2001: STOCKHAUSEN: A VANGUARDA SOU EU

 5 dez. / 2007 - Morre o compositor alemão Karlheinz Stockhausen

Entrevista: Karlheinz Stockhausen

A Vanguarda sou eu
(Sérgio Martins*)

Um dos pais da música moderna, o maestro e compositor alemão ataca regentes famosos e diz que o gênero eletrônico ainda pode causar uma revolução.

Goste-se ou não das obras de Karlheinz Stockhausen, não há como negar a importância do maestro alemão para a música contemporânea. Nascido em 22 de agosto de 1928, no vilarejo de Mödrath, perto da cidade de Colônia, ele é considerado o maior compositor de seu país no período pós-guerra. Suas ousadias incluem a criação de concertos que incorporam barulhos da natureza a até um quarteto para helicópteros. Acima de tudo, Stockhausen é considerado o pai da música eletrônica. Por isso se tornou influente também no universo pop. Dos Beatles ao Grateful Dead, banda preferida dos hippies californianos, muito foram os roqueiros seduzidos por seu vanguardismo. A nova geração tecno continua a venerá-lo. Stockhausen é a principal atração do Carlton Arts, festival que acontece de 25 de junho a primeiro de julho em São Paulo. Ele fará duas apresentações na cidade, nas quais mostrará as obras ‘Oktophonie, Kontakte e Hymnen.’. Nesta entrevista, feita na Alemanha, Stockhausen não poupa críticas aos maestros da música tradicional e diz que não gosta de manter contato com o mundo exterior. “Atrapalha o meu trabalho”.

Veja — O senhor é considerado um dos pais da música eletrônica...

Stockhausen
 Desde cedo quis me diferenciar dos outros autores alemães. Eu tinha aulas de música em um conservatório de Colônia e estava estudando a sonata para dois pianos e percussão do húngaro Bela Bartók. Foi quando ouvi no rádio uma obra de Stravinsky. Fiquei impressionado: aquilo era muito melhor do que música tradicional. Passei, então, a procurar outros estilos que fugiam da mesmice. Como as composições atonais do austríaco Anton Webern ou o lado mais experimental do jazz, como o bebop e o boogie-woogie. Até hoje procuro seguir essa filosofia.

Veja
 O senhor era uma criança quando II Guerra Mundial começou. Quais lembranças tem desse período?

Stockhausen
 Eu era novo demais para lutar, mas perdi meu pai, vários primos e amigos queridos no campo de batalha. Trabalhei em um hospital na minha cidade natal, Colônia, e pude ver os milhares de feridos e a destruição de algumas jóias da arquitetura medieval alemã.

Veja
 Como se sente a respeito do fato de maestros famosos, como Herbert von Karajan e Wilhelm Furtwängler, terem aderido ao nazismo?

Stockhausen
 É melhor deixar os mortos repousar em paz.

Veja
 Qual a opinião do senhor em relação ao crescimento do movimento neonazista na Alemanha?

Stockhausen
 Eu não sei exatamente o que está ocorrendo, porque não leio jornais, não vejo televisão e muito menos compro revista. Estou tão concentrado em minha obra que não tenho tempo a perder com o que acontece no mundo. A minha única fonte de informação é uma publicação sobre astronomia que um amigo me envia dos Estados Unidos.

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 O senhor acredita que existe vida em outros planetas?

Stockhausen
 Em outras galáxias, sim. Na minha imaginação, já viajei para diversos planetas. Dessa maneira, consigo compor minhas melhores obras. Como o meu quarteto para helicópteros, uma das peças que me deixam mais orgulhoso.

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 Pelo menos o senhor ficou sabendo da polêmica com o maestro argentino Daniel Barenboim? Ele despertou a ira dos judeus ao propor a apresentação de uma ópera de Wagner em Jerusalém.

Stockhausen
 Acho que os judeus deveriam separar a música de Wagner de seu passado anti-semita. E ninguém melhor do que Barenboim, que é judeu, para explicar isso e mostrar que Wagner é bom – ainda que ele nunca tenha me agradado. A única coisa que aturo de Wagner é a abertura de Tristão e Isolda.

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 O que o senhor pensa da obra de compositores clássicos como Bach, Beethoven, Brahms e Mahler?

Stockhausen
 Bach provou que realmente é possível louvar a Deus por meio da música. Beethoven me ensinou a controlar um amplo leque de formas de expressão. Com Brahms, aprendi a ir sempre em busca das fontes originais. Mahler, finalmente, me fez ver que as emoções musicais mais intensas são capazes de nos aproximar de Adão, o primeiro homem.

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 O senhor foi companheiro de classe do maestro francês Pierre Boulez, outro talento da música moderna. Boulez é conhecido por espinafrar maestros e escalas musicais. O senhor compartilha dessas opiniões fortes?

Stockhausen
 Eu conheci Pierre Boulez quando tinha 23 anos e fui estudar em Paris fomos alunos do compositor Olivier Messiaen. Somos muito amigos, mas eu não sei o que se passa na cabeça dele. Boulez gosta de espinafrar outros maestros, mas está regendo de maneira cada vez mais porca. Em 1997, eu o vi reger um concerto de Schumann em Osaka e foi terrível. Ele também estragou a oitava sinfonia de Bruckner. Boulez gosta de reger autores franceses sem expressão apenas para parecer moderno. Mas esses concertos não acrescentam nada à sua carreira.

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 O que acha do italiano Cláudio Abbado, regente da Filarmônica de Berlim?

Stockhausen
 Ele é horroroso, fez coisas terríveis com as minhas criações. Cláudio Abbado regeu um concerto meu na Alemanha e simplesmente estragou minha obra. Fiquei tão furioso que mandei uma carta para ele. Abbado nunca me respondeu. Depois, vim a saber que não havia ensaiado o suficiente. Dos catorze dias de ensaios previstos, compareceu apenas a dois.

Veja
 É interessante, porque Cláudio Abbado costuma gabar-se das muitas horas de ensaios gastos com a Filarmônica de Berlim.

Stockhausen
 Sinceramente, ele não entende a minha obra. Cláudio Abbado já havia destruído uma criação minha quando regia a orquestra do Allá Scalla de Milão. O problema desses maestros é que eles não conseguem entender a precisão das minhas obras. Elas têm de ser ensaiadas exaustivamente durante dez, doze dias até ficar perfeito. Mas os regentes não têm tempo para isso. Eles sabem que podem ganhar até dez vezes mais tocando obras de Beethoven e Bach. Um dos poucos maestros que entendem a minha obra é o americano David Robertson.

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 O senhor consegue executar as obras que escreve para o piano?

Stockhausen
 Você pode até não acreditar, mas sou um excelente pianista... Um excelente pianista! Só que hoje não faço mais solos. Apenas treino virtuoses.

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 Quem é o melhor intérprete de suas obras? Um homem ou um robô?

Stockhausen  
Uma mulher. Qualquer uma.

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 Não cheira a enganação apresentar um concerto de música em que o senhor apenas aperta alguns botões?

Stockhausen  Minha obra é bem mais do que apertar botões. Ela exige ambientação. Os meus concertos costumam ser acompanhados de imagens projetadas num telão, e a sala de concerto precisa te ruma acústica impecável, com alto-falantes de boa qualidade. Vistoriar tudo isso dá muito trabalho.

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 Como o senhor lida com eventuais salas de concerto vazias e gente que não gosta de seu estilo musical?

Stockhausen
 Sinceramente, não tenho esse tipo de problema. As salas em que toco estão sempre cheias e meus discos ainda vendem bem no mercado erudito.

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 Qual foi a pior reação dos admiradores da música tradicional a uma criação sua?

Stockhausen
 Em 1957, uma rádio de Colônia transmitiu trechos da minha obra. A reação foi tremenda. Diversos críticos de música clássica diziam que eu estava destroçando uma arte divina. Um deles, chamado Blummer, sugeriu às estações de rádio que proibissem a execução das minhas obras. De repente parecia que estávamos de volta aos tempos do III Reich. Mas eu já tinha me acostumado a isso. Na minha estréia com compositor, em 1953, o mundo se dividiu entre os pró e contra Stockhausen.

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 Hoje, parecem existir muito mais discípulos do senhor na música pop do que na música clássica.

Stockhausen
 Sem dúvida, eles gostam da minha criatividade. Karl Bartos, líder do grupo alemão de música eletrônica Kraftwerk, chegou a parar uma apresentação da banda para fazer elogios rasgados à minha obra. Nos anos 60, quando dei aulas de música na Califórnia, havia integrantes das bandas psicodélicas Jefferson Airplane e Grateful Dead entre meus alunos.

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 O senhor chegou a ser convidado a participar de "Sgt. Pepper's", o histórico álbum dos Beatles lançado em 1967. Por que essa parceria não se concretizou?

Stockhausen
Os Beatles sempre foram fãs do meu trabalho. Assim como eu, eles sempre tiveram muita criatividade. Fui procurado pelo empresário deles na época, Brian Epstein. Ele queria que eu bolasse arranjos para o grupo e fizesse um concerto ao lado deles. Mas Brian morreu e depois não consegui me entender com os novos empresários da banda. Por isso, minha participação em “Sgt. Pepper’s” se resumiu a uma aparição

     *Veja, 20 jun. / 2001.