O dia em que a filosofia enlouqueceu

Barbieri no começo dos anos 70 

O dia em que a filosofia enlouqueceu

 

     Há cem anos a filosofia enlouqueceu. Chamava-se Frederic Nietzsche. Não enlouqueceu de repente. Enlouqueceu definitivamente. O último trimestre de 1888 foi uma loucura. No outono de 1888, com Nietzche, a filosofia enlouqueceu de vez. Enlouqueceu ao atingir seu clímax. A partir daí já não se sabe mais quem o sábio, quem o louco. Nietzsche revela: "Um médico, que longamente me tratou como doente dos nervos, disse finalmente: Não! não há nada com seu nervos, eu próprio é que sou nervoso".
     E, no entanto, ele e a filosofia enlouqueceram de vez. E ambos começaram a ensandecer a filosofia posterior. De tal maneira que nos nos 60, por exemplo, quando Foucault e outros tentataram reconceituar a loucura, criando a antipsiquiatria, voltaram ao louco original: Nietzsche.
     Dizem que sua loucura veio da sífilis. Qual sífilis? Apanhada enquanto cuidava dos soldados na guerra da Prúsia? Contraída no contato com prostitutas? Ou desenvolvida pelo vírus da própria filosofia?
     Lou-Andréas-Salomé, seu grande amor, diz que no outono de 1888 tiveram o pressentimento da tragédia. As anotações do filósofo sobre suas sensações são tragicômicas: "Faço tantas palhaçadas, tenho idéias tão bufas me atravesando a mente"... e assim se surpreendia fazendo caretas e chorando ao mesmo tempo. Em breve estaria assinando cartas em nome de chefes de estado e criminosos, se chamando César e o "O Crucifricado". Este trajeto foi pontuado de hipertensões, dores de cabeça e outros sintomas que vinham se agravando há algum tempo. Os dois últimos anos ele os passaria em diversos asilos. Ao atravessar o portão do primeiro deles o doutor Podach declarou: "de agora em diante, aos olhos do mundo, ele é apenas um alienado".
     Era apenas isto? As coisas são mais ambíguas. Onde o limite entre a loucura e a razão? Pois foi exatamente quando ele enlouqueceu, que se tornou mais sábio. Deste ano fatal são quatro de suas mairoes obras: O Crepúsculo dos Ídolos, o Anti-Cristo, Ecce Homo e Sobre o Niilismo e o Eterno Retorno. Outono do filósofo ou a primavera da filosofia? Leiamos o que ele mesmo diz: "Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre minha vida: olhei para trás, olhei para frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que enterrei hoje meu quadragésimo-quarto ano, eu podia enterrá-lo. O que nele era vida, está salvo, é imortal. O primeiro livro da Transvalorização de Todos os Valores, As canções de Zaratustra, O Crepúscuilo dos Ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo - tudo isso são presentes deste ano e, aliás, de meu último trimestre! Como não haveria eu de estar grato a minha vida inteira?".
     Dilacerante essa fulgurante ambigüidade: ao eclodir a doença física, o apogeu da saúde mental E a dialética entre saúde e doença passam a ser temas de seus escritos. Diz que vive entre esses extremos: vida e morte. "Eu, como meu pai, já estou morto, como minha mãe, vivo ainda e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais alto e do mais baixo degrau da escada da vida, ao mesmo tempo décadent e começo - é isso, se é que é alguma coisa, que explica aquela neutralidade, aquela liberdade de partido em relação ao problema global da vida, que, talvez me caracteriza. Tenho para os sintomas de ascensão e declínio um faro mais refinado que jamais teve um homem, sou o mestre par excellence nisso - conheço a ambos, sou ambos". E a seguir (atentai psicanalistas!) diz que que começou a morrer quando fez 36 anos, mesma idade em que morreu-lhe o pai...
     Assumindo a doença, considera-se a saúde. Caminhando para a morte, constrói a vida. Muito antes da doença prostrá-lo, no tempo de A Gaia Ciência dizia: "Nós os novos, os sem-nome, os difíceis de entender, nós, os nascidos cedo de um futuro ainda indemonstrado - nós precisamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais forte, mais engenhosa, mais tenaz, mais temerária, mais alegre, do que todas as saúdes que houve até agora". Contudo, perto do fim, diz que está assumindo a "ótica de doente" para olhar "conceitos e valores mais sadios".
     Existe um sentido sacrificial no texto/obra de Nietzsche. É preciso a morte para que haja ressurreição. E nos seus paradoxos se sentia adiante de sua época: "Eu próprio ainda não estou no tempo, alguns nascem póstumos. Algum dia necessitarão de instituições em que se viva e se ensine como eu entendo viver e ensinar; talvez até sejam instituídas cátedras próprias para a interpretação de Zaratustra". A profecia se cumpriu no mesmo ano. Enquanto ele enlouquecia naquele outono, em Copenhagen, Georges Brandes dava o primeiro curso sobre o homem que enlouqueceu e salvou a filosofia.

 

     (Affonso Romano de Sant'anna - O Globo, 2º Caderno, 9 out. / 1988)