SEQUÊNCIA DAS VANGUARDAS: NEOCONCRETISMO (2000)
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Hércules Barsotti Luis Sacilotto
Concreção 7959, 1979
Willys de Castro Pintura, 1957
Waldemar Cordeiro
Ideia Visível
Poema de Affonso Ávila
Poema de Augusto de Campos
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SEQÜÊNCIAS DAS VANGUARDAS* Júlio Castañon Guimarães
Quando o concretismo surge na década de 1950, ao lado de alguns outros movimentos de vanguarda, estava em vigência na poesia brasileira a tendência conhecida como "geração de 45", que não somente recuperava elementos da tradição como também abandonava o projeto renovador do modernismo. Este, surgido na década de 1920 e tendo como data de deflagração o ano de 1922, quando ocorreu a Semana de Arte Moderna, constituiu-se numa mudança fundamental da literatura brasileira - ao lado da modificação da abordagem da realidade brasileira, desencadeou uma reformulação de linguagem, com a libertação de padrões tradicionais e com a pesquisa inventiva. Em relação ao quadro imediato de surgimento do concretismo, deve-se lembrar ainda o momento histórico brasileiro de mudanças econômicas e políticas, com a ênfase no desenvolvimento via industrialização. O concretismo retoma o modernismo como ruptura, mas seu projeto se formaliza de modo mais radical. No entanto, apesar da maior evidência, o concretismo não surge isoladamente, nem é apenas um projeto poético. Está fundamentalmente ligado às tendências construtivas que vinham se desenvolvendo desde o início do século com as vanguardas européias e dialoga com o construtivismo suíço e alemão em vigor na década de 1950. Além disso, à época, no Brasil, não se tem apenas uma vanguarda, mas vanguardas, que se aproximam, se distanciam, se entrechocam. E de divergências de orientação nasciam novas tendências, como foi o caso do neoconcretismo. Além do mais, o concretismo abrangia também as artes plásticas, enquanto do neoconcretismo se pode dizer que foi um movimento exclusivamente de artes plásticas. O concretismo envolvia uma teorização, manifestos programáticos e uma prática que incluía poesia, crítica e tradução. Entre afastamentos e aproximações, o núcleo central - Augusto de Campos (1931), Haroldo de Campos (1929) e Décio Pignatari (1927) - contou em certos momentos com a participação de outros escritores, não inteiramente alinhados, mas ativos em orientação bastante próxima. É o caso de José Paulo Paes (1926-1998), cujas afinidades com o concretismo foram salientadas, quando da publicação de seu livro Anatomias (1967), pela apresentação de Augusto de Campos. É o caso também, e de maior afinidade ainda, do poeta Affonso Ávila (1928), que provinha do grupo de vanguarda agrupado em torno da revista Tendência. Ao concretismo não ficaram imunes poetas de gerações anteriores, como Murilo Mendes, que na década de 1960 publicou experiências poéticas em um dos periódicos do grupo, a revista Invenção; posteriormente essas experiências, somadas a várias outras, vieram a constituir seu livro experimental Convergência (1970). Poeta que antecede de pouco os concretos, João Cabral de Melo em várias oportunidades expressou sua opinião a respeito do movimento, que considerava o que de mais importante havia surgido nos últimos tempos na literatura brasileira. E numerosos poetas de gerações seguintes revelam enorme influência do movimento. Ao mesmo tempo, porém, houve dissensões, algumas se transformando em desavenças duradouras, assim como houve reações fortes, rejeições e incompreensões. A lembrança de algumas declarações pode esclarecer esse percurso talvez sem limitações rígidas. O escritor Autran Dourado disse que os concretos "exercem um poder quase ditatorial" e "levaram a poesia brasileira a um beco sem saída" (observações citadas por Augusto de Campos em seu livro A margem da margem). Aí se tem como que um emblema de todo a atitude negativa em relação ao movimento, tomado como um todo, e que se estende às suas realizações individuais e isoladas ao longo de toda a vida produtiva de seus integrantes, mesmo décadas depois de seu surgimento. A condenação, que ainda se estende a gerações posteriores que se deixaram marcar pelas posições críticas do concretismo, aponta o caráter redutor e empobrecedor do movimento, que se imporia pela ortodoxia e pelo autoritarismo. Em outro nível, veja-se o comentário do pintor Hércules Barsotti (1914), incluído entre os neoconcretos. Numa entrevista (na revista MAM n. 2, de São Paulo), diante da observação feita pelo colecionador Adolfo Leirner ("Mas você não é neoconcreto, você é um concreto"), responde Barsotti: "Bom, eu não sei, concreto, neoconcreto, para mim é tudo a mesma coisa. Era uma briga entre os chefões. Aquilo era uma briga entre os chefões". No contexto de um trecho de entrevista em que se comenta a história do movimento concreto e sua ruptura, o neoconcretismo, a observação aponta para a dimensão de estratégias de ocupação de espaço, nem sempre em conexão com a realidade das obras realizadas, ainda que estas estejam em consonância pelo menos com a linha de idéias prevalentes nos movimentos. É o mesmo Barsotti que aponta para esse afastamento, ainda que simplificando um pouco a questão: "Não me considero de grupo nenhum, de Rio ou de São Paulo. Não tenho nada a ver com isso. Fui convidado para participar da exposição, só isso. Acho que não é problema de grupo, é um problema da obra." Da entrevista participava também outro importante pintor, incluído entre os concretos, Luís Sacilotto (1924), que observou que o fato de alguns pintores - Barsotti e Willys de Castro (1926-1988) - serem convidados pelo grupo neoconcreto se devia apenas ao fato de estarem "separados do grupo concreto. Então era uma forma de... uma estratégia, uma forma de luta". A separação do grupo concreto se devia ao fato de o líder dos artistas plásticos concretos, Waldemar Cordeiro, ter discordâncias com os dois. Mais uma vez, articulações desvinculadas, pelo menos parcialmente, da prática criativa. O outro comentário que interessa aqui lembrar se deu em artigo de Augusto de Campos (Folha de S. Paulo, 8 de outubro de 2000) em homenagem a José Lino Grünewald, poeta concreto recentemente falecido. Augusto de Campos comenta que José Lino Grünewald "jamais se desvinculou dos seus inícios literários, das primeiras amizades e... da poesia concreta, a da 'fase geométrica', da 'idade de ouro', como a chamava, apesar de alguns desvios e deslizes bem-humorados. Talvez por isso, quando começou a se intensificar a diáspora do movimento, em meados dos anos 80, parece que Zelino se desorientou". Aí se aponta, em primeiro lugar, a existência de fases no movimento, ou seja, que o movimento não foi um bloco imutável, nem homogêneo, seja no decorrer do tempo seja no conjunto de seus participantes. E este último ponto fica ressaltado quando se fala em "alguns desvios e deslizes". Por fim se fala na diáspora do movimento, sabendo-se, porém, que seus participantes continuaram a produzir, dado que naturalmente se deve levar em conta ao equivocadamente se tratar o movimento como bloco, tal como já referido. Além disso, há o detalhe de que a diáspora se "intensificou" em meados dos anos 80, do que se deduz que ela já vinha de antes, configurando assim, hoje, um longo período do que talvez se possa configurar como desmobilização, no sentido de desvanecimento de princípios que mobilizavam um grupo. Após esses delineamentos, um sumário de algumas obras de poetas ligados a essas vanguardas vem a ser a maneira mais palpável de perceber o efetivo espaço que ocuparam na poesia brasileira contemporânea. Espaço que deve ser avaliado não somente em termos de sua dimensão, mas de eficácia. No caso de Haroldo de Campos, se tomarmos, de um lado, um poema como "nascemorre", que integra o conjunto fome de forma, que data de 1957-1959, e de outro lado um poema como A Máquina do Mundo Repensada, que data de 2000, teremos uma figura do percurso de transformação verificado nessa poética, assim como uma idéia bastante nítida da amplitude das questões por ela abarcadas. Em "nascemorre" tem-se um poema construído segundo alguns dos princípios do concretismo inicial. No poema é constitutiva sua distribuição física no espaço da página, uma distribuição de caráter geométrico. Lembrando a atenção do concretismo ao avanço tecnológico, pode-se observar a construção dos poemas desse período, entre os quais se inclui este "nascemorre", como resultado de um design. O poema em questão se constitui em torno de uns poucos termos recorrentes, cujas significações se acrescem das possibilidades de leitura oferecidas por meio de sua exploração pela repetição em série. Já A Máquina do Mundo Repensada é um poema longo que recorre à forma da terza rima e que estabelece um diálogo com a tradição de Dante, Camões e Drummond. Na verdade, já como indício de que não se trata de uma simples retomada da tradição, o poema explora as possibilidades da terza rima por meio da utilização de diferentes tipos de rima, de assonâncias internas, de rupturas sintáticas, e assim por diante. Além do mais à discussão do tema da tradição dos três grandes poetas referidos somam-se elementos provenientes de conhecimentos científicos contemporâneos. Há, porém, uma outra obra de Haroldo de Campos, situada em período intermediário entre essas duas, que não resume nem engloba diretamente as questões postas por estas duas, mas que apresenta questões conexas de uma forma talvez menos demarcada, menos situada, permitindo, portanto, algumas explorações no sentido em que aqui se procura encaminhar uma visão dessas obras. Trata-se de Galáxias, que em termos de sua datação permite observar a concomitância com várias obras sucessivas, já que Galáxias vem a ser um efetivo "percurso textual" (para usar a expressão com que o próprio Haroldo de Campos subintitulou o Xadrez de Estrelas, a reunião de sua obra poética produzida entre 1949 e 1974). Isto porque há fragmentos de Galáxias que datam de 1963 e de vários anos seguintes até o último que data de 1976. O que autor denomina "formante" inicial data de 1963, enquanto o final é de 1976. Tanto a cronologia da redação de Galáxias quanto a cronologia de sua publicação vêm a ser paralelas à própria constituição da obra. Antes da publicação do conjunto completo, em 1984, houve a publicação em Xadrez de estrelas, que era, porém, parcial. Do mesmo modo, foram publicações parciais os fragmentos editados em outras línguas, em tradução quase sempre com a participação do autor, donde seu caráter de publicação autoral e não apenas de tradução. O caráter fragmentário da obra se expõe nessas publicações. Quanto à questão espacial, esta à primeira vista pode parecer não estar presente, pelo menos não da forma como em "nascemorre", mas na verdade esses textos estão estreitamente ligados à sua condição na página. Assim a edição conjunta tem um formato em que cada fragmento ocupa integralmente uma página, mas sempre páginas ímpares, de modo que as pares, o verso de cada fragmento, ficam em branco. Com isto, uma leitura não consecutiva dos fragmentos - leitura possibilitada e proposta por essa própria forma - implica uma possível mudança na ordem das folhas. Lembre-se então que na gravação em CD em que Haroldo faz a leitura do texto das Galáxias, a ordem dos fragmentos já não é a mesma que os fragmentos têm no livro. Além disso, o texto constitui sempre um bloco, alinhado apenas pela esquerda e sem qualquer tipo de divisão, de modo que há uma ocupação em bloco da página, com o que há um recorte, uma identidade visual do texto. O texto de Galáxias não usa pontuação, não usa maiúsculas, fica entre a prosa e a poesia, cria vocábulos, emprega várias línguas, está como que em permanente fluir. Fluir equivalente àquele de sua produção distribuída por largo período de tempo, por várias etapas de publicação. Em nota à edição, Haroldo de Campos se refere às Galáxias como "texto imaginado no extremar dos limites da poesia e da prosa, pulsão bioescritural em expansão galática entre esses dois formantes cambiáveis e cambiantes (tendo por ímã temático a viagem como livro ou o livro como viagem, e por isso mesmo entendido também como um 'livro de ensaios')". Essa "pulsão bioescritural" tem certamente a ver com o que o crítico Andrés Sánchez Robayna (em estudo incluído na edição de Signantia quasi coelum, de Haroldo de Campos) quer dizer quando, a propósito de Galáxias, se refere à "mobilidade da escritura". Neste sentido, aqui se está em área bastante distinta da construção geométrica de "nascemorre"; o que se tem aqui é ainda construção, mas da expansão, da proliferação. Já um poeta como Affonso Ávila desenvolveu uma poesia em que se unem magistralmente a temática social e política com a experimentação lingüística, a pesquisa histórica com a invenção poética. Isto se encontra em uma grande e fundamental obra da poesia contemporânea brasileira, o Código de Minas (1967). Aí se encontravam, por exemplo, alguns poemas em que o procedimento de elaboração era o da repetição serial, quando por assonância, por relação etimológica, por algum tipo de aproximação, ou por mera alternância de letras, alguns vocábulos eram desenvolvidos de forma a constituir os poemas. Em "Orografia", lê-se: "Espinhaço / espinho e aço / espinho e osso / espinho e fosso / espinho ácido / espinho árido / espinho ávido / espinho nosso". Em "Quadratura do circo" lê-se: "qualentão / quarentão / quaresmão / quarentão / quadradão / quarentão / quarentanos / quarentão / quarentena / quarentão". Se nos últimos trabalhos, como O visto e o imaginado (1990) Affonso Ávila permite um fluxo mais discursivo, esse fluxo é contrabalançado por uma extrema concisão, como no belo poema "aguapé", de apenas dois versos encaminhados por assonâncias: "verde voraz / vulva sugando meu oxigênio derradeiro". É num livro como O belo e o velo (1987) que a expansão discursiva se amalgama tanto com a experimentação lingüística quanto com a dimensão visual. Os poemas se constituem como blocos textuais alinhados como que abruptamente pela margem direita, de modo que as palavras são cortadas sem obedecer à regra para divisão vocabular e sem a sinalização do hífen (â/nsia, asfalt/o). Além disso, espaços de extensões diferentes no interior das linhas estabelecem o ritmo semântico/sintático/musical/visual. Os poemas não têm assim a divisão em versos, nem se apresentam totalmente como prosa, pois o fluxo é interrompido, não pela divisão em verso, mas pela divisão do alinhamento à direita e pelos espaços referidos. Além disso, conjugam toda a carga de referências históricas que se encontram em trabalhos anteriores, desde o Código de Minas até as Barrocolagens (1981), com uma proliferação verbal que envolve procedimentos referidos a propósito do Código de Minas. Assim, os poemas do livro constituem exemplos da expansão textual delimitada por elementos construtivos: "velar o velho se por velho / é velho velar o velho se / por velho é breve velar / o breve se por breve é bel / o velar o belo se por be / lo é eterno?" Se os trabalhos de Haroldo de Campos e de Affonso Ávila mostram explorações de um texto mais discursivo em que as noções construtivas são, não abandonadas, mas redimensionadas, é ainda em outras direções que se coloca a produção de Augusto de Campos. Em 1953, seu livro Poetamenos concretizava uma reunião entre palavra, som e imagem. Os poemas, por meio de cores, conjugavam visualmente como que diferentes planos sonoros. Adiante, a dimensão visual, nos instantes mais ortodoxos, se corporificou em poemas como "pluvial" já de 1959, que se constrói pela conjugação entre a disposição gráfica que visualiza os referentes chuva/rio e a possibilidade de aproximação entre os adjetivos correspondentes, pluvial/fluvial. No caso de Augusto de Campos sua trajetória irá revelar cada vez mais o trabalho com a dimensão visual - desde trabalhos que abandonam totalmente o campo verbal e se constróem apenas com imagens, como os intitulados "profilogramas", elaborados exclusivamente a partir de elementos fotográficos, até os poemas constituídos com base na exploração das possibilidades de desenhos industrializados de alfabetos, na disposição dos blocos de texto na página, e assim por diante. Enfatizar que esses trabalhos são sobretudo visuais não implica dizer que outros elementos sejam abandonados. Assim, o elemento sonoro ganha uma representação gráfico-verbal num poema como "cançãonoturnadabaleia". O aspecto discursivo ganha dimensão visual num poema como "cordeiro" em que uma frase do pintor Waldemar Cordeiro recebe uma tal disposição que o sinal gráfico do ponto final se torna como que uma suma gráfica do conteúdo da frase. Todavia, em sua produção intervém sobretudo nos últimos tempos um fator que vem mostrando não só novas possibilidades de criação, mas também novas possibilidades de leitura de sua produção - trata-se da transposição de seus poemas para outros meios. Além dos poemas que adquirem animação por meio da computação, alguns já estão sendo criados graças a recursos da computação. Mesmo num trabalho de oralização de poemas, como o que se apresenta no CD Poesia é risco, a utilização de diversos recursos sonoros permite transpor para esse meio elementos que nas versões originais dos poemas são eminentemente visuais. Tanto a transposição para meios eletrônicos quanto a leitura de vários poemas, com o acréscimo de recursos eletrônicos de imagem e sonoros, não só acrescentam novas dimensões aos poemas, mas acima de tudo mostram como em suas formas iniciais esses poemas não eram fechados e encerrados como um cálculo matemático. Mostram como tais poemas traziam em sua constituição, potencialmente, a abertura, a multiplicidade dessas outras veiculações e, portanto, de novas leituras. Das insinuações presentes nos comentários expostos inicialmente, passando pela exposição de algumas realizações, pode-se ir medindo a distância que aos poucos se estabelece entre projetos historicamente combativos, por imperativos vários, e o desenvolvimento de sua prática criativa. Mas isto pode ser apenas uma delimitação no plano da história da literatura. No âmbito efetivo da criação, a percepção das explorações desenvolvidas por essas obras, das pistas abertas por elas e das articulações de algumas questões fundamentais para as poéticas contemporâneas é com certeza a eficaz sugestão que elas oferecem. * Publicado em Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, n. 7, outubro 2000. |