de ter pensado: Bem, então é isso. Esses são os GMen*...
CRAU! Foi como o clarão de um relâmpago próximo que ilumina o céu por três ou quatro aterrorizantes décimos de segundo antes de você escutar o trovão - uma questão de zeptossegundos em tempo real -, mas se você é um menino de nove anos prestes a ser recolhido e atirado numa prisão federal por dois (2) agentes adultos do FBI, uns poucos e silenciosos zeptossegundos podem parecer todo o resto de sua vida... Foi essa a minha impressão naquele dia e, fazendo um amargo retrospecto, eu estava certo. Eles tinham me pegado com a boca na botija. Eu era Culpado. Por que negar? Era confessar Agora e submeter-me à misericórdia deles ou...
Ou o quê? E se eu não confessasse? Essa era a questão. E eu era um menino curioso, portanto decidi, naquela situação, jogar os dados e fazer a eles uma pergunta.
“Quem?”, perguntei. “Que testemunha?”
Não era nada de mais para perguntar naquelas circunstâncias - e eu realmente queria saber exatamente qual dos meus melhores amigos e irmãos de sangue do temido Hawks a. c. tinha cedido sob pressão e me denunciado a esses mal-encarados, a esses brutamontes
pomposos e lambe-botas com seus distintivos de plástico guardados na carteira, que alegavam trabalhar para J. Edgar Hoover e ter o Direito, e até mesmo o dever, de me botar na cadeia porque tinham escutado “um boato na vizinhança” de que alguns dos meus companheiros tinham entregado os pontos e me dedurado. O quê? Não. Impossível. Ou pouco provável, pelo menos. Diabo, ninguém caguetava no Hawks a. c., não o presidente, pelo menos. Não Eu. Então perguntei de novo: “Testemunhas? Que testemunhas?”.
E bastou isso, pelo que me lembro. Observamos um instante de silêncio, como diria meu velho amigo Edward Bennet Williams. Ninguém falou nada - principalmente eu -, e quando meu pai finalmente rompeu o sombrio silêncio havia dúvida em sua voz. “Acho que meu filho levantou uma boa questão, oficial. Com quem, exatamente, vocês falaram? Eu estava prestes a fazer a mesma pergunta.”
“Não foi com o Duke!”, gritei. “Ele foi para Lexington com o pai dele! E não foi o Ching! Nem o Jay!”
“Cale-se”, disse meu pai. “Fique quieto e deixe que eu lido com isso, seu tonto.”
E foi isso que aconteceu, amigos. Nunca mais vimos aqueles agentes do FBI.
Nunca. E aprendi uma lição eficaz: jamais acredite na primeira coisa que um agente do FBI lhe disser sobre qualquer coisa - principalmente se ele parece acreditar que você é culpado de um crime. Talvez ele não tenha provas. Talvez esteja blefando. Talvez você seja inocente. Talvez. A Lei pode ser obscura a respeito dessas coisas... Mas é uma jogada que definitivamente vale a pena.
De qualquer modo, ninguém foi preso por causa daquele suposto incidente. Os agentes do FBI foram embora, a Caixa de Correio dos EUA foi colocada novamente em pé sobre suas pesadas pernas de aço e nunca mais voltamos a ver aquele porco bêbado daquele motorista de ônibus substituto.