Em manifesto, história e ficção, um perfil do mestiço

Mestiço
Em manifesto, história e ficção, um perfil do mestiço
Publicado na página móvel do Globo 
 
Caboclo, cabrocha, cafuzo, híbrido, mameluco, mesclado, mestiço, mulato, nhapango, pardo, sarará ??Brasil, meu Brasil brasileiro / meu mulato inzoneiro”. Décadas depois de Ary Barroso cantar em seus versos um Brasil em que o congraçamento dava o tom, a mestiçagem está sob suspeita. O Estatuto da Igualdade Racial, que está para ser votado na Câmara em meio a discussões acirradas, reserva cotas para afro-brasileiros, mas não menciona caboclos, cafuzos, mamelucos ou mulatos. É uma ficção bicolor, dizem seus críticos. É o reconhecimento de uma divisão social que a figura do “mulato inzoneiro” apenas encobria, retrucam seus defensores. Nesta página, artistas e pesquisadores buscam novos matizes nessa discussão polarizada. O compositor Jorge Mautner atualiza a utopia da mistura étnica brasileira num Manifesto Amalgamista, e o escritor Marcelino Freire explora as ambiguidades da questão no conto “Precisa-se”. Na mistura geral de texto e imagem, a Logo pergunta que lugar a mestiçagem ocupou historicamente na cultura brasileira, e que sentido pode ter hoje. (Miguel Conde) ??
 
Violência e amor
Por Marcelino Freire
 
 “O Brasil é o inferno dos pretos, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos”. A frase do jesuíta italiano André João Antonil, publicada em 1711 no seu clássico “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas”, atesta o quanto o Brasil da época já era uma sociedade miscigenada. A mestiçagem começa em nosso país com o desembarque dos portugueses, diz o historiador Alberto da Costa e Silva, autor de “A África explicada aos meus filhos” (Agir). 
 
— O Brasil não era uma colônia de povoamento, como os Estados Unidos, e por isso vinham para cá muito mais imigrantes homens do que mulheres — diz.
 
A violência sexual foi um marco da relação dos senhores com suas escravas, mas em maior escala a mistura se deu por uniões consensuais entre índios, negros alforriados e brancos pobres: ?— É a miscigenação popular, que continua até hoje. ???O mulato Obama. “Sou um mulato nato, no sentido lato. / Mulato democrático do litoral”. Repetindo como um mantra afro os versos de “Sugar Cane Fields Forever”, Caetano Veloso saudou no show “Obra em progresso” a candidatura de Obama à presidência dos EUA. “Obama se definiu como mulato”, discursou. “Ele quer imitar os brasileiros. E muitos brasileiros querem imitar os EUA pré-Obama”. ??Gobineau, Freyre etc. No começo do século XX, boa parte da elite política brasileira achava que a única solução para país era o branqueamento da população. Época de prestígio das ideias do diplomata francês Arthur de Gobineau, que considerava a mestiçagem uma degeneração. 
 
— A valorização da mestiçagem como marca e força do Brasil surge nos anos 1920 e 1930, em resposta a uma elite eurocêntrica que negava até a possibiildade de um país ser viável nos trópicos — diz o crítico de arte Paulo Sérgio Duarte. — Isso aparece nos quadros de Di Cavalcanti (acima) e nas ideias de Mario de Andrade, mas o grande mestre é Gilberto Freyre, que valoriza a mistura de culturas como uma riqueza nossa.
Encampada pelo Estado Novo como síntese do Brasil, a ideia de mestiçagem passaria a ser vista, com o tempo, como fundamento de um discurso conservador.
 
— Não se pode falar do mestiço sem pensar no projeto político que o tomou como ícone do país — diz a antropóloga Ana Claudia Cruz da Silva. — No discurso sobre o mestiço, o negro entra só com o lado lúdico, da capoeira, do samba. Ainda há uma hierarquização étnica aí.
 
Os mulatos, porém, nem sempre concordam:
 
— Hoje há no hip hop músicos que rejeitam o discurso da negritude e defendem a mulatice — diz a pesquisadora Santuza Cambraia Naves. — É uma defesa da mistura cultural. ??Dos escravos à mistura. Nascido em Açores, o fotógrafo José Christiano Junior se estabeleceu no Brasil nos anos 1850 e, nas décadas seguintes, retratou em estúdio vários dos chamados negros de ganho que circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro. Eram escravos que, em vez de trabalhar na fazenda, vendiam todo tipo de produtos pela cidade, e depois repassavam os ganhos ao senhor. Com a proibição do tráfico de escravos, em 1850, e o aumento da imigração européia na segunda metade do século XX, a cor dos comerciantes de rua do Rio de Janeiro começou a ficar mais variada. Como mostram retrados de Augusto Malta e Marc Ferrez, se tornou mais frequente a presença de mestiços e brancos entre os ambulantes.
 
— É um momento em que há uma grande vinda de portugueses para cá, e por documentos da época é possível constatar um número muito expressivo de casamentos interraciais — diz o historiador José Roberto Goes, professor da Uerj. ??Precisa-se ?Por Marcelino Freire ??Meu nome? Linda. Lindalva. Maria Lindalva. O quê? Qual cor? Como assim? Se sou mulata? Mestiça? Deixa eu pensar. Acho, sei lá. Que eu não sei se sou. Deixa eu me explicar. É que a gente põe assim a cor da gente na ficha. E parece que facilita, entende? Dá na vista. Negrinha, negrita. Negona. O meu namorado me chama de negona. Queimada. Ele tem esse direito. Desculpe eu dizer. Na cama. Minha flor. Meu amor. Assim: um carinho de pele. Sabe: um toque. Aí eu me sinto tanta mulher. Tudo o que se é sem ser. Mulher, pois é. Mais do que eu sou. No mesmo corpo que desabrochou. O outro lado da mesma moeda. De rainha a mocréia. Na cama. Vermelha. Ele diz que eu tenho a beleza brasileira. Ele, pretinho. Meu moreninho. Não sei se o senhor me entende. Eu tenho mesmo que dizer? Para valer? Tenho medo de ficar marcada. A ferro. Sério. Não pode ser só Lindalva? Maria Lindalva? Minha mãe disse que viu uma estrela. Quando eu nasci. E o céu estava tão bonito. Azul infinito. Essas coisas de Deus. Minha deusa, deusinha, ela dizia. Minha mãe se chamava Edileuza. E já está em bom lugar. Orando por mim. Lá de cima. Tudo lá de cima. A mesma coisa. Cinza. Em São Paulo. Nublado. Eta danado! Cidade dos diabos. É tudo tão misturado. Ah! Perdão, me desculpe o jeito. Sei que eu não posso demorar. O senhor quer mesmo saber? Qual a minha cor, não é? Para escrever aí, no questionário. Deixa eu pensar. O que o senhor acha que eu sou? Olhando para a minha cara. Bem para minha cara. O que eu sou? Assim, no espelho? Coloque aí, escreva: mestiça. Isso: doméstica mestiça. Pode anotar. Só não vai contar para ninguém, tá? ??MARCELINO FREIRE é escritor, autor de “Contos negreiros” (Record) ??
Walt
 
Manifesto Amalgamista ?
Por Jorge Mautner ??
 
Somos todos mestiços. Não existem raças, existem etnias e culturas. Para José Bonifácio, cientista e patriarca da nossa independência, o Brasil é a Amálgama, sendo que isto o faz diferenciar-se de todos os outros países e culturas. E afirma: esta amálgama tão difícil de se fazer. Amálgama é miscigenação e mistura mas é muito mais do que isso: é a diversidade em combinação permanente causando esta flutuação de constante capacidade de adaptações e criatividades. É o que faz com que cada brasileiro tenha em sua alma a inata capacidade de reinterpretar todos os fenômenos da existência num só instante, com a maior receptividade e dadivosidade, absorvendo inclusive pensamentos contrários, resultando sempre num caminho do meio, que é a maior das sabedorias recomendada por quase todos os filósofos, de Aristóteles a Buda e Lao-Tsé. ??Essa extrema sensibilidade metafísica vem por causa da Amálgama, o pensamento metafísico brasileiro representa a maior esperança de uma planeta sem guerras e de comunhão de todos em plenitude. A ciência atual que estuda os neurônios já chegou à conclusão de que quanto mais mistura melhor para a inteligência do ser! Quem pensa o contrário é racista, segue o auge dos equívocos e pretensões arrogantes da Eugenia, e da separação entre os seres humanos. É proto-nazista ou já totalmente nazista. O maior presente e novidade do Brasil para a Humanidade é esta Amálgama, e eu repito: “Ou o mundo se Brasilifica ou virará nazista!” e“Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé!”. ??Na musica “Outros viram” em parceria com Gil, eu cito Walt Whitman que celebra e exalta os USA e sua democracia, e que diz “No entanto, o vértice da Humanidade será o Brasil”. E também Rabindranath Tagore, poeta e pensador hindu que diz: “A civilização superior do amor nascerá no Brasil”. Somos todos mestiços, graças a Deus! JORGE MAUTNER é músico e escritor