“O estilo é cafona e eu estou tão admiravelmente sem máscara” (2022)

 

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Nos 70 anos de Ana C., livro revela cartas inéditas da poeta ao namorado da juventude
Escritora, que faria aniversário nesta quinta (2), viveu aos 17 anos um romance à flor da pele com o sociólogo Luiz Augusto Ramalho,
Por Bolívar Torres — RIO

01/06/2022  — https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2022/06/nos-70-anos-de-ana-c-livro-revela-cartas-ineditas-da-poeta-ao-namorado-da-juventude.ghtml

Durante a adolescência, Ana Cristina Cesar viveu no Rio um romance à flor da pele com o sociólogo Luiz Augusto Ramalho. No fim dos anos 1960, o casal enfrentou a distância geográfica quando ela, aos 17 anos, partiu para um intercâmbio em Londres e, ele, também com 17, para a Alemanha. Perseguido pela ditadura, Luiz acabou ficando lá — e permanece até hoje. Após a temporada europeia, já com o namoro terminado, Ana voltou ao Brasil em 1970, tornou-se uma das principais poetas de sua geração, e cometeu suicídio em 1983.

Repleta de reviravoltas, viagens, política tumultuada e vida cultural em alta temperatura, a paixão dos dois ressurge em AMOR MAIS QUE MAIÚSCULO (Companhia das Letras), livro com as cartas inéditas que a poeta escreveu para o então namorado entre 1969 e 1971. Ana C., que completaria 70 anos no próximo dia 2, era ainda uma poeta em formação, tomada pelo turbilhão da juventude e pela efervescência dos anos 1960.

A publicação será lançada no próximo dia 14, no Instituto Moreira Salles, em um bate-papo com Luiz Augusto Ramalho, a pesquisadora Rachel Valença, o jornalista (e irmão de Ana) Flávio Lenz, e mediação da poeta e editora Alice Sant’Anna.

— Já vínhamos num ritmo muito intenso antes de viajar — conta Luiz, que em 1968, ainda no Rio, trocava a praia para ver filmes da Nouvelle Vague e estudar Molière com Ana C. — Havia uma certa loucura, um estado poético, como se todas as coisas entre nós passassem pela poesia, por uma forma estética de ver a vida. É o que (o filósofo francês) Edgar Morin chama de “estado poético”. Depois de viajar, continuamos a viver tudo isso pelas cartas.

O livro traz apenas as missivas de Ana C. Não se sabe se as do seu interlocutor foram descartadas pela própria ou se acabaram se extraviando após a sua morte. As que ficaram com Luiz sobreviveram por milagre, já que antes de se instalar definitivamente na Alemanha ele viajou por diversos países.

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Ana C. nos anos 1960 em foto guardada por Luiz Augusto Ramalho 
Envelope com carta de Ana C. para Luiz Augusto Ramalho
— Foto: Divulgação

A vontade de publicá-las veio em 2020. Luiz mostrou uma versão datilografada das cartas a Flávio Lenz, que, por muito tempo, teve dificuldade para lê-las. Temia invadir a intimidade da irmã. Mas, aos poucos, aquela jovem Ana C. que escrevia de Londres foi atiçando as suas próprias lembranças com ela.

— Uma mulher tão jovem, que devorava tudo o que via pela frente— recorda Lenz. — Está lá essa sua voracidade, a sua amplitude de conhecimento. Uma hora ela conta que fez aulas de judô na Inglaterra, e lembrei de cenas nossas que havia esquecido, como ela me mostrando os golpes, tentando aplicá-los em mim.

Como a grande maioria das cartas tratam do romance entre Ana e Luiz, Lenz também não tinha certeza se o material era digno de publicação. A dúvida foi desfeita após consultar especialistas na obra da poeta, que confirmaram que os textos não apenas tinham valor literário como também tinham valor como “carta de amor”.

Mais do que um material importante para quem estuda Ana C., as missivas também são ótimas de ler. Bem ao seu estilo, a autora se arrisca em experimentações de todos os tipos, mistura idiomas, brinca com a pontuação (“me desvirgulei outra vez”) e faz poesia em forma de desenhos e até de planilha (como uma programação que envolve atividades apenas com Luiz).

Escrevendo com urgência, cansa ao máximo o próprio coração e, perdidamente apaixonada, se expõe sem medo (“O estilo é cafona e eu estou tão admiravelmente sem máscara”, confessa). Deixa por todos os cantos suas pontas soltas de lirismo (“De tantos suspiros ignorados minha sobrevivência sem te sobrever é fantasma”) e embarca na montanha-russa de sentimentos tão própria dessa fase da vida (“Minha cabeça também, está tudo espiral lá dentro”).

— Ela estava vivendo um turbilhão de coisas, uma paixão promissora, um novo país, o interesse por tantas coisas diferentes — lembra Alice Sant’Anna, editora da Companhia das Letras e poeta influenciada por Ana C. — É uma Ana com a fragilidade da adolescência e ao mesmo tempo muito segura de si. Com ela, fragilidade e confiança andam juntas.

Autor de ANA C.: O SANGUE DE UMA POETA, o crítico Ítalo Moriconi concorda que a Ana adolescente prenuncia aquela que despontaria na cena carioca a partir dos anos 1970.

— A Ana C. com quem eu convivi em anos um pouco posteriores a esses das cartas era assim mesmo: constantemente antenada com todos os assuntos da política e da cultura — afirma. — Era uma Ana que tinha gosto de discutir temas intelectuais, de se posicionar nos debates intelectuais em voga nos anos 1970.

Em 1982, um ano antes de morrer, ela lançaria A TEUS PÉS, seu último livro de poemas publicado em vida. Considerada um clássico, a obra completa quatro décadas.

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Luiz Augusto Ramalho na Alemanha, em 1969 — Foto: Divulgação
 

O amor de Ana e Luiz Augusto Ramalho acabou não resistindo ao tempo. Após muitas cartas trocadas, os dois se reencontraram pessoalmente em 1970 em Aachen, cidade alemã que faz fronteira com Bélgica e Holanda. Chegaram a ir juntos num festival de rock conhecido como “o Woodstock da Alemanha”, mas as coisas não eram mais as mesmas e eles não se reconheciam mais. “Não conseguimos traduzir o ânimo, o espírito das cartas”, escreve ele no prefácio do livro.

Em 2020, no início da pandemia, Ana C. voltou ao pensamento do antigo namorado. O sociólogo passou a vê-la em sonhos recorrentes, ela já senhora, recatada e rodeada de amigos. Questionada sobre o seu desaparecimento, a aparição lhe disse: “Assim foi melhor para todos.”

— Depois de separados, continuei acompanhando a carreira dela, minha mãe sempre mandava recortes das matérias sobre Ana que saíam na imprensa — conta Luiz. — Também a reencontrava algumas vezes quando ia ao Rio. Estava sempre acompanhada de um séquito de homens e mulheres apaixonados por ela. Eu não me sentia muito confortável com isso, mas todos sabíamos que ela ganharia essa importância, pois era linda, inteligente, brilhante.

Havia, porém, uma angústia perene na poeta, que acabou ficando mais clara para Luiz após o seu suicídio. Especialmente nas cartas que ela lhe enviara já de regresso ao Brasil.

“Luiz, é inacreditável a diluição que acontece por aqui”, escreveu ela em outubro de 1970. “Não me deu nenhum desespero, antes uma vontade de dormir aos sábados ou sentar de olhos parados e ver os cenários imutáveis e as barbas crescendo e a vida se depurando em direção aos essenciais. Copacabana é um inferno urbano. Ninguém se move.”:

— Escrevi a Ana dizendo que tinha saudades do Brasil, e ela me respondeu: “Luiz, eu queria ter as tuas saudades.”