A VOLTA DOS BETLES POR JOHN WEEKS (1978)

A volta dos Beatles

(John Weeks*)

 

Ilustração: Don Punchatz
foto www.revolution9.com.br 

 TRECHO (FICÇÃO)

 “NOVA ORLEANS – Pela primeira vez, após mais de sete anos de ausência, os Beatles irão se apresentar juntos, na quarta-feira à noite, no Superdome, estádio com capacidade para 80 mil pessoas. (...)

 

Passava das 8 horas da noite de quarta-feira no Superdome, em Nova Orleans. Oitenta mil pessoas ocupavam seus lugares, expectantes, envoltas num suspense que exprimia duplamente ansiedade e dúvida. Murmurava-se, havia pouco movimento, apenas uma intensa respiração controlada, no ar a opressão semelhante à que antecede uma tempestade.

 

Nenhum mestre-de-cerimônia, nenhum apresentador, nenhuma palavra de boas-vindas. No meio do gramado vazio, um palco vazio. Sobre ele, cravados, 80 mil corações 160 mil olhos.

 

De repente uma certa agitação de um dos lados do estádio; em seguida, alguns gritos; pouco depois, mais gritos, e mais, mais, gritos. Os olhos, todos, voltaram-se, e viram... e então,,, Pandemônio! Os Beatles entravam e caminhavam para o centro do campo.

 

Oitenta mil pessoas puseram-se de pé, ergueram os braços e gritaram alucinadamente. Seus brados lembravam mais o choro que a saudação, como o êxtase dos amantes que se reencontram depois de longa separação. Foi uma ovação magnífica e comovente... crescia, inchava, irrompia como um terremoto entre montanhas, como trovões enfurecidos infinitamente. Há quanto tempo – há quantos anos – não se ouvia esse som sobre a face da terra?

 

 Esplêndidos em suas roupas idênticas, os Beatles continuavam em direção ao palco improvisado. Andavam rapidamente – e de cabeça baixa, propositadamente. Apenas uma vez Ringo olhou par ao alto, sorriu maliciosamente e acenou. Pandemônio!

 

Subiram no palco, apanharam os instrumentos. Um momento breve de acomodação, afinação, sincronização... Pausa. E pela primeira vez olharam, juntos, para a audiência. Entreolharam-se, e após ligeira contagem começaram a tocar.

 

A primeira música, do último álbum antes da ruptura: Two of us. Two of us riding nowhere, spending someone’s hardearned pay... You and I have memories, longer than the road that streches out ahead. Uma música viva. E Paul e John a cantaram bem. Juntos.

 

Em se tratando de abertura de show, porém, não deixava de ser uma estranha escolha. Não chegara a ser uma música popular. Entre a plateia, não restava dúvida, muitas pessoas sequer a tinham ouvido. Os que conheciam bem o álbum logo perceberam – assim que a segunda e a terceira músicas foram executadas – que os Beatles estavam reeditando aquele álbum, música após música, nesta ordem: Two of us, I dig a pony, Across the universe, I me mine, Dig it...

 

Era mais que intrigante. Eram músicas dificilmente identificáveis, pouco populares, algumas delas francamente ruins.

 

Agora mais intrigantes, omitiram a próxima música dentro da sequência, o clássico Let it Be, e passaram ao gritante equívoco de Paul McCartney, I’ve got a feeling.

 

Tocavam corretamente, ensaiaram bem as músicas e as executavam com precisão técnica. Alguma coisa, porém, saía errada. Seus rostos estavam limpos de qualquer expressão. Nenhuma animação, nenhum sinal dos bons tempos, nenhuma resposta autêntica à audiência apaixonada.

 

E por quê? Por que insistiam naquela estranha sequência? Por que teriam eles omitido a música das músicas, tão adequada, tão popular e tão gratificante? Let it Be... fora uma espécie de refrão, um lema, um hino empolgante nas reuniões dos Beatles. Permanecera viva na memória de todo os que sonharam com este momento. Let it Be... seria uma abertura sensível e sensacional, ou constituiria um renascimento triunfante após uma abertura anêmica. Mas desviaram-se do seu caminho, e a omitiram. Tocavam as piores músicas dos piores dias de toda sua carreira, intencionalmente, descaradamente. No melhor dos casos, enrolavam a multidão. No pior, escarneciam, desdenhavam, insultavam.

 

Alguém percebia isso?

 

Alguns, talvez. Escritores, críticos – provavelmente. Mas a maioria maciça ignorava quebra-cabeças, entrava em êxtase, em estado de graça. Aqueles eram os Beatles – Os Beatles reais diante deles – eles, um campo de braços erguidos, um imenso oceano ondulante de vozes erguidas, suspenso, inexorável, irresistível.

 

Irresistível!

 

Subitamente, um passe de mágica pareceu transformar os Beatles. A música, One after 909, ainda na sequência do último álbum, mas na verdade uma velha música, composta nos primeiros anos da carreira e só tornada pública nos dias derradeiros. Era um aviso. Alguma coisa vinha do passado para provocar, agradavelmente. E com o poder de desembaraça-los, livra-los da estratégia de manter aquela estranha reserva.

 

Um rock rápido, simples e estimulante. E John e Paul o cantaram com vigor, e quanto mais a música chegava ao fim, mais eles se envolviam, dobrando-se sobre os microfones, cantando de corpo e alma. I Said, move over once, move over twice, come on baby, don’t be cold as ice... Terminaram com um floreio de guitarras e braços, trocaram olhares e sorriram satisfeitos. George jogou um aceno maroto à audiência. Ringo sorria radiante, como um príncipe do rock que retorna a seu trono.

 

O estádio explodiu em aplausos.

 

Ringo debruçou sobre a bateria e atraiu a atenção de George. Trocaram palavras rápidas e sussurradas. George aquiesceu, levantou a guitarra e com um solo atacou o velho e clássico Day tripper. Quebrou-se a sequência. E a multidão delirou. John e Paul confundiram-se por alguns segundos, procurando, atrapalhados, os tons certos, e por fim ajuntaram-se ao acompanhamento. Ringo sacudiu a cabeça no ritmo. Paul cantou – melhor, berrou — triunfalmente. Got a good reason! For taking the easy way out!

 

Mal-ensaiados, produziam uma barulheira infernal, mas estavam magníficos. Engrenavam, à toda.

 

Tudo aquilo era uma loucura, ruidosa e maravilhosa. Tocavam impulsivamente, música após música. Não havia estratégia alguma agora. Tocavam, tocavam e balançavam, dançavam, e atualizavam as velhas e famosas poses. Cantavam, esgoelavam-se, brincavam com a plateia.

 

- Agora, queremos tocar uma música – disse Paul!. — O título é ... Socorro!... e é isso aí mesmo que eu quero dizer... Socorro! Socorro! Socorro!

 

E cantou em falsete. Aquilo era uma piada, e ninguém pegou... que diabo!

 

Continuaram por hora e meia, duas horas, duas horas e meia, e tocaram de tudo. She loves you, I want to hold your hand, A hard day’s night, Michelle, Yellow Submarine, um lado inteiro do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, "Penny Lane", "Magical Mystery Tour", e outras mais, escolhendo o de melhor, o mais popular, as músicas de primeira linha.

 

Vinham as recordações de fazer perder o fôlego de todos aqueles dias tão estranhos, excêntricos, vivos e maravilhosos – os dias dos Beatles -, quando as lojas da Carnaby Street eram alegres e brilhantes, quando as crianças espalhavam flores por toda Haight, quando as belas enfermeiras vendiam papoulas em tabuleiros e os bombeiros fugiam da chuva torrencial em Penny Lane.

 

Os Beatles esqueciam palavras, erravam nas notas. Era maravilhosamente terrível, terrivelmente maravilhoso. O caos. A multidão arrebatada, perdendo as mãos, as vozes, as cabeças.

 

O show já durava quase três horas. E aí, sim: "Let it Be". A multidão foi se acalmando, silenciando, escutando o canto de Paul. And when the broken hearted people living in the world agree, there will be an answear... let it be…

 

Terminada a música, baixaram os instrumentos, avançaram lado a lado e curvaram-se à audiência, e curvaram-se novamente, e novamente se curvaram. A ovação não tinha fim. Nem nunca teria. Oitenta mil pessoas de pé, aclamando, agradecendo, querendo mais e muito mais, num clamor entusiasmado e indescritível.

 

Retomaram seus lugares. Ao piano, Paul cantou: Hey Jude, don’t make it bad, take a sad song and make it better... A música acabou com aquele refrão curto, familiar e persistente, ora crescendo, ora baixando, novamente crescendo, a quatro vozes. Na... na, na, na, na, na, na,... na, na, na, na ... Hey Jude... É uma canção de sete minutos, mas desta vez parecia interminável, infinita, excelente. Repetiram o refrão, repetiram, repetiram, e repetiram, o piano, as guitarras, aa bateria, as vozes soando harmoniosas numa cadência hipnotizante. Oito minutos, nove minutos... cantavam alegres, e de corpo e alma. Um transe prolongado e hipnótico, e os Beatles e as 80 mil pessoas deixavam-se tragar por ele. As oitenta mil pessoas cantavam junto, balançavam-se ao ritmo ombro a ombro, para a frente e para trás, um mar de ondas humanas, seus corpos e almas se elevavam, os olhos brilhando com as lágrimas de satisfação.

 

Sim, oitenta mil pessoas choravam, os corações quase partidos pela imensa alegria. Mais de 80 mil. Havia mais quatro. Eles também choravam, as lágrimas desciam abundantes enquanto cantavam.

 

Era quase insuportável, bom demais. Era a Beatlemania. De novo”.

 

Mais tarde, nos seus camarins, John, Paul e George descansavam despidos. Ringo estava ausente, dissera que precisava ir ao lavatório. Um negro à paisana adentrou abruptamente, entregou em mãos três envelopes e retirou-se.

 

Cada envelope continha um cheque nominal no valor de 40 mil dólares, assinado pelo organizador, e um bilhete manuscrito com a mesma assinatura. Paul leu seu bilhete em voz alta, e aos poucos seus olhos se arregalaram, com espanto.

 

"Querido Paul, espero que não se zangue comigo. Eu queria fazer isso e só tinha de ser assim. As armas estavam descarregadas. Aqueles sequestradores são uns gorilas que aluguei numa agência de modelos. Eles não iam te maltratar. Essa história me custou a minha parte e algo mais pelos gorilas, aviões, a casa, o estádio e todo o equipamento. Você pode ver que não fiz nada por dinheiro. Fiz por amor. Sempre amei os Beatles, você sabe. Amor.

 

Do seu velho capa,

 

Richard L. Starkey".

 

Os três olharam-se surpresos e juntos deixaram escapar uma palavra:

 

- Ringo!

 

*JOHN WEEKS ESCREVEU ESTE CONTO COMO UMA RÉPLICA AOS MUITOS CRÍTICOS E COMENTARISTAS DO MUNDO POP QUE AFIRMAVAM QUE UMA REUNIÃO DOS BEATLES NÃO CONSEGUIRIA SER MAIS DO QUE UMA PRODUNDA DECEPÇÃO, JÁ QUE DEPOIS DE TANTOS ANOS SEPARADOS SO BEATLES NÃO SERIAM TÃO “BONS” QUANTO A IMAGEM QUE OS FÃS TÊM DELES. A ISSO, JOHN WEEKS RESPONDEU: “UMA REUNIÃO DOS BEATLES SERIA UM ACONTECIMENTO TRANSCENDENTAL, EMOCIONANTE, INTENSO E COMOVENTE. TECNICAMENTE ELES PODERIAM ESTAR ÓTIMOS OU FRACOS, MAS AINDA ASSIM SERIAM OS BEATLES E ISSO É UMA GRANDEZA ALÉM DO BOM E DO RUIM”.

 

**TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NUMA REVISTA “PLAYBOY” DO ANO DE 1978.