KEN KESEY VIAGENS DE ÔNIBUS

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1965-66. Acid test ao som do Grateful Dead Ken Kesey foto: Larry Keenan


 

Ken Kesey Viagens de ônibus
(Mário Pazcheco*)

Um promissor romancista, de 26 anos, resolve se inscrever como voluntário para uma experiência médica no começo dos anos 60: testar uma nova e poderosa droga química como cobaia paga em um projeto de pesquisa patrocinado pela CIA. Sob efeito do alucinógeno, escreve seu primeiro romance - um sucesso imediato. Mas logo deixa de ser um escritor para se tornar uma espécie de profeta, pregando o uso da droga para “abrir as portas da mente” e reunindo uma legião de hippies em seu sítio na Califórnia.
As aventuras posteriores de Ken Kesey, o autor de One Flew Over the Cuckoo’s Nest - Um Estranho no Ninho, Sometimes a great notion (1964) ficaram conhecidas por milhões através do The Eletric Kool-Aid Acid Test/O Teste do Ácido do Refresco Elétrico de Tom Wolfe, em 1968. Wolfe, é sobretudo um jornalista. O estilo new journalism, o conto-reportagem que ele ajudou a criar, utiliza recursos literários nos textos das reportagens, introduzindo neles a sensibilidade do ficcionista. O Teste do Ácido do Refresco Elétrico é isso: uma excelente reportagem, baseada em fontes autênticas, que se lê como um emocionante romance.

Kesey é amplamente considerado o pai do hippismo e sua trupe - duas dúzias de jovens ligados pelas viagens de LSD e pelo carisma do chefe, autodenominados Merry Pranksters (Festivos Gozadores) - eram maníacos por equipamentos de áudio e imagem. Suas longas viagens pelos Estados Unidos num ônibus modelo 39 foram todas filmadas. São dezenas de horas de filmes, em geral fora de foco, pois os cinegrafistas não se abstinham das drogas. Além disso, os momentos mais importantes da vida em comunidade no sítio de Kesey eram gravados em áudio. Tom Wolfe, portanto, teve acesso a um farto material, que completou com entrevistas com vários protagonistas, inclusive o próprio Kesey. O jornalista compareceu a reuniões dos Merry Pranksters e participou de seu dia-a-dia. Acima de tudo, soube unir essas informações a uma aguda percepção da natureza do fenômeno.

Kesey era um promissor escritor do Oregon, que ganhou uma bolsa de estudos na Universidade de Stanford para um curso de criação literária. A bolsa resultou em Um Estranho no Ninho, livro que deve parte de sua concepção a influência do LSD e que transformou seu autor na grande revelação literária de 1962. Kesey em seguida escreveu outro romance, uma apologia do trabalhador fura-greve como “vítima do sistema”, que foi recebido com menos entusiasmo pela crítica.

Mas, nessa altura, a crítica não interessava tanto. Kesey era o líder dos Merry Pranksters, correndo os Estados Unidos dentro de um ônibus velho, todo colorido, filmando guardas de trânsito, lanchonetes e estradas. Quem dirigia era ninguém menos que Neal Cassady, lendário sobrevivente da Beat generation. A viagem dos Merry Pranksters, Tom Wolfe insinua, inspirou os Beatles, que anos mais tarde (1967), percorreram a Inglaterra num ônibus colorido, cheios de ácido, filmando o que seria o musical para tevê Magical Mystery Tour.

Na época, o LSD era uma droga nova, pouco conhecida, que aos poucos ia se tornando ilegal nos diversos estados americanos. Durante muito tempo, portanto, os Merry Pranksters e outros grupos semelhantes desfrutaram de relativa impunidade. Nas viagens de ônibus, eles se valiam do comportamento estranho, que desconsertava os policiais. Afinal, quando um ônibus louco ziguezagueia em alta velocidade dentro de um bosque em chamas, e os passageiros vestidos de roupas fosforescentes se deitam a rolar e dar gargalhadas, não há como multar, muito menos prender - o jeito é pedir para irem embora logo.

Situações assim, repetidas, deram a Kesey a sensação da onipotência. Ele achava que ninguém (nem mesmo a polícia!) podia atingi-lo. Pequenos problemas ocorriam, é claro. Mas, se uma Merry Prankster sofria uma crise psicótica e precisava ser abandonada num sanatório, bastava esquecer e seguir viagem. Ela estava seguindo o “barato” dela e pronto.

Tom Wolfe faz o possível para reproduzir em seu texto a maneira de falar dos Merry Pranksters - em que “coisa” e “barato” eram os termos mais correntes. Toda a transcendência intuída no consumo comunal de LSD era resumida na frase “a coisa é um barato”.

O aproveitamento do linguajar dos Pranksters é uma das maneiras utilizadas por Wolfe para apresentar o lado patético do movimento. Achavam que podiam mudar a vida das pessoas, apresentando a elas o verdadeiro caminho. Mas, entre mantras hindus, papos-cabeça sobre a integração com o Cosmos, roupas incrementadas e muito rock’n’roll, o que se vê são adolescentes sem rumo, um líder igualmente perdido e mentes encharcadas de ácido.

Para Tom Wolfe, os Merry Pranksters devem ser entendidos dentro do âmbito da sociologia da religião. Ken Kesey possuía, de fato, um espírito missionário. Estava convencido de que sua missão era atrair mais e mais pessoas para os paraísos artificiais do LSD (e de outras drogas como a maconha, o peiote e o poderoso Dmt). Seria uma “experiência” transcendental a ser compartilhada.

Líder indiscutível do grupo, passou a organizar os acid-tests e a direcionar a espontaneidade de seus seguidores. Ele determinava as dosagens e os horários, criava jogos de que todos deviam participar, determinava as tarefas.

Em comum com os fundadores de grandes religiões, Ken Kesey tinha o grande carisma. Seja tratando com os Hell’s Angels, seja discursando numa convenção da Igreja Unitarista da Califórnia, o líder dos Gozadores conquistava sua platéia. Os violentos Angels foram convidados a visitar o sítio de Kesey, onde participaram de uma festa que durou dias - e sem quebra-quebra, um estupro coletivo consentido. Foram iniciados no uso do LSD e se tornaram habitués do sítio, sempre respeitando a liderança de Kesey.

Na Igreja Unitarista, uma congregação liberal e defensora dos direitos civis, que o convidou para uma reunião especial, Kesey escandalizou os conversadores e conquistou os jovens. Para alguns dos fiéis, ele era o Profeta. Mais escândalo ainda ele provocou num comício contra a guerra do Vietnã. Kesey foi discursar vestido de soldado, chamou o orador anterior de Mussolini e desancou a campanha contra a guerra.

A complacência policial não iria durar para sempre. O sítio de Kesey ficou visado, em especial após a festa com os Hell’s Angels. Kesey chegou a ser preso, por porte de maconha, em meio a uma batida policial surrealista, em que os Merry Pranksters afirmavam estar brincando de bandido e mocinho. Uma nova prisão, mais séria, iria ocorrer depois quando o LSD estava criminalizado. Wolfe acompanha os Pranksters a partir daí - mais exatamente, a partir do momento em que Kesey convence a Justiça a lhe liberar, sob fiança, com a condição de passar a pregar o abandono do ácido.

Embora escrito em tom irônico, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico nunca esconde que narra uma experiência bizarra. A experiência de jovens que sob o efeito do ácido acreditaram no sentido da corrente e dirigiram suas energias e esperanças numa viagem bizarra. Tom Wolfe recria com competência o ambiente hippie, desenha com segurança suas personagens, conduz eficientemente a história. Para quem deseja iniciar na compreensão do louco espírito dos anos 60, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico é indispensável.

Ken Kesey, não foi o primeiro a estruturar uma espécie de culto em torno de um alucinógeno, nem o último - basta ver o Santo Daime. Foi pioneiro na idéia de transformar a vida das pessoas através do LSD, ao lado de Timothy Leary, principais divulgadores da droga. Leary capitaneou uma Liga da Descoberta Espiritual com o mesmo objetivo. No livro Flashbacks, Leary, afirma que Kesey e sua mulher Faye defenderam o estilo de vida popularista americano de independência, humor, consciência ecológica e resistência pacífica às autoridades. Pouco antes da partida de Timothy Leary, foi anunciada uma transmissão na Internet de um show de Leary e Ken Kesey, que não chegou a ser feita.

*PUBLICADO NA REVISTA PSICODÉLICA ‘DE QUANDO O ROCK ERA CONTRACULTURA’ VOLUME I

 

Tom Wolf a Brant Mewborn*

Por que você acha que a sua abordagem da saga de Ken Kesey em O Teste do Ácido do Refresco Elétrico conseguiu despertar a atenção de todo mundo?

— Por dois motivos. Em primeiro lugar, Kesey era uma figura literária bastante proeminente e que se envolveu num aventura bizarra. E, em segundo lugar, era a história certa de todo o hippismo. Todas as mudanças que o movimento trouxe para o país de uma maneira generalizada podem ser percebidas na história dele. Afinal de contas, a história de Ken Kesey não apenas a história de um jovem perturbado qualquer situado nos arredores e que se junta a um bandoleiro cheio de ressentimentos para perturbar a sociedade norte-americana. Ele era simplesmente o que podia existir de melhor no estudante-padrão. E é justamente ele que se torna o líder de uma religião baseada em larga escala no LSD. As suas mudanças são de uma escala heróica, num sentido literário, e são a versão heróica da mudanças que irão afetar muitos jovens no decorrer dos próximos 20 anos.


Kesey então era representativo para a emergente cultura dos jovens dos anos 60?

— Sim, e quando você fala a respeito dos anos 60, na maior parte das vezes você está falando sobre coisas que os jovens faziam, ou pelas quais eles foram responsáveis, excetuando-se o Vietnã. Existe um lado sombrio e um lado alegre nos anos 60. E o lado alegre era o dominante. Você quer saber a verdade? Nos anos 60, nos Estados Unidos, cerca de 95% dos jovens não se importavam a mínima pelas coisas do Vietnã. Todos estavam se divertindo demais e não dispunham de muita energia sobrando para reclamar das coisas. Eu insisto em afirmar que a maneira como os jovens modificaram a vida neste país foi a grande notícia dos anos 60. Isto teve uma importância muito maior do que Vietnã, do que as revoltas, as colisões raciais, o programa espacial. Qualquer um dos grandes eventos históricos dos anos 60 fica na sombra do que os jovens fizeram. Pela primeira vez na história do ser humano, pessoas jovens dispunham de dinheiro, de liberdade pessoal e de tempo livre para construírem monumentos e palácios de prazer segundo os seus próprios gostos. E eles criaram estilos. Foi isto o que o mundo psicodélico, ou hippie, fez. Sem este mundo, sem Ken Kesey e os Grateful Dead não teria existido uma música séria dos Beatles. Uma das coisas que a cultura da juventude fez foi romper com os muros de formalidade entre as pessoas de status diferentes, como os existentes entre professores e estudantes nas universidades.

Ironicamente, hoje os professores parecem ser mais jovens do que os estudantes porque muitos destes professores são filhos dos anos 60 e continuam se vestindo nesse estilo. Todo o colapso da formalidade entre os velhos e os jovens - foi assim que isto se modificou universalmente.

E que efeito este colapso da formalidade teve sobre o país?

— Não temos ainda as condições para calcular estes efeitos, bons ou ruins, por enquanto. Quando se elimina a estrutura da manutenção de divisões entre pessoas de status diferentes, se faz algo de importância fundamental. É uma coisa radical. Veja o que está acontecendo atualmente com a religião: todas as novas religiões - cuja força é vista indiretamente nos escândalos - são evangélicas, carismáticas. Isto jamais teria acontecido sem os hippies, ou sem “o mundo psicodélico”, um termo que eu prefiro. Hippie é um termo criado inteiramente pela revista Newsweek. O termo usado em Haight-Ashbury era acid-heads. Mas quando se pretende explorar o assunto para a excitação jornalística, não se pode ter estas pessoas chamadas de acid-heads. Isto soa como bactérias corrosivas. De qualquer forma, sem o pessoal psicodélico tornando a religião do êxtase uma moda, não teríamos um ressurgimento da religião carismática no último quarto deste século, onde estas coisas têm sido um dado muito importante. Na medida em que os jovens são atraídos para a religião neste país, eles são atraídos pela religião do êxtase. Tudo isto é decorrência direta da cultura dos jovens nos anos 60.


E, é claro, o rock que tem suas raízes na música gospel, emergiu como uma grande força nos anos 60...

— O rock á algo tão óbvio, tão grande e todos estão tão conscientes disto, que as pessoas tendem a não perceber o seu efeito. O rock foi uma forma socialmente radical de música. Ele demoliu a hegemonia nos salões de baile da música popular - Glenn Miller, Frank Sinatra... E as danças nos salões de baile é uma das estruturas de apoio do sistema convencional de status - é algo que representa a boa educação. Elvis Presley, e posteriormente os Beatles e os Rolling Stones, demoliram a estrutura de status da música popular. Quando Elvis apareceu, o fato dele ser de origem de baixa renda e de fazer um som de baixa renda - um cantor negro que, por acaso, era um garoto branco e pobre das montanhas - teve um papel muito grande na sua importância, social e musicalmente. A conclusão de Marshall McLuhan - que continua bastante válida - é que teve uma importância crucial para a influência dos Beatles o fato deles serem rapazes das classes baixas de Liverpool, ou de se considerarem como membros das classes baixas. Eu acredito que quase todos eles se encaixavam nisto. O mesmo vale para os Rolling Stones, mesmo que tivessem forjado um antecedente de classe baixa para eles. Isto foi uma revolução social.


Alguma vez você se sentiu realmente como parte integrante da juventude nos anos 60?

— Eu era muito diferente da grande maioria das pessoas a respeito das quais eu escrevia. Quando escrevi sobre os surfistas em The Pump House Gang, achava que era bastante jovem. Eu estava com 34 anos, acho. Eles tinham de 14 a 19 anos. Para eles, eu era um ancião. E eu era um tanto quanto estranho para eles, principalmente porque chegava nas praias com calças brancas, paletó e gravata. Era quase sempre nesta situação que eu me encontrava. Eu rapidamente percebi que seria bobagem fazer de conta que estava no mesmo barco com os Merry Pranksters, porque a coisa era movida por um compromisso. E assim eu nunca participei realmente de qualquer um destes ambientes. Não deixa de ser estranho que as pessoas com as quais eu senti intimidade no decorrer dos anos e com as quais mantive contato, frequentemente são pessoas muito diferentes de mim.


* O Estado de S. Paulo, 14 de fevereiro de 1988. Caderno 2 - Letras. Tom Wolfe entrevistado por Brant Mewborn, da Rolling Stone

Morre o escritor Ken Kesey, o condutor da contracultura