Lou Reed Os mortos do rock: cavaleiros e princesas vencidos

Os mortos do rock: cavaleiros e princesas vencidos
(Lou Reed)

 

Numa idade cujo principal problema é a auto-identificação, muitas pessoas fazem grupos de rock’n’roll destinados a dividir com outras pessoas as dificuldades idênticas. No rock não há muita diferença de idade entre o artista e sua platéia. Mas, infelizmente, o pessoal que está lá na quarta fila acha que o artista conhece coisas secretas, ocultas para eles. O que não é verdade. É preciso simplesmente ter um ego muito seguro para permitir que as pessoas amem você pelo que você faz, e não pelo que você é, e ainda mais para admitir que você é o que você faz. O cantor tem sentimentos próprios, mas acha que, fora do palco, ninguém o ama, ou, o que é ainda pior, acha que brilha e resplandece apenas no palco, que fora dele se apaga, ele se torna vazio e comum como uma concha, como uma flor de jardim. Mas todos nós somos flocos de neve idênticos, não somos?

Brian Epstein construiu um império, mas viveu tempo demais, tempo suficiente para sentir o vazio do tédio e do ócio. Quem trabalha o dia inteiro, das oito às cinco, não sabe a sorte que tem. Isso controla sua mente, protege a pessoa dela mesma. Acalma o ego. É isso que eu faço. Eu tenho uma família, eu sustento essa família. Quando se tem um tempo livre, a gente aproveita, mas o que há de excepcional nisso é o fato de ser ocasional, raro. Nós somos uma raça que precisa de trabalho. Brian Jones morreu por falta de trabalho, Janis Joplin e Jimi Hendrix por um excesso de trabalho, mal orientado.

Eu me lembro bem dos primeiros tempos dos Beatles. Eu tinha recebido ordens da Força Policial que tomava conta da minha universidade para abandonar a cidade, sob alegação de que eu estaria envolvido em várias operações clandestinas. Nesse tempo muito poucas pessoas usavam cabelo comprido, e nós nos reconhecíamos uns aos outros como membros de uma sociedade secreta. Lá estava eu tentando descolar um atestado médico para escapar do alistamento militar quando vi os quatro cabeludos invadindo todas as paredes e janelas com suas fotos e todas as jukeboxes com seus discos, até mesmo a jukebox onde se reuniam os poetas locais para lerem seus poemas e onde os coroas da cidade vinham pegar seus garotões e onde eu ia beber em memória de mais uma semana desperdiçada. Eu estava perdido no mundo de Kant e Kierkergaard e da polêmica metafísica, que era tudo o que havia por aí antes da música dos Beatles chegar, primeiro com uma curiosidade, depois como um modo de vida, junto com as botinhas de salto, o penteado em franjas, o sotaque britânico (era ótimo para paquerar as garotinhas), um modo de viver que cresceria e seria a marca dominante dos anos 60.

Enfim, eu peguei hepatite e escapei do exército e comecei a dançar ao som dos Beatles. Será que Brian Epstein jamais soube como ele mudou o mundo? Será que ele estava preso ao cometa dos Beatles? Ou seria o contrário? Será que foi um golpe de sorte que poderia ter acontecido com qualquer um ou teria sido uma estratégia planejada de modo magistral (dez discos nos 10 primeiros lugares das paradas ao mesmo tempo!)? Nunca saberemos, e se John e Paul sabem, eles por certo não dirão jamais.

Se Brian Epstein não tinha realmente nada a ver com o sucesso dos Beatles, então sua morte pode ser compreendida com mais facilidade. Podemos imaginá-lo inútil, sentindo-se, talvez, como um joguete das circunstâncias, sem ter contribuído em nada para isso. Sentindo que ele não tinha coisa alguma a oferecer. Afinal ele mesmo se descreveu, em sua autobiografia, como uma pessoa apagada, que só despertou para a vida através dos Beatles. Será que ele fracassou em seu desejo de ser um ator? Eu me lembro dele no programa Hullabaloo, na tevê, tão pálido e desanimado e deslocado. Tão quieto! Seria ele o chefão mor, o sucessor do Coronel Parker?

Mas talvez ele fosse um gênio, como muitos dizem, preenchendo seus dias com maquinações fantásticas, planejando e fazendo estratégias para a carreira de seus ídolos, de modo que eles se tornassem, como se tornaram, nossos líderes supremos.

Se ele era um grande homem de negócios, exprimindo sua vontade através de quatro músicos, trazendo honestidade e integridade a um meio corrupto, ele deve ter sofrido muito quando os Beatles decidiram não mais se apresentar em público. O que havia para se fazer depois de dois filmes e nenhuma excursão? Acabaram-se as reuniões, as intrigas, os planos e os truques. Teria ele ficado sozinho, debruçado sobre manuscritos colossais, tentando achar as palavras mágicas, tentando trazer de novo à vida ao turbilhão do poder e da glória?

Depois dos Beatles vieram os Stones, e nos Stones ninguém podia ignorar Brian Jones, o pisciano pomposo, onipotente, com seus olhos doloridos de peixe, suas roupas incríveis, suas echarpes magníficas. Brian estava acima de qualquer estilo. Brian era perfeito. Como era possível que Brian tivesse asma, uma doença psicológica (é o que dizem)? É algo muito estranho para um astro de rock’n’roll. A gente lê nas entrevistas que Brian se considerava o líder natural dos Stones, um posto que ele ocupou de fato até que Mick tomou o poder durante a primeira excursão americana, para deleite das meninas da América.

Vocês se lembram, em 1964, quando se dizia que os Stones eram homossexuais por causa de seu cabelo comprido? (Você era?) Brian, com suas garotinhas de 14 anos a tiracolo, deve ter dado boas gargalhadas. E no entanto o centro das atenções flutuava. Num grupo as atenções podem se distribuir igualmente (e nós todos conhecíamos e amávamos John, Paul, George e Ringo) mas nos Stones o foco tinha de ser Mick. Agora é normal que, num grupo, um músico nunca suplante um vocalista. (Exceção: os Yardbirds. Eric Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page viviam dando banhos no pobre Keith Relf). Nos Stones havia Mick, centro absoluto. Charlie e Bill eram apreciados por gourmets, restavam Keith e Brian. A guitarra solo sempre ganha da guitarra ritmo em termos de popularidade. Talvez por isso Brian tenha se dedicado a tantos instrumentos exóticos para se afirmar perante os outros e perante ele mesmo. É isso o que eu valho, quero ver vocês tocando essas coisas no meu lugar.

Novas experiências, novos países, novos sons, de novo de volta ao blues, minha própria música (sonho de todos nós), eu preciso redefinir meu ego porque o que eu queria ser já foi usurpado por outra pessoa. E no entanto ele ainda era identificado como um Stone, ou seja, identificado como um integrante da banda de apoio de Mick, ou seja, uma figura secundária. É claro que os aficcionados sabiam que os Rolling Stones era a sua banda, mas a massa via em Mick o líder, e não em Brian. Como suportar isso? “Mas eu comecei tudo”, ele podia pensar. “Foi com os meus discos que tudo começou, eu apresentei tudo a eles. Por que eu teria que ser um cantor pra que as pessoas prestassem atenção em mim?”. Ou isso ou um ás da guitarra.

Depois havia outros problemas, as prisões, o tumulto na sua cabeça. E se eles se apresentarem sem mim? Dinheiro. Será que eu passaria fome? (Ele morreu cheio de dívidas). Se eles tocarem sem mim eu cairei em desgraça, eu não tenho mais nada onde me segurar, mais nada para fazer e jogar na cara deles. (Como é triste! Como é inevitável!). Mas eu vou criar meu próprio mito, meu estilo, minha voz, todo mundo vai se ligar em mim porque eu saco muito de música, música, eu posso fazer tudo, eu vou fazer tudo, eu preciso fazer tudo.

Daí a desorientação, daí o ataque de asma (estou sufocando), a queda (onde está a piscina?), e tudo termina como uma bolha quieta subindo, os círculos na água, tão finos, tão finos, até desaparecerem completamente.

Será que as pessoas se tocaram que, na idade em que os artistas estão hoje, a maior parte das pessoas já definiu um modo de viver para sempre? Segurança, família, um emprego. A maioria achou um companheiro ou companheira, tem um filho ou dois e sua vida é tranqüila, ordenada, tem uma finalidade. Não há nada estranho. Isso acontece com as pessoas que são menores ou maiores ou pelo menos muito diferentes de mim e de você. E no entanto não há filho mais delinquente, não há família mais caótica do que a platéia que se senta à mesa do rock.

Quem exprime suas emoções com tanta violência? E no entanto, se a platéia de rock é apenas uma única, imensa, pessoa, você precisa ser forte para não depender dela. Se você subir num palco procurando amor, prepare-se. Vá lá com um coração duro e uma pele grossa. Ou, como dizem os analistas, não dependa de ninguém, nem do seu amor, nem do seu amigo, nem do seu médico.

Hendrix, o guitarrista dos guitarristas, a própria alma eletrônica, dependia de sua platéia para ser o que era. Mas, como ele insistia em entrar na deles e não fazer com que eles entrassem na sua, ele foi forçado a encarar uma imagem dele mesmo que dizia: palhaço. Ninguém chega ao auge e troca de máscara. O amante exige constância, e a não ser que você tenha feito da mudança uma regra do jogo, você será chamado de adúltero.

Hendrix estava nas mãos de tanta gente que é incrível como sobreviveu tanto tempo. Ele era o outro lado de Janis Joplin. Se ela se aproveitava dos negros, ele se aproveitava dos brancos. Quando seus empresários o levaram para a Inglaterra e lhe arranjaram dois músicos brancos, a sorte foi lançada. Porque Hendrix jamais poderia ter sido aceito na América branca se ele tivesse um grupo só de negros.

Quando Jimi Hendrix explodiu, a coisa mais incrível além de seu virtuosismo na guitarra era sua selvageria, o modo brutal como violentava o instrumento. A guitarra gritava e gemia e suspirava e gozava num crescendo de volteios e sons que o acaso programava. Qualquer pessoa que faça isso num palco, noite após noite, enlouquece. Era o próprio frenesi, porque a frustração só pode ser vivida de um modo violento, não pode ser representada. Se há alguma falha, as energias vitais são empregadas para copiar os piores aspectos da pessoa, e em breve tanto a mente como o corpo estão exaustos.

Os shows de Jimi Hendrix se tornaram shows de sexo, eróticos, perfeitos, embora ajudados por duas pessoas que, claramente, não estavam na sua. E a inveja, amarga, começou a crescer. Mas como ele era a estrela (e como não seria, se era ao mesmo tempo guitarrista solo e cantor?) o grupo se desfaz. Com o período incerto que se segue ele começa a pensar, eu não sou um corista, não sou um artista pélvico, eu sou um guitarrista, as pessoas precisam me respeitar, me levar a sério. Todo mundo quer um comediante burlesco no palco, mas EU SOU UM ARTISTA, EU SEI TOCAR! E ele poderia ter sido o que ele quisesse ser, porque sua música de verdade ou se consumir e morrer numa manhã cheia de vento.

Ele forma um grupo novo, para tocar o que ele acha que é certo. E no entanto não há dinheiro para isso, não há mais tanto sucesso (onde estão os fãs?) e aí o velho grupo é reunido de novo, esporadicamente, porque sua vontade de tocar é muito grande, mas dessa vez ele é forçado a violentar conscientemente sua mente e sua alma (o corpo é o templo de todas essas energias), antes estava tudo bem, ele não sabia o que estava fazendo, ele tinha de chegar lá... mas agora é como quebrar os princípios, a honra, recém descoberta, agora o espírito está quebrado, agora... E ele corre para o quarto para por a cabeça em ordem, para tentar segurar a barra, para achar uma saída, e começa a ver onde estavam as mentiras dos empresários.

Com quem conversar, quando se está na estrada? Só existem pessoas feias e drogadas em volta de você. Eu pirei quando te ouvi, cara. Eu estava na maior quando te ouvi, cara. Eu fui preso quando fui te ver. Toque-me, abençoe-me, eu te amo.

Com quem Janis Joplin conversava quando estava na estrada? Na estrada só existem noites, não há sol. Todos os seus companheiros estão drogados, mas eles são pra frente, são sofisticados, está tudo bem, tudo maneiro... Com quem você conversa quando você é famoso e sozinho e todo mundo quer curtir junto com você para mostrar como todos são pra frente, como todos são enturmados, vamos beber junto com ela, ela é gozadíssima quando está caindo de bêbada...

Eu me lembro de pessoas que tocam e tocam e tocam e depois que estão presos num papel que talvez tenham desejado, consciente ou inconscientemente inventam uma máscara e vivem em função dela porque afinal foi isso que eu sempre quis, não foi? Talvez até eu devesse morrer, afinal de contas todos eles (os grandes cantores de blues) morreram, não foi? Mas agora a vida está melhor, eu não quero morrer. Ou quero?

E se é verdade - e como é verdade! - que você não pode corresponder às expectativas de todo mundo, que você não pode ser tudo para todos, e se é verdade que você não pode ser outra coisa a não ser o que você é, você deve ser forte se você pretende colocar essas coisas num palco, em público, diante DELES que esperam e prevêem o tempo todo a queda de seus ídolos. E se é verdade que era o inevitável e, oh, sim, tão triste, e nada podia ser feito já que era tarde demais para eliminar vícios tão, tão antigos, e se é verdade que as princesas são embalsamadas depois que morrem, todos nós somos cavaleiros vencidos.