2004: AH! BRASÍLIA (LOBÃO FOI NO GABINETE DO GIL E NÃO PASSOU O SOM)

AH! BRASÍLIA!

por Mário Pazcheco

15 set. / 2004 - Nos 80s, a sensação musical ficou por conta da Venom, quando esteve no Ginásio de Esportes, e da Exciter, do inesquecível baterista Dan Beehler, doido de vódica, esmurrando, cantando e roubando a cena, fazendo o melhor rock’n’roll que aquele ginásio tremeu ao ouvir. Eu era franzino, e algum dos seguranças me deixava entrar. Na ditadura, os porteiros nos colocavam para ver a corrida de carros e perfilávamos ao lado dos generais.
Pátio Brasil – hoje. Brasília é uma tristeza cultural, com os seus palcos de lona preta parecendo invasão de satélite. Com as pessoas acima de 65 anos desacompanhadas, sem fazer valer os seus direitos, diante daquelas insensíveis perante até os próprios direitos. Os seguranças em preto indefectível e cabelo raspado, com os seus interfones e falta de objetivo, ganham 20 contos. O balcão de informação funciona precariamente. No teatro ensaiado, todos correndo e se ocupando para deleitarem os seus ouvidos. E após o show? O caviar é no quarto andar...
Laços consanguíneos ainda abrem a tampa da privada. É primário e ridículo jornalista dar carteirada para o filho com LP do Lobão na mão para pegar autógrafo.
Sinceramente, é ridículo ficar frente a frente com o ídolo, segurando a carteira de jornalista, para interpelá-lo: “Dizem que você já recebeu o cachê!” Lobão: “Não tô sabendo de nada!” Na outra ponta, o produtor pede para ele não polemizar.
Cara! Eu vivi a cena nos bastidores, e não vi o povão indo embora frustrado sem ver o seu ídolo, que não passou o som porque estava com o Ministro da Cultura.
Lá fora, um contingente carente de fãs se presta à homenagem da exclusão deles mesmos. Um playboy com uma garrafa de 51, e os seguranças fazem vista grossa.
Se fosse você, ou eu, entraríamos na porrada. E o mais ridículo: a garrafa de 51 consegue chamar a atenção de uma mina. Isto é, veja o teatro dos vampiros, ou é poser mesmo? Show de rock para playboy sem playback. A única cena insólita: um sósia do Lobão mais perfeito que a sombra dele; quando me aproximo do Lobão, me lembro imediatamente daquele garoto; ele merecia estar aqui. Mas ele não foi convidado, não tem carteira, não escreve no jornal do Múcio Athayde, não tem câmera digital e não vai ter chance de levar as garrafas cheias do camarim pra casa.
O santo nome de Deus é invocado em vão pelos produtores, quando Lobão está no palco. Eu também subo e sinto a vibração dos meus primeiros dias de rock.
Lobão literalmente é uma grande figura, fala tudo sobre tudo, basta perguntar. Hoje o som não conseguiu conciliar a voz e o pedal, ele tentou quatro vezes. Irei no próximo show dele. E pagando.
Indiretamente eu recebi o CD-demo do grupo João Ninguém, abri o invólucro e coloquei dentro o release, para não perder a mensagem. No camarim, a fumaça subia, e eu via como os produtores são condescendentes. E um nervoso Lobão com medo de ser linchado chutou o pau da barraca. Lobão fez a autocrítica de milhares em cima dele mesmo, e sozinho. Perdi a oportunidade de fazer fotos históricas dos transeuntes frente ao Pátio Brasil, conversando numa boa com Lobão, ao invés de estarem vendo Senhora dos Milagres. Ontem Lobão foi o homem mais público de Brasília.
Outros CDs de estrelas do saudoso rock Brasília apareceram nas mãos de Lobão: “Olha! O que eu estou fazendo.” Ah! O celular não para, e outras estrelas do rock Brasília perguntam o quarto do hotel: “718!”
Fazia tempo que eu não andava de van com ar refrigerado. Me lembrei quando o Zeferino Alves Neto (†) me chamou, e no banco de trás estava o John Mayall. Eu lhe disse um cálido “Good Morning!”.
O meu Passat Vintage deu pane igual ao som do show. A banda teve que empurrar o carro, Robson o baterista ainda tentou consertar. O carro tá no Setor Hoteleiro Sul até hoje.
Atravessei o Conic e mostrei a Berlin Discos e o Quiosque Cultural do Ivan a Byra Dorneles (emérito colaborador Do Próprio Bol$o, que mora em Vidigal-RJ, e produtor executivo do show). Peguei o táxi de jornal e fomos ao Beirute velho de guerra. Lá estavam KaphaGérson, André Pedra e Iolovitch, apresentados ao Byra Dorneles. O mesmo táxi deixou Byra Dorneles no hotel, e coincidentemente também me deixou em casa. O maior patrimônio de Brasília somos nós mesmos: Byra, Lobão, Daniel, Robson vão voltar!

beira

15 set. / 2004 - Ao fundo de camiseta vermelha, roqueiro do Cruzeiro; o cameraman Magu Cartabranca com os polegares levantados; o pintor de entrequadras Paulo Iolovitch e Pazcheco veste Hendrix

• Cássia Eller – Cidadã Honorária

Dezembro 2004 - Por iniciativa das deputadas Arlete Sampaio e Erika Kokay, a Câmara Legislativa aprovou o projeto que dá o título de cidadã honorária (post-mortem) à cantora Cássia Eller.
Também por iniciativa de Arlete, Cássia Eller já é nome da Sala Funarte, que fica atrás da Torre de TV, no Eixo Monumental. “É uma justa e merecida homenagem à cantora, que viveu e desenvolveu importante parte de sua carreira musical em Brasília”, disse Arlete.

• ‘Presença’ (Carlos Augusto Cacá*)

No holocausto da nossa cultura,
O desafio da sobrevivência
Corrompeu nossa literatura,
Nossas artes são quase demência.
Cresce a força dos temas banais,
Baluartes da destruição.
Caça-níqueis de pires na mão
Desonrando nossos ancestrais.
Restam poucos resistindo em luta,
Mas quem resta está atento, escuta.
Há quem honre o leito de nascença.
Há um Ivan em cada um de nós
Pra verter em livros nossa voz.
Pra que saibam da nossa presença.

*Do livro Fadas Guerreiras. O escritor Carlos Augusto Cacá desenvolve o seu trabalho editorial na Tribo das Artes, em Taguatinga. Ele integra o universo não voltado egoisticamente para o autoral, a sua poesia é livre. Ele quer ver o seu verso no ar, ele quer ver o seu verso voar...

• ‘Idiota’

Poema roubado num bar; desde então, não tive notícias de Carlos Goullart

Gosto de refletir
De quanto eu era
Idiota
E novamente gostarei
De refletir
De quanto eu era
Idiota

  O Blues de Lu nos tira de casa e da cadeira

22 dez. / 2004 - Brasília – Feitiço Mineiro – A velha história da tartaruga que perde a cabeça mas não o blues. Da mesma maneira, a cantora de blues Lu consegue reinventar com qualidade um repertório clássico. Ela supera a apropriação e a adaptação, cria estilo e escola. Essas características me atraem na voz cativante e disciplinada da cantora.
Eric Clapton disse que “não se pode tocar blues de barriga cheia”. Essa condicionalidade continua valendo. Os atuais guitarristas de blues devem algo a Eric Clapton: afinal, não foi ele que eletrificou “Crossroads”, tornando-a imprescindível em milhares de repertórios?
Lu apresenta um blues com pegada feminina e apelo sexual, perto do fogo. A sua voz doce balbuciando fomenta a liberação dos quadris e palmas – a ordem é dançar! Suas interpretações são convincentemente carregadas pela dor. O seu repertório é hegemonicamente masculino, pois ela gosta principalmente de Jimmy Reed, Robert Johnson e, lógico, Rolling Stones.
Neste show no Feitiço Mineiro, também estavam presentes standards, de Jimi Hendrix até Stevie Ray Vaughan. O repertório é identificável sem dificuldade, e você o curte sem medo de mais na frente encontrar algo que o desvie da viagem nostálgica e sentimental. Lu impõe luz própria às interpretações, e como é bom ouvi-la com uma aparelhagem de voz decente, num momento inspirado de muita esperança para o ano que começa.
Skaravelho é a banda que acompanha Lu Blues. Vi algumas encarnações dessa banda variável, que se firmou a partir da cozinha de Rubão (†), que fez um belo trabalho na bateria, e de Igor, que se estabilizou de vez no contrabaixo, onde produziu uma retaguarda afiada. A presença de Christian nos teclados trouxe um timbre de Jimmy Smith e proporcionou improvisos alternados entre a guitarra e os teclados. Neste show, João tocou a guitarra sem firulas. Ele sabe que o blues não é moderno, que não precisa de intervenções rápidas e floreadas, carregadas de notas, como alguns discípulos insistem. A sua guitarra fluiu num mar metálico, sempre ondulando nos volumes do amplificador e do pedal, tirando assim um som sujo e compacto. De estilo econômico e vigoroso. João tocou uma guitarra linda em “Little Wing”, que valorizou ainda mais as interpretações anteriores.
Discreto, o seu slide desliza na hora certa. A sua ausência da banda deixará um buraco, mas as histórias mudam...
O notável no blues é a possibilidade de improvisação. O clima para sair o som funciona... se os músicos têm alma! Skaravelho precisa de mais ensaios e entrosamento, mas nesta apresentação a qualidade individual como estratégia funcionou. No futuro, quando a banda estiver mais segura e à vontade, Lu Blues poderá empregar todo o potencial da sua garganta. Resta esperar, e torcer.

CD ‘Para Todas’ (Os Pedras)

Os ‘peores’ discos são aqueles que gostaríamos de ter produzido
André Pedra, vocal; Marcelo Pedreira, guitarra e voz; Ricardo Ned Pedra, guitarra; Fabiano D’Marte, contrabaixo; Humberto Sprovieri, bateria.


Faixas – 1. “Pegadas”/ 2. “Mãe Terra” / 3. “Oceano de pensamentos” / 4. “Concreto” / 5. “Tigresa” / 6. “Miragem” / 7. “Planeta dos Macacos” / 8. “Aurora” / 9. “Pedras para que te quero” / 10. “Na Espanha... Brasília, sei lá!” / 11. “Dança do Saddam” / 12. “Mundo melhor” / 13. “Mel” / 14. “É lei tombar ao chão” / 15. “Detranco” / 16. “Mulher versos homem” / 17. “Não importa o que digam” / 18. “Desce outra” / 19. “Arco-íris” / 20. “Borboletinha”

Dos 10 aos 11 anos, cantei fora do tom nas missas de domingo. Meu tio ouviu aquele disparate e pensou: Ele está propositalmente avacalhando o vocal...
Magoado mesmo fiquei quando o Zezé me pediu pra fazer mímica no coro de “Lucy in the Sky...”, pois umas gatas iam aparecer pra ver o ensaio.
Nos 70s, elegemos um LP do Jo Jo Gune como o pior da década. Nos 80s, o eleito foi Rikki and The Last Days of The Earth. E, nos 90s e milênio, caçadores ao título de o pior disco de rock continuam aparecendo, entre eles vários apaniguados de gravadoras cantando em inglêis.
Jamais ousaria menosprezar o esforço contundente de qualquer atividade, que de maneira atávica tenha trazido à tona as amarguras que eu vivi. Ouvindo o CD Para Todas, dos Pedras, o mais recente de uma sua trilogia, essas experiências marcantes afloraram.
Para Todas é uma colagem de sons, ritmos, programações e denúncias. André Pedra atropela a métrica e versifica o seu recado pacifista, anarquista.
A faixa “Borboletinha” ficaria muito bem na voz da Xuxa; “Detranco” é um libelo contra a máfia dos pardais fiscalizadores de trânsito. Poderia ser gravada pelo Gugu.
Isso é o lado falcatrua do rock’n’roll. “É lei tombar ao chão” é uma balada tão contundente que o mestre Franz Krajcberg ficaria emocionado com tal hino ecológico. É claro que há o espírito de Renato Russo, uma pegada do Marciano Sodomita, até de Ian Curtis. E uma guitarra maníaca, apoiada num pedal fuzz o tempo todo.
Faz duas semanas que ouço este CD. André Pedra, que veio da Paraíba para Brasília, é performer, poeta e pedreiro, e ainda acredita que o seu disco é um clássico.
Ele começa o dia ouvindo o seu disco duas vezes em seguida. São 20 faixas. De esperança, amargura e rimas tolas: “Mi Sol girassol.” Em “Arco-íris” (a faixa que mais gostei), André não economiza em mostrar a grandeza de quem possui uma alma infantil e, no entanto, luta contra os inimigos, as máfias, os canalhas, os safados, o desmatamento, e Bush que se exploda! Está recuperado o espírito zombeteiro do rock’n’roll. Corta essa de aula de canto, porque um milhão tentaram, e Os Pedras acertaram em cheio na vidraça do establishment. Esta é a mensagem de “Não Importa o que Digam”. O som estilhaçado das pedras quebrando vidraças.
Para todas poderia tocar na sua alma, no carro, na repartição pública, na Rádio Senado, mas o establishment quer rock de academia, de escola, de gravadora, de faz de conta.
Chega de caô, de papo furado: “A mulher tem vagina e o homem procura a rima.”