De quando o rock era contracultura

De quando o rock era contracultura*
por: Mário Pacheco

Psicodelismo é uma “manifestação do espírito”, termo derivado da aglutinação do grego psique (alma) e de delvo (relevo) unido ao sufixo, ismo. O psicodelismo é o espansor enigmático e indecifrável da métrica e dos três acordes do pubescente rock’n’roll desligando-se dos casos de amor, bancos de trás de automóveis e velocidade. Tomado pelo alucinógeno o rock’n’roll foi possuído, - até aquele momento ele possuía - a música revive uma experiência ancestral preconizada por culturas antigas - o psicodelismo, a nova experiência da percepção na história musical moderna de nosso século não dispensa a ortodoxia ritualística e o fulgor das cores. Ao psicodelismo relaciona-se tudo que possa revelar o próprio eu, e a própria personalidade, muitas vezes mascaradas pelas convenções sociais. Sem as máscaras cabe a interpretação individual relacionar o termo psicodélico à realidade vivida e que muitas vezes não difere do inferno. O termo foi inicialmente aplicado no âmbito científico no campo da psiquiatria em 1937 pelo cientista canadense Humphry Osmond, criador do termo psichodelic, depois corrigido para psichedelic, a fim de se desvencilhar da conotação de hospício que tinha psicho. Décadas depois a palavra escapou do restrito jargão científico para popularizar-se através do movimento comunitário do acid-rock e da arte lisérgica. 

Além dos compostos químicos, dos mártires da contracultura, da summa importância da poética Beat alinhavada pela embocadura dos sopros do jazz (outra influência tribal); gerou as épicas e errantes narrativas cantadas propositalmente fora de tom por Bob Dylan que insuflou o guitarrista Hendrix a compor, cantar e até gravar originais de Dylan. Indiretamente Dylan direcionou as correntes que encontraram o sentido quando os Byrds eletrificaram a sua Mr. Tambourine Man, criando o folk-rock, - folk-psicodélico? Coisa dos anos 90 com o uso de cítara.

O jargão Beat e o lirismo errante de Zimmerman, extra América, aglutinaram-se aos sons espaciais de pioneiros do rock instrumental, combos; The Shadows e The Ventures, que em 1965, lançaram um disco de som espacial, e já viajavam por outras galáxias... Quem ainda não julgou ouvir na guitarra de Syd Barrett reminiscências dessas aliterações e ecos da batida selvagem da guitarra retangular de Bo Didley?

Os Beatles são os primeiros a dispor da melhor tecnologia de estúdio da época, no entanto, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band - a obra-fundamental dos Beatles não é a precursora do psicodelismo e sim do rock progressivo. Nos Estados Unidos, os Beach Boys, rivais diretos dos Beatles, gravaram o álbum Pet Sounds (1966) e no mesmo ano surgiu Freak Out! de Frank Zappa and the Mothers of Invention, álbuns com sonoridades e formatos não distantes de obras-primas-conceituais, sem esquecer que no mesmo ano os Beatles lançaram Revolver este sim o verdadeiro álbum psicodélico dos ingleses. 

No psicodelismo, o virtuosismo não é o aspecto importante, não é necessário ser um guitar hero. No acid-rock conta-se mais a sensibilidade para construir e incorporar às fitas os ruídos e sons captados pelos sentidos, não só a audição é a responsável pela compreensão do som, ver o som passou a ser tão importante como ouvir. O psicodelismo permitiu musicalmente enxergar as cores do som, ver Deus. Os andamentos e as tonalidades não perderam sua importância mas ficaram próximos não importando a velocidade da fita e se ela é tocada ao contrário. Esse estado de espírito criador chega a ser puro. O próprio Syd Barrett é o embrião, toque folk nas cordas do violão, dicção fanhosa como Dylan e o talento ímpar nos temas abordados da existência que permeiam a vida quando você descobre que está terrivelmente só, Syd Barrett é o mito, o louco e acima de tudo o poeta de melhor característica psicodélica. 

O psicodelismo está nas texturas sonoras das canções e de como elas foram criadas. As associações ousadas de ruídos e instrumentos, ocidente e as portas abertas do admirável e revolucionário oriente, dissonâncias, distorções e efeitos criados dentro do estúdio conferiram uma nova dimensão na realidade, mais afeita à arte e ao imaginário onde o artista exalta a liberdade mesmo que num paraíso artificial. Para atingir esse satori não é regra passar pelos refrescos elétricos. A virtude psicodélica é qualquer um pode ter a receita de ser o que melhor lhe aprouver...

*Publicado na revista psicodélica "De Quando o rock era contracultura - vol. 1"

A busca da Humanização das Instituições*

Foi necessário um acontecimento totalmente imprevisível pelos políticos e sociólogos para que a comunidade internacional despertasse para a juventude. 

Este acontecimento poderia ter sido a fantástica explosão de maio de 68 na Europa, principalmente na França. O recuo é suficiente para nos fazer entender o que essa explosão trouxe de realmente original para a compreensão da sociedade. Os componentes de violência, as depredações, os ataques ao patrimônio institucional da sociedade e até mesmo as vagas utopias políticas, tudo isto foi acidental no movimento de 68. O essencial se resume num ataque frontal “aos valores do grupo adulto”, às grandes “falsas verdades das ideologias”. Basta relembrar as palavras-chave da grande explosão: confrontação, contestação, marginalização, contracultura, cultura jovem, proibido proibir, pela transcendência, imaginação no poder. Os jovens revolucionários de 68 reivindicavam fundamentalmente uma “mudança de mentalidade das instituições”. Mas tudo isto dentro do contexto de uma sociedade de abundância, sem jamais chegar à denúncia essencial da própria instituição em si. Como diz textualmente o Relatório geral sobre a situação da juventude no mundo, elaborado pela UNESCO: “esses jovens tinham a sensação de um espaço mental ilimitado que permitia conceber todas as utopias e realizá-las rapidamente. Até o movimento aparentemente austero das comunidades hippies se fundamentava sobre o postulado da permanência de uma sociedade rica e próspera”. A expressão mais eloqüente desta busca de humanização das instituições e de recusa dos velhos valores parece ter sido Woodstock, que reuniu meio milhão de jovens. Para o sociólogo italiano, Franco Ferrarotti no relatório da UNESCO-1982, “Woodstock é importante como ponto de referencia cronológica. A cultura dos jovens celebrou ali sua presença, e se confirmou, ao mesmo tempo que se autocomemorou. 

Mas no quadro institucional e objetivo de uma sociedade opulenta, e que podia perfeitamente se permitir este luxo, o caráter permissivista era perfeitamente inteligível no interior de um esquema de produção e consumo caracterizado por um índice de produtividade bastante elevado. Na época, todo mundo nutria a ilusão que o mercado de trabalho e as matérias-primas básicas eram ilimitados, mais ou menos à imagem de Deus e da natureza criada por Deus”. E para dar uma idéia das transformações ocorridas, uma sentença de Ferrarotti: “Woodstock tem apenas 13 anos e parece que ocorreu há séculos”. Woodstock durou um tempo que extrapolou os calendários.

O fenômeno hippie, a explosão de maio de 68, Woodstock, os perdidos do Vietnã e a conduta global da juventude moderna reside exatamente no seguinte: a imaginação no poder não reivindica mais apenas uma mudança de valores num contexto de utopia, mas uma modificação radical das instituições num contexto de sobrevivência. A queixa agora se refere às próprias estruturas.

Mas os hippies não eram anjos. Ou, pelo menos, não só anjos. O hippismo estava cheio de contradições. Pacifistas e lutando contra o sistema. Colocando o amor como a mais alta realização e tendo que conviver com as lutas pela liderança nas comunidades.

A juventude, que na década de 50 trocou o bolero pelo rock’n’roll, que fez dos transviados os seus ídolos, trazia em si as sementes da rebeldia coletiva. Ela explodiria, daí a pouco, pelo mundo inteiro, nos festivais de música, nos acampamentos hippies, nas passeatas dos estudantes. De cabelos compridos, uma flor nas mãos, e às vezes uma metralhadora, os jovens daquela época tinham como slogan a palavra protesto: foi sob o signo da contestação que os anos 60 permaneceram.

O hippismo contestou a sociedade fugindo dela, vivendo à margem das obrigações e imposições sociais, não possuíam um líder que encarnasse suas características, embora tenham muitos inspiradores, foi a resposta que os jovens encontraram para vencer as contradições de sua época. A plataforma democrática e liberal de Kennedy coexistia com o fracassado ataque à Baia dos Porcos, em Cuba, e com a escalada do envolvimento americano no Vietnã. Em 1965 os Estados Unidos mantinham 75 mil homens em luta no sudeste asiático. A ameaça da guerra, o sentimento do fracasso o da vergonha nacional levavam a juventude a buscar outras realidades. A pílula libertou a mulher para aqueles que escreveram sobre o tema décadas depois aludindo que “também abria-se as fronteiras da permissidade sexual” errando o alvo, a frase de Luís Carlos Maciel ajuda-nos a compreender o equívoco: “A Aids existe inventada pelo sentimento de culpa das massas, em face da libertação sexual deflagrada nos anos 60”. Fazia-se sexo como antigamente, só que abordava-se mais e abertamente ao contrário das décadas anteriores. As drogas também prometiam a liberdade do corpo e do espírito. Ser jovem passou a ser a classe contemplada com o passaporte nestas viagens ligadas às polaridades do perigo, da fatalidade, da aventura, mas o que é a vida? Aldous Huxley, respondeu: “céu e inferno”...