ARNADO BAPTISTA CUSPIU NA CARA DA MORTE (1982)

ar naldo 

Criação e Mistério

O mutante que cuspiu na cara da morte
(Marcos Faerman de São Paulo)

 19 de junho de 1982 – Zero Hora, Porto Alegre – Arnaldo esteve tão perto de morrer, e não morreu, que dá até vontade da gente rir desta bruxa velha. Lá nos 60s, Arnaldo era a própria vida. Estava longe de saltar do terceiro andar de um velho hospital. Mas se ele pulou e não morreu, por que não rir da Bruxa da morte? Jimi Hendrix se foi; Janis Joplin se foi; Torquato Neto se foi; Elis Regina se foi. Mas este menino que era a grande cabeça dos Mutantes está vivo. E a gente tem vontade de rir da Bruxa Morte.

 Estava chovendo e um cheiro de merda batia das margens do rio Tietê. A maldita poluição caía sobre São Paulo já nem tão desvairada – e eu e Maria Inês estávamos no apartamento de uma amiga; por ali estava uma foto de Arnaldo nos olhando. Casaco de couro, a cara do James Dean – o menino do rock, o menino da pauleira, tanta piração naquele coração que explodia, finalmente, nuns olhos calmos. Ouvíamos Arnaldo e só Arnaldo, e ele nos contava como um grupo de meninas que amava Arnaldo ficara tantos dias, e tantos dias e tantas noites, no hospital, cuidando de um corpo que a medicina dizia que tão provavelmente ia morrer.

 Eram magias, eram amores; era o unguento, era o tempo; era também a música que passava a sua energia por aquela Uti – aquela parede branca, ela mesma morta e insípida, lugar de músico morrer e não viver: ele tinha saltado para o nada ou tudo no primeiro dia deste ano sem energia, em que estes imbecis generais argentinos resolveram assassinar seus meninos não em masmorras, mas em um a guerra assassina; a guerra de Arnaldo vinha de antes, vinha de tanto tempo atrás.

 Foi Mutante. Foi semimutante. Foi mais do que Mutante. Não ria tanto quanto Rita Lee. Não era digestivo. Era outra barra. Era barra pesada mesmo. Tentou seus voos sozinho. Sentou ao piano e cantou, inventou, e num disco que está aí, ele fica nos perguntando – o belo corpo no espaço:

 – Será que vou virar bolor?
 E ele vem e nos conta – nos grita no coração sem nada de todos nós: “venho me apegando ao passado e em ter você ao meu lado/não gosto do Alice Cooper/Onde é que está meu rock’n’roll?” E aí ele vem e grita:

– Será que eu vou morrer, será que eu vou morrer de dor?

Estamos olhando umas fotos antigas do Arnaldo. Ele está com o filhinho Daniel, cinco anos. Ôi Daniel. Teu pai é maravilhoso. Mas teu pai não é digestivo, nem gordo; queijinho polenguinho que a gente come mexendo a bunda. Teu pai é uma paulada na cabeça desta gente tão alegre. Torquato Neto morreu há tanto tempo. Usava uma capa negra. Era um Drácula. Foi um vampiro. Foi o cara mais maravilhoso do Tropicalismo. Morreu e ficou todo mundo sem jeito. Todos os amigos dele diziam que não tinham nada com isto. Mas teu pai não morreu, Daniel. Ouça ele nos discos que vem se apegando aos seus sonhos, e à velha motocicleta, e que não gosta do pessoal da Nasa;

CADÊ MEU DISCO VOADOR
Este menino escreve contos em inglês e está me olhando em seu blusão de couro. Está cantando numa fita gravada no estúdio de Rogério Duprat, e que gravou com seus amigos da
PATRULHA DO ESPAÇO
E onde estão os teus discos, Arnaldo? Vocês já ouviram o último Arnaldo, sozinho no piano, com sua voz de vento & chuva; tanta chuva, que nem nesta noite de São Paulo E eu fiquei lembrando – vagabundeando por São Paulo, coração em certas árvores da Redenção, uma música que vinha em fita desafinada, Arnaldo caminhava também por estas alamedas de Porto Alegre, e me falava da morte, dum jeito tão bonito, coisa que me chegou com a chuva – e que eu canto com vocês:

“Imagino a minha morte
E a minha continuação
Livre sem meu corpo
Só amando por aí
Energia pura e simples
Para além da Imaginação.
Ser o vento sem sentir
Numa enorme transação
Quente o frio vou sentir
Sem orelha sou nariz
Ser amado sem ter sexo
Ser feliz como ninguém
E a procura continua
Numa enorme evolução”.

Arnaldo é um mutante de 34 anos, que saiu do hospital onde pulou pra morrer, e sem querer saiu do outro lado do espelho – que nem Alice, o coelho, ou o gato que é só um sorriso.