Novas barbáries na Ilha de Wight



Novas barbáries na Ilha de Wight
(Mário Pacheco)


     Na edição do verão de 1969, o Festival da Ilha de Wight, ao largo da costa sul britânica, reuniu um quarto de milhão de pessoas que aclamaram triunfalmente o homem que, 4 anos antes tinha sido escorraçado de Newport: Bob Dylan quebrava o silêncio auto imposto com um concerto memorável, acompanhado pela The Band, integrando o grande elenco do festival.
     A ilha foi tomada por uma verdadeira horda de hippies, vindos de todas as partes da Europa Ocidental, e também da Austrália, Canadá e Estados Unidos. Desde o começo do verão, 120.000 hippies haviam ajuntado-se no Hide Park em Londres, 250.000 em Nova York, e 15 dias depois, quase 500.000 hippies celebraram freneticamente o verão americano nos acres da fazenda em Bethel, perto de Nova York. Os sociólogos, perplexos, puseram-se a indagar: “É uma nova revolução cultural?”.
    Confirmando a tese de Theodore Roszak, que afirmara que toda a população dos Estados Unidos abaixo dos trinta anos fora afetada pela “contracultura”. Está contracultura, ainda segundo Roszak, variou entre a posição dos militantes da esquerda até as aspirações da juventude hippie: o misticismo, a não violência e apelo erótico.
    O fluxo de jovens chegando à ilha, era da razão de 3.000 por hora, na última sexta-feira de agosto, pareciam o mesmo exército indígena de sempre. Homens de calças de brim, japonas remanescentes da guerra, camisolas floridas e turbantes. Nos pés, pesadas botas militares, sandálias, ou coisa nenhuma. As mulheres usavam vestidos fora do padrão da moda, xales, ponchos e toda uma coleção de enfeites, medalhões e penduricalhos exóticos. O único traço comum existente eram as longas e hirsutas cabeleiras chacoalhando ao som.
     Os seis mil americanos, australianos e canadenses se diferenciavam de seus colegas europeus pelo sotaque, de resto, abafado pelo som das guitarras, tambores, cítaras e campainhas de vaca, o animal sagrado da Índia, Meca de todo os hippies do mundo.
     Chegaram de carona, a pé e, em recurso extremo, com uma passagem de terceira classe. O dinheiro e a comida foram ganhos e economizados ao longo da peregrinação, em trocas de canções ou trabalhos artesanais. Entre os primeiros 75.000 que chegaram à ilha, nem a metade tinha o suficiente para comprar uma dúzia de maças: a viagem e o preço pago pelo ingresso os deixaram duros.
     Na Inglaterra no Hide Park, e também em Bethel, Nova York, os hippies não foram molestados pelas autoridades. Contudo, uma concentração de 200.000 deles assusta qualquer organização policial, e os 150 homens destacados para manter a ordem em Wight estavam simplesmente apavorados com a sua missão. Apesar de estarem acostumados a chamar os policiais de piggies (porcos) os hippies levaram ao extremo sua tática de não-violência, surpreendendo a pacata população da ilha e a própria polícia, com sua passividade. Em outros países europeus, exceto Inglaterra e Holanda, a polícia não morre de amores pelos errantes; e este é o motivo mais lógico para explicar o porquê de seu ajuntamento em Wight.
     Dentro e fora da enorme paliçada, cercada por meia centena de alto-falantes, com músicos que se revezavam, tocando sem parar, anunciaram uma mensagem de John Lennon que, disse: “Nós somos a geração bendita”. Os 200.000 da “geração bendita” estendidos, sentados ou mergulhados nas densas nuvens de fumaça não esboçaram nenhuma manifestação de violência. Um sociólogo americano disse: “parece o nascimento de uma nova religião onde o incenso foi substituído pela maconha”.
     Festas como a de Wight e outras realizadas no verão de 1969, deixaram os sociólogos sem saber o que dizer. Segundo o Prof. Michel Lancelot, “os jovens percebem que vivem no fim de uma época e sabem que são protagonistas de um mundo novo. Os hippies escolheram um caminho difícil: o da droga. Se ficarem agarrados a ela, poderemos chegar até a uma nova barbárie”. Barbárie mesmo foram os banheiros entupidos...
     Balanço psicodélico da primeira edição: “No último dia desta autêntica orgia pagã, pelo menos a metade dos participantes tiraram as roupas e invadiram as águas do canal da Mancha. Cinqüenta mil almoçaram cigarros de maconha e jantaram cápsulas de LSD. Trinta foram hospitalizados por abuso de drogas e doze presos, por venderem abertamente o ácido. Um casal mais desinibido deitou-se num estrado de plástico e se entregou ao amor, sob os aplausos entusiasmados dos mais tímidos. Depois, a jovem se levantou, abriu os braços e começou a cantar: ‘Meu nome é Vivien. Tenho dezenove anos e não venho de lugar nenhum’. Vivien foi respeitosamente aplaudida pela multidão”.

Jimi Hendrix na Ilha de Wight
(Caetano Veloso*)


"WE GET HIGH, WE NEVER DIE" - "A VIDA E A MORTE CALÇAM IGUAL" - "É UMA VIAGEM TÃO VIVA QUANTO A MORTE, NÃO TEM SUL NEM NORTE NEM PASSAGEM" -  "ATÉ EXPLODIR COLORIDO NO SOL, NOS CINCO SENTIDOS, NADA NO BOLSO OU NAS MÃOS". "JIMI HENDRIX DIES AGED TWENTY FOUR: DRUG OVERDOSE".
Mick Jagger ao receber a notícia; "WE ARE COMPLETELY STONED". (Como terá sido a manchete do Globo?). Um Bubble: "Legal, ele quis curtir o barato da morte".
Jimi Hendrix, dois dias antes de morrer: "COMECEI A PENSAR NO FUTURO. EU JÁ DEI A ESTA ERA DE MÚSICA TUDO. ESTA ERA DEFLAGRADA PELOS BEATLES CHEGOU AO FIM: ALGUMA COISA NOVA TEM DE VIR E JIMI HENDRIX TEM DE ESTAR NESSA".
No palco, na Ilha de Wight, não havia nada que não fosse perfeito espelhamento da maquiagem da vasta platéia: uma guerra interna frouxa nem de longe ameaçava mudar o sentido daquele acontecimento: um gauchismo tipo derrubar-as-prateleiras-as-estátutas-as-estantes-etc. não pode mesmo querer ser grande novidade dentro de um universo musical & poético que comporta os Rolling Stones de 'Salt of the Earth', a busca do sal da terra fora das fronteiras da cidade-festiva. No palco, na ilha de Wight, não havia nada que não fosse o que todo o mundo já sabia. No palco, na Ilha de Wight, não acontecia nada. Ele entrou sorrindo e mascando chicletes, leve, meio voando voando sobre as botas de salto alto, sorrindo, testando o som da guitarra, incrivelmente bonito, doce, muito muito bonito, as pernas enxutas, rebolando um pouco, safado, como um moleque das ruas da Bahia, sorrindo, testando o som da guitarrra, vindo tranqüilo do fundo do palco. "THE JIMI HENDRIX EXPERIENCE", o apresentador anunciou errado: o conjunto que leva esse nome dissolveu-se há mais de um ano atrás quando Jimi voltou para os Estados Unidos onde, depois de algum tempo de silêncio, formou um novo grupo chamado Band of Gipsies. Nesse momento estavam no palco Jimi Hendrix, Billy Cox (do Band of Gipsises) e Mitch Mitchell (do Experience). Os três nunca haviam tocando juntos antes e não pareciam ter ensaiado muito para aquela noite. Jimi pediu a Mitch Michell que começasse a tocar enquanto ele tentava com os engenheiros de som controlar a amplificação da guitarra que, visivelmente, não estava dando a sonoridade qeu ele queria. O público esperava com a paciência dormente dos hippies. Jimi vinha até à frente do palco, sorria, testava o som, voltava para os engenheiros que corriam de um lado para o outro do palco nervosos, enquanto Mitch Mitchell batia qualquer coisa e o tempo passava. Sem que o problema fosse resolvido, Jimi iniciou 'Spanish Castle Magic' e seus companheiros o seguiram não muito assustados. Ele tocava e cantava provisoriamente: entre uma estrofe e outra ele se voltava para os engenheiros e fazia de suas improvisações um teste de som. Como nunca dava certo, começava a rir e voltava a cantar, a pulsação natural de sua música enfrentando microfonias.
Ele havia entrado em cena com um projeto difícil em mente: conseguir ligar aquela multidão sem utilizar os recursos cênicos que contribuíram tanto para a sua fama quanto a genialidade de sua música.
"Não saio daqui enquanto vocês todos não estiverem ligados".
Durante uma hora ele tocou e cantou lutando contra os amplificadores. O público permanecia entre frio e assustado: eles haviam gritado e aplaudido de pé quando o nome de Jimi Hendrix foi anunciado e agora nem sequer sabiam quando um número terminava pois, além de não haver finais convencionados pelo conjunto, cada canção ao chegar ao fim transformava-se num novo teste se som e algumas foram interrompidas na metade. No entanto, em todos os momentos, sem que nada ajudasse a percepção disso, estava presente a beleza do trabalho de um dos maiores artistas que já houve. "Vocês querem aquelas coisas velhas?" - "Todas elas", eu respondi e ele me olhou com um sorriso sacana - "Então vamos lá". Aí ele iniciou a segunda hora de sua apresentação: Uma antologia de tudo o que ele deu a essa era. Sex & Blues. Ele abria as pernas e botava a língua pra fora e tocava guitarra com os dentes e punha o braço da guitarra entre as pernas e acariciava. E o públçico resolvia se ligar porque agorar sim reconhecia Jimi Hendrix, mas não conseguira ir muito longe: algo permancia incômodo, havia um distanciamento: Jimi sorria sabendo o que isso significava: a frieza da primeira hora fora mais real do que a animação redescoberta: essa animação era nostálgica: tudo aquilo estava no passado e no entanto ele estava presente, novo em folha, saudável. Ele estava provisoriamente ali, mas estava ali mesmo, presente, vendo tudo. E seu olhar quebrou o espelho. Poucos dias depois ele diria a um jornalista que a era dos Beatles chegara ao fim e que ele queria engordar. Os jornais ingleses comentaram que na Ilha de Wight Jimi Hendrix havia feito a pior apresentação de sua vida. Mas seu sorriso naquele momento, a saúde com que ele movia as pernas imitando-se a si mesmo, a eternidade de sua música naquele momento - tudo isso mostrava o esboço e a exigência de um novo projeto. Essa era de música acabou. A era da música? A era do despedaçamento planejado e colorido, a era de uma juventude que se cria o sal da terra, a era da embriaguêz e do lazer mais ou menos perigoso, a era das crianças da classe média on the road, a era da pele, dos cabelos. A era das drogas que, segundo o 'O Globo' e o 'Evening Standard', mataram Jimi Hendrix. Quem é o sal da terra? Essa última ofensiva não foi capaz de impedir que os 'Globos' e os 'Standards' da vida continuassem existindo. O que é o sal da terra? Que aquilo que Jimi Hendrix vislumbrou antes de morrer seja mais eficaz.
"A EXPRESSÃO 'FUNDIR A CUCA DE ALGUÉM' É VÁLIDA. AS PESSOAS GOSTAM QUE VOCÊ FUNDA A CUCA DELAS. EU QUERO FORMAR UMA BANDA GRANDE E CRIAR UM NOVO TIPO DE MÚSICA. AGORA NÓ VAMOS FUNDIR A CUCA DAS PESSOAS MAS, ENQUANTO ELA SE FUNDE, NÓS VAMOS CONSTRUIR ALGO PARA PREENCHER O VAZIO".

*TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO 'O PASQUIM' (21 A 27 out. / 1970). E RETIRADO DO LIVRO 'ALEGRIA, ALEGRIA' 1977.