Para escritor americano, "pão maldito" foi causado pela CIA

O mecânico Paul Pagès, 84 anos, se lembra perfeitamente do surto coletivo que assolou Pont-Saint-Esprit em 1951 Foto: Lúcia Müzell/Especial para Terra

O mecânico Paul Pagès, 84 anos, se lembra bem do surto coletivo que assolou Pont-Saint-Esprit em 1951
Foto: Lúcia Müzell/Especial para Terra

 Lúcia Müzell - Direto de Pont-Saint-Esprit, França

O mistério que acompanha a vida dos moradores de uma pequena cidade francesa há quase 60 anos pode ter sido enfim desvendado. Em 1951, o vilarejo de Pont-Saint-Esprit, no sul da França, foi assolado por um surto de loucura que, em 10 dias, provocou alucinações, manias de perseguição e ataques de violência em mais de 300 pessoas, numa cidade que na época não contava com mais do que 4,5 mil habitantes. Sete moradores acabaram morrendo e 50 tiveram de ser internados em clínicas psiquiátricas, alguns por mais de um ano depois do surto coletivo, que logo passou a ser chamado como o "caso do pão maldito".

Nunca se chegou com exatidão às verdadeiras causas do surto, mas agora um escritor dos Estados Unidos jura ter encontrado as respostas para o enigma: seria o serviço secreto americano, a CIA, quem estaria por trás da história. Hank Albarelli Jr. vai além e afirma com convicção que o responsável pela intoxicação não fora nem fungo ou tampouco veneno, mas sim LSD, droga alucinógena que tinha recém sido descoberta. Na época, diz Albarelli Jr, o LSD era o mais novo alvo de experimentos científicos nas pesquisas sobre controle da mente humana, num período em que a Guerra Fria se fortalecia cada vez mais entre russos e americanos, comunistas e capitalistas.

A teoria conspiratória, digna de um episódio de série policial americano, foi publicada nos Estados Unidos no livro A Terrible Mistake (Um terrível engano, em tradução literal). Armado com dezenas de documentos oficiais da CIA, do Exército americano e da Casa Branca, o escritor agora quer convencer pessoalmente os moradores da cidade de que o polêmico "caso do pão maldito" foi provocado por seus compatriotas, e não acidentalmente pelo padeiro mais famoso de Pont-Saint-Esprit.

A tarefa não vai ser fácil. Até hoje, os moradores estão convencidos de que duas fornadas inteiras da padaria Briand, a principal e mais apreciada do vilarejo, tinham sido fabricadas com uma farinha contaminada por um fungo conhecido desde a Idade Média, o esporão do centeio. O fungo se forma nas sementes do centeio e, se consumido, provoca alucinações e mal-estar. Este fungo nada mais é do que a origem do próprio LSD, depois de sintetizado e adicionado a outras substâncias.

Testemunhas relatam alucinações

Fortalece essa versão o fato de que todas as vítimas haviam consumido o "pão maldito", inclusive crianças. As histórias decorrentes da intoxicação, registradas nos jornais da época e na memória dos que viveram o episódio, são amedrontadoras: uma dizia que o diabo não parava de puxar a sua perna enquanto ela tentava dormir, outro disse que estava com a barriga infestada por cobras. Um outro doente saltou de uma janela pensando ser um avião, enquanto que um menino de 8 anos pensava que estava sendo perseguido por fogo.

"Foi uma catástrofe! Quem não tinha consumido o pão maldito, como eu, nunca vai esquecer das cenas que viu. Pessoas que sempre foram normais saíram às ruas gritando verdadeiros absurdos", conta Paul Pagès, 84 anos, diante da oficina mecânica onde ainda trabalha. "Perdi um grande amigo de infância, que consumia diariamente o pão da padaria Briand e, naquele triste dia, pelo visto ainda estava com bastante fome."

Já o veterano de guerra Joseph Lopes, 93 anos - e com 34 quando aconteceu o caso -, chegou a provar o tal pão, mas apenas um pequeno pedaço. Saiu ileso, apenas sentiu enjoo, curado com uma noite de sono - até que acordou no meio da madrugada com o pai cantando ópera no quarto ao lado.

"Ele dizia que estava comandando uma orquestra com 30 músicos. Apontava para eles, ria, e continuava a cantar, certo de que estava se apresentando no teatro", relata Lopes. "Algumas pessoas chegaram a tomar litros de leite pensando que tinham sido envenenadas. Foi o caso da minha mãe, que comeu o pão mas conteve os sintomas desta forma."

O problema é que, ao contrário do que se especulou, os efeitos do fungo sozinho não teriam provocado efeitos tão duradouros e nem tão devastadores como a morte, alertaram cientistas na época. As dúvidas eram tantas sobre a origem do surto que, depois de 12 anos de processo judicial contra o padeiro, nenhuma indenização foi acordada a qualquer família de vítima. O mistério permaneceu em aberto e ao longo dos anos os habitantes não tiveram outra alternativa senão esquecê-lo.

Ao invés de uma solução para o caso, a nova versão dos fatos - através do livro de Albarelli Jr. - vem confundir ainda mais a cabeça das poucas testemunhas que restaram. "Acho que os moradores podem até se interessar em ouvir essa história de CIA, mas a essa altura, ninguém vai mudar de ideia. Ainda mais se tratando de uma história tão extraordinária", avalia o vice-prefeito Jean-Pierre Colombet, que tinha 10 anos quando aconteceu o episódio.

Conforme o autor americano, Pont-Saint-Esprit teria escolhida ao acaso pela CIA, entre uma dúzia de cidades que se localizavam próximas a duas bases do Exército americano no sul da França, após o final da Segunda Guerra Mundial. "Poderia ter sido qualquer outra", afirma Albarelli Jr.

 

  • Capa do livro  Terrible Mistake , de Hank Albarelli Jr. Foto: Reprodução

    Capa do livro Terrible Mistake, de Hank Albarelli Jr.
    Foto: Reprodução

    Para escritor americano, "pão maldito" foi causado pela CIA
    01 de abril de 2010 • 08h11

    Lúcia Müzell - Direto de Paris

    O jornalista independente e escritor americano Hank Albarelli Jr. jamais poderia imaginar que suas pesquisas sobre o misterioso assassinato do bioquímico da CIA Frank Olson, em 1953, o levariam até o pequeno vilarejo francês Pont-Saint-Esprit. Foi investigando a morte de Olson que Albarelli Jr. descobriu que o lendário "caso do pão maldito" pode ter sido provocado deliberadamente pela agência americana, que em plena Guerra Fria queria conhecer melhor os efeitos da recém descoberta droga LSD na mente humana.

    Para o escritor - conhecido por reportagens investigativas sobre o 11 de Setembro e os ataques por cartas contaminadas com vírus antrax -, não resta a menor dúvida de que a CIA usou a cidade para o experimento. Os detalhes do assassinato são contados na obra A Terrible Mistake, publicado no ano passado e ainda sem tradução para outros idiomas. De Tampa Bay, na Flórida (EUA), Albarelli Jr. concedeu a seguinte entrevista ao Terra, por telefone:

    Como você pode estar tão certo da responsabilidade da CIA pelo surto de loucura em Pont-Saint-Esprit?
    Está tudo explicado no livro, que tem mais de 800 páginas e cópias de muitos documentos sobre este evento. São documentos da CIA, do FBI, do Exército americano e da Casa Branca. Respondendo a sua pergunta, os documentos provam tudo e seria difícil não estar certo da responsabilidade da CIA.

    Você teve acesso a todos os documentos que precisou?
    Sim, é claro. Senão jamais afirmaria isso com tanta convicção. Tive acesso a todos e pude copiar alguns, que ilustram o livro.

    Por que a CIA teria escolhido uma cidade tão pequena para realizar as experiências?
    Porque, no pós-guerra, havia duas bases americanas muito próximas a essas cidades. Havia cinco em toda a França, mas perto de Pont-Saint-Esprit, eram duas. Não há uma razão específica para ter escolhido essa e não outra cidade vizinha. Eles tinham de escolher uma e foi essa. Há relatórios que fazem menção ao fato de que a cidade era muito politicamente à esquerda, o que nos anos 50, plena Guerra Fria, não era bem visto pelos americanos. Eu ainda não sei se esse foi realmente o caso, mas houve pessoas da própria cidade que levantaram essa hipótese para explicar a escolha de Pont-Saint-Esprit.

    Como o LSD foi espalhado na cidade?
    Tem uma série de documentos que falam sobre as possíveis formas de distribuição, incluindo mecanismos aerossóis - ou seja, pulverizar o LSD pela cidade. Não sei dizer se essa foi colocada em prática. Mas tem uma outra série que fala em disseminar o produto na água ou em produtos alimentícios. Eles não mencionam especificamente o pão, mas eles mencionam claramente água e produtos alimentícios. Eu suponho que tenha sido através do pão, porque não há produto mais comum e que todo mundo consuma.

    Você pode explicar como uma padaria específica foi a que mais foi atingida?
    Eu não, talvez as pessoas de lá possam explicar melhor do que eu. Eu soube que a maior parte do pão contaminado saiu de uma padaria específica, e no início se acreditou que tudo não passava de uma contaminação por um fungo na farinha utilizada nesta padaria. Mas depois essa versão dos fatos foi desmentida por cientistas que provaram que os efeitos não teriam sido os mesmos dos verificados nas pessoas atingidas. A CIA pode perfeitamente ter colocado o LSD na matéria-prima desta padaria.

    O que eu acho que não é uma coincidência é o fato de que, na semana seguinte, apareceram na cidade cientistas do mesmo laboratório suíço que tinha fornecido LSD para as experiências da CIA naquele ano, o Sandoz o laboratório responsável pela descoberta do LSD, em 1943. E eles não contaram nada disso para ninguém, eles mentiram sobre isso, porque sabiam o que estava acontecendo. Estavam suprindo a CIA e o Exército americano de LSD de 1949 até 1951, e depois retornaram com o fornecimento até 1953, quando os Estados Unidos decidiram contratar uma companhia americana farmacêutica chamada Eli Lilly para produzir o LSD. O fato é que o Sandoz foi investigar o que aconteceu e eles foram uns dos que disseram que as pessoas tinham sido infectadas por veneno, mas eles sabiam que não era.

    Você acha que foi para despistar as atenções?
    Eles vieram com essa primeira versão, mas ela simplesmente não se sustentou o suficiente para dissipar todas as suspeitas. Foi uma experiência com LSD, e todos os que estavam por trás dela foram muito espertos ao colocá-la em prática.

    Você acha que a cidade estava cheia de espiões nos dias que se sucederam ao "ataque"?
    Havia com certeza espiões do Sandoz. Nos documentos do Exército há referências a isso.

    Você sabe se o governo francês estava a par dessa operação?
    Eu não sei. Há um documento da CIA que fala sobre um encontro de um oficial com um representante do Sandoz depois do experimento. Ele disse, durante a conversa, que o governo francês sabia de tudo. Essa é a única prova que tenho sobre se o governo francês estava a par. Mas eu sou muito cético quanto a isso, porque neste mesmo documento se fala que esse oficial bebia muito, o que o torna não muito confiável, na minha opinião. Eu ainda não tenho nenhum elemento realmente credível sobre se os franceses sabiam ou não.

    Você já esteve em Pont-Saint-Esprit?
    Sim, a minha filha mora em Londres e eu aproveitei uma visita para ir lá, há cinco anos. Mas eu quero voltar lá, em maio ou junho, para levar para o prefeito e outras pessoas interessadas cópias de todos os documentos que eu tenho. Assim eles poderão lê-los eles mesmos. Na semana passada, eu mandei para eles uma caixa com cópias do meu livro, e quando eu for lá vou apresentá-los também os documentos.

    Você foi convidado ou consultado pelo prefeito ou por outra pessoa da cidade?
    Não, ainda não, porque eu gostaria que antes ele lesse o livro. Mas a ABC News quer ir junto comigo até lá, com mais uma rádio francesa, para fazer novas pesquisas sobre o assunto.

    As pessoas da cidade parecem acreditar que nunca vai se saber a real razão daquele surto.
    Eu acho que nós já sabemos a razão. Eles vão ler o livro, ver os documentos e então vão decidir por eles mesmos. Você sabe, o meu livro não era e não é sobre o caso de Pont-Saint-Esprit. É sobre um espião que foi assassinado, e Pont-Saint-Esprit é parte do motivo da morte dele. Ele falou sobre este caso, e então se achou melhor que ele fosse morto. Há um outro homem, autor de The Day of Saint Anthony's Fire sobre o misterioso caso de Pont-Saint-Esprit, que percebeu o que estava por trás de toda a história e iria escrever um segundo livro contando tudo nos anos 70, mas ele também morreu antes de concretizar o projeto.