VANGUARDA, NEOVANGUARDA, ANTIVANGUARDA (JOSÉ GUILHERME MERQUIOR - 1974)

Vanguarda, neovanguarda, antivanguarda

merquior

(José Guilherme Merquior*)

reabrindo o debate


Qual a natureza da arte não acadêmica desses últimos trinta ou trinta e cinco anos? Qual é a sua personalidade histórico-estilística? Trata-se essencialmente, como querem alguns, de um prolongamento da “arte moderna”, isto é, das vanguardas artístico-literárias explodidas entre 1910 e 1930? Ou vivemos, ao contrário, numa outra idade cultural, num segundo século XX, pelo menos tão distinto do primeiro quanto a “era vitoriana” o foi em relação às décadas românticas da primeira fase dos Oitocentos? Pergunta realmente importante, porque a opção por uma ou outra etiqueta-chave – modernismo tardio, ou neomodernismo? — não possui interesse apenas acadêmico; é uma resposta comprometida com a necessidade incômoda, porém vital, de definirmos a verdadeira mentalidade do nosso tempo. Tanto mais que existe ainda uma “terceira posição”, e (ao contrário de suas homônimas em política) nada conciliatória: a posição que prefere caracterizar o período pós-1940 como culturalmente estéril e decadente, acusando as novas vanguardas de liquidarem a rica herança da arte moderna por meio de um epigonismo dogmático, maníaco e alienado.

Desse modo, à sombra ilustre dos modernismos históricos (os quais, sem ter deixado de servir de modelo, já se beneficiaram da auréola de passado), neovanguarda e antivanguarda discutem com ardor acerca do conceito de... vanguarda. Elementos centrais desse debate se tornaram tema de alguns dos mais percucientes vôos ensaísticos dos últimos anos. Vamos falar um pouco de três: o artigo As aporias da vanguarda, do alemão Hans Magnum Enzensberger (ora em português em Tempo Brasileiro n. 26-27, 1971); a Teoria Estética (1970) de Theodor W. Adorno (1903-1969), testamento literário desse notável pensador, expoente da chamada “dialética negativa” da Escola de Frankfurt, e da qual Flávio Kothe nos dá uma categorizada recensão na esplendida revista “Discurso”, do Departamento de Filosofia da USP (n. 4, 1973); e “Por Uma Vanguardia Revolucionaria”, título da tradução Argentina (B. Aires, 1972) dos trabalhos do líder neovanguardista italiano Edoardo Sanguineti.

Comecemos por dar nome aos bois: ao aludir a “neovanguardas” típicas do segundo século XX, temos em mento (dentro de cada área artística, e mais ou menos por ordem de entrada em cena) correntes como a música concreta e estocástica; a pintura informal, a arte pop e hiper-realista, a arte gestual, neodadá e conceitual; o cinema pós-neo-realista; os estilos de mise-em-scène neobrechtianos e artaudianos; a poesia “beat” e o “nouveau roman”; a poesia concreta e práxis; o movimento tropicalista, etc. Num breve artigo teórico como este, mal teremos oportunidade de referir-nos a dois ou três desses fenômenos; nosso objetivo não é mapear o território da neovanguarda, e sim esquematizar, para efeito de uma avaliação prévia, algumas de suas linhas de força ideológicas de seus pressupostos sociológicos.

Para Sanguineti, as neovanguardas se distinguem das vanguardas históricas pelos seguintes traços: a) atenuação dos impulsos “românticos”, anarco-revolucionários; b) império da obsolescência acelerada dos estilos – presa, eles também, da neofagia que caracteriza a sociedade de consumo (Adorno já ironizara, em Dissonâncias, o “envelhecimento do novo”); c) tendência à substituição, como veículo do vanguardismo, do “movimento fluido, autor de manifestos incendiários, pelo “grupo” organizado, autor de regulamentações paraburocráticas das produção artística; e d) adoção de um experimentalismo “científico” e laboratorial, muito diferente do experimentalismo diletante e selvagem das vanguardas primitivas (com anova permissividade do establishment face à vanguarda, o “laboratório” inovador vive em simbiose com o museu de gosto ecumênico).

Ao contrário do que pareça à primeira vista, essa caracterização de Sanguineti não é puramente reprobatória. Sua atitude é mais complexa: na neovanguarda, esses traços de acomodação conformista à sociedade de consumo, à “sociedade tecnológica”, seriam, a rigor, a atualização de aspectos potenciais da própria vanguarda velha. Segundo Adorno, a oscilação entre a denúncia da repressão cultural e a tácita conivência com esta última era inerente ao vanguardismo; daí sua natureza sumamente ambígua, embora nunca unilateralmente alienada, ao invés do que pensava a estética marxista conservadora de Georg Lukács (1885-1971). E o fudamento social da possibilidade permanente da “desartificação” (Entkunstung) – dessa degradação da arte em sua própria natureza – são pressões sociais que induzem a experiência estética, em seu conjunto, a adaptar-se à lei da sociedade moderna, onde todo valor de uso propende a converter-se em mero valor de troca.
Marcado por essa suspeita dialética do pensamento adorniano, Sanguineti adverte contra a ilusão que consiste em separar totalmente a face “heróica” e a cara “cínica” das vanguardas – o seu momento de repulsa à desumanização imposta pela sociedade reificada, e o momento de cumplicidade com essa mesma desumanização. A vanguarda – pensa – ele – não é um mero subproduto ideológico da estrutura de classes; antes provém dessa pseudo classe social sui generis que são os intelectuais; mas seu relacionamento íntimo com a estrutura geral da sociedade, e, notadamente, com sua base econômica, proíbe que negligenciemos a interpenetração de valor e preço, de museu e mercado. Interpenetração de funestas conseqüências, pois o museu funciona como sede de uma sutil sublimação do ser social da obra de arte, colocando a arte radical sob a inevitável suspeita de “traição” frente à lucidez intransigente da crítica da cultura.

Assim o “vanguardismo revolucionário” de Sanguineti se recusa a justificar a neovanguarda; no máximo, concede-lhe um estrito sursis, principalmente porque, a seu ver, entre a ambigüidade dos estilos de vanguarda e o conteudismo simplista das estéticas “engajadas”, a primeira é sempre preferível (não fosse ele o celebrado autor dos “herméticos” textos neovanguardistas Laborintus, Purgatório do Inferno e Capricho Italiano). Menos sofisticado, Enzensberger inicia seu ataque assinalando o fato de que, muitas vezes, os santos padroeiros da modernidade agiram e produziram sem cultivar nenhuma liturgia “vanguardista. Nem um Kafka nem um Beckett parecem ter precisado do termo ou dos gestos da vanguarda; eles ocupam o centro da literatura moderna, e no entanto, não pertenceram – como, de resto, tampouco os grandes expressionistas Traki e Benn – a nenhuma seita, a nenhum ismo pré-rotulado. Poeta e ensaísta brechtianamente em guarda contra todo delírio esteticista, Enzensberger esquematizava com sarcasmo e penetração as tentações soteriológicas da vanguarda nova – o seu vezo ridículo de apresentar-se como tabernáculo da redenção cultural. E não é menos severo para com o furor experiemntalista.

Adorno, o paladino de Schoenberg (embora nem tanto da dodecafonia, conforme se pode ver na sua Filosofia da música moderna), ainda pôde justificar (no segundo cap. Da Teoria estética) o experimentalismo cientificisticamente “legitimado” como sacramentos salvadores, depositários da regeneração da raça pelo “revigoramento” mítico da linguagem... Talvez se possa explicar por aí a facilidade com que os nossos concretistas converteram seu culto a Pound em adesão festiva ao cientificismo do dia – o estruturalismo escolástico, formalização aleinante das ciências humanas, bem desobediente à advertência que fez Lé-vi-Strauss em sua crítica a Propp: “o estruturalismo não é um formalismo”. Ezra Pound, que propugnou uma poética esteticista (Sanguineti dixit; e, antes dele, o nosso Mário Chamie, em plena euforia poundianófila verde e amarela) culturalmente míope (basta confronta-lo com Eliot!) e sociologicamente obtusa, foi a própria encarnação da ingenuidade que pretende “salvar” a sociedade pela “purificação” formalista da linguagem – coisa muito diversa daquela ambição de Mallarmé de “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. Pode admirar que esse esteticismo salvacionista seja um caldo de cultura bastante eficaz para as fanfarronadas cientificistas dos experimentalismo amamentados em extrapolações indébitas da teoria da informação ou da simologia?...

Em seu namoro com os mass media, muitas neovanguardas desenvolvem uma espúria complacência para com o kistch (enquanto isso, o kitsch, via midcult, se apropria de vários processos vanguardistas). Na prática, esse comportamento é estimulado pela imprudente eqüidistância daqueles que, como Eco, condenam tanto os “integrados” (manipuladores conformistas dos media) quanto os “apocalípticos” (que recusam, em nome de um “anacrônico” aristocratismo cultural, todo contato com a cultura de massa e seus veículos). A intenção é boa, mas o resultado, péssimo – sugere uma grotesca equivalência entre a alienação e seu antídoto. Um certo “aristocratismo” é simplesmente, em nosso tempo de “democratismo” aviltado, condição sine qua non de atutenticidade cultural. Pode parecer o contrário: mas a verdade é que o liberalismo genuíno, em arte, se situa do lado da crítica da cultura “aristocrática”, e não dos “democráticos” justificadores dos media como eles são (e dos gêneros imbecilizantes que eles impuseram) – pois desde quando o codiconamento das consciências é sinal de liberdade ou democracia? Os defensores da cultura de massa são de fato muito tolerantes; mas é tolerante: seu amor aos homens como são reflete o seu ódio ao homem como ele deve ser”. Tenhamos a decência de não falar em “democratização da cultura” quando o que estiver sendo “democratizado” não for, absolutamente, digno do nome de cultura, no sentido crítico-educativo da palavra.

“Apocalítica” é, aliás, na opinião de Adorno, a situação exata da arte contemporânea, arte ameaçada de puro e simples extermínio. Hegel já concebera uma honesta aposentadoria da arte no seio da prosaica vida burguesa; porém na boca de Adorno, a idéia do fim da arte tem um sabor incomparavelmente mais amargo: ela se confunde coma possibilidade de negação do humano, triturado pela antiqualitativíssima sociedade de massa – a sinistra “aldeia global” do bufão McLuhan. Em tais circunstâncias, como não ser (à moda de Nietzsche) apocaliticamente revoltado?

Por isso mesmo, Sanguineti valida o pessimismo cultural. Que não precisa significar, no caso de quem julga e escreve no meio dos anos 70, recusa de certas propostas recentes da neovanguarda. Vejamos, por exemplo, o caso do hiper-realismo. Os compromissos da estética adorniana com o “abstracionismo” da velha vanguarda não lhe permitiram estender sua noção da arte crítica ao neo-figurativismo do pop e do hiper-realismo. Não obstante, se levarmos em conta agumas tendências culturais da sociedade atual, a teoria crítica da arte se torna perfeitamente suscetível de incorporar a vanguarda novíssima. Três dessas tendências seriam: a) o esvaziamento semântico da arte nas mãos dos abstracionismos e construtivismos, cada vez mais degenerados em frívolo decorativismo; b) a multiplicação e a hegemonia – anunciadas por Walter Benjamin – da imagem reprodutível (com todo um cortejo de implicações estéticas); e, sobretudo, c) a nova feição da ideologia; ideologia é hoje, nas palavras do próprio Adorno, a sociedade como fenômeno. É suficiente ligar a televisão para comprová-lo: na época da “sociedade opulenta”, o manto ideológico se tornou cinicamente transparente; a própria realidade cotidiana tende a funcionar como ideologia.

Ora, o pop legítimo, como o legítimo hiper-realismo, não passam de um recarregamento semântico da arte contemporânea (de um esforço do seu poder de referencialidade, por meio de imagens, essencialmente reprodutíveis, destinadas a focalizar, em perspectiva crítica, exatamente aqueles mitos e instrumentos que melhor caracterizam a vida cotidiana na sociedade de massa – e o nosso tropicalismo acertou em cheio quando se propôs explorar o cotidiano do capitalismo periférico enquanto hipérbole do kitsch). Os hiper-realistas também “experimental” – mas suas experiências não são autotélicas: não se esgotam em si mesmas; em vez disso, desembocam efetivamente na interpretação crítica do presente, que é a tarefa número um da arte na sociedade industrial, hoje como ontem, na época da heróica vanguarda modernista e no tempo da – ainda possível – neovanguarda, toda vez que esta se mostre capaz de exorcizar o demônio da alienação formalista.

Brasília, junho de 1974.

José Guilherme Merquior*ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL DO BRASIL, EM 10 ago. / 1974.
** TEXTO RETIRADO DO LIVRO ‘O ESTRUTURALISMO DOS POBRES E OUTRAS QUESTÕES’. COLEÇÃO DIAGRAMA – 2 .1975. EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA.

Morre José Guilherme Merquior, o intelectual preocupado mais em podar e negar do que em plantar e afirmar
O Especialista em tudo
(Veja*)

A morte do escritor e diplomata José Guilherme Merquior aos 49 anos, de câncer, na semana passada, privou a cultura brasileira de um de seus intelectuais mais barulhentos. Merquior viveu e escreveu sob a síndrome de Rui Barbosa: er auma cartola na Senegâmbia. Como o Águia de Haia, que segundo lenda teria ensinado inglês aos próprios ingleses, Merquior era admirado, e temido, pela sua formidável erudição. Bem equipado como poucos intelectuais no país, escreveu em inglês vários de seus vinte livros, tinha trânsito livre nas melhores universidades do mçundo e escrevia com a mesma clareza e conhecimento de causa sobre literatura, filosofia, sociologia, política e artes plásticas. Com essa bagagem cultural, Merquior tinha uma noção precisa de seu papel no debate de idéias no Brasil e se permitia ironias com sua imagem. "No Brasil, quem sabe três coisas é considerado gênio por quem sabe duas: um dia alguém via demonstrar que minha famosa erudição não passa de uma imagem em negativo da famigerada ignorância das pessoas a quem ela incomoda", afirmou.

Em seus livros e ensaios, ao longo dos anos Merquior flertou com o hegelianismo culturalista de Lukács, com o existencialismo de Heidegger, com o iluminismo de Rousseau e com a soicologia de Max Weber. Era uma salada, temperada por um liberalismo constante. Também foi sistemático o seu empenho em demolir o marxismo, o estruturalismo e a psicanálise. Havia nesse seu afã de analisar grandes pensadores uma inquietude visceral e uma recusa taxativa ao provincianismo. Sua vasta erudição, no entanto, sempre foi aplicada na discussão de obras alheias, que iluminava determinados meandros. Lançar uma luz radicalmente nova sobre um determinado eassunto ou autor era coisa que Merquior nunca fazia. Não se depreende de sua obra uma força de originalidade, ou o impulso a abrir caminhos inéditos. Ele estava amis preocupado em podar do que plantar, em discutir idéias do que criá-las, em negar teorias do que afirmá-las. Mesmo na área em qeu tinha mais talento, a da crítica literária, às vezes deixou de lado o seu tão decantado rigor. Se escreveu ensaios excelentes sobre MAchado e Drumond, também foi capaz de entoar loas à pífia obra literária do ex-presidente José Sarney, de quem disse ser autor de "uma expressiva literatura regional".

"Miolo Mole" - Merquior tinha uma grande qualidade: num país de ralos debates intelectuais, não levava desaforo para casa, e comprava brigas sempre que sentia sua inteligência ultrajada. Tornaram-se célebres suas polêmicas - com Marilena Chauí, a quem acusou de plagiar Claude Lefort, com o psicanalista Eduardo Mascarenhas (a quem recomendou que estudasse Freud) e cofm Caetano Veloso (que para ele tinha "miolo mole"). Hoje, o que sobra de suas polêmicas são palavras ao vento - sempre duras, às vezes espirituosas, mas que em nenhuma instância acrescentaram algo de relevante à vida cultural do país. Sobre Caetano, por exemplo, disse não compartilhar "da visão pateta do Brasil de que os grandes astros da música popular são intelectuais" - uma observação inteligente, mas sem maiores conseqüências. Nesse sentido, o que resta da obra de Merquior é uma grande negativa, uma carpintaria de flechas certeiras destinadas a eliminar idéias sem que em seus livros e em suas controvérsias repousem outras melhores para substituí-las.

Merquior ocupava o cargo de embaixador do Brasil junto à Unesco, em Paris. Nascido no Rio de Janeiro, formado em Direito, aos 20 anos passou em primeiro lugar para o Instituto Rio Branco, de formação de diplomatas. Entre 1981 e 1983, foi assessor especial do então ministro da Casa Civil do governo Figueiredo, Leitão de Abreu, num a associação com o regime militar que a esquerda brasileira jamais lheperdoou. Era capaz de escrever sobre tudo, mas jamais se debruçou sobre o fato de agitar uma bandeira liberal ao mesmo tempo em que colaborava com um regime de força.

ANEMIA - Em agosto do ano passado, sentindo-se cansado, procurou um médico em Paris. O diagnóstico foi rápido: anemia. Aconselhado por um colega do Itamaraty, embarcou para Boston, nos Estados Unidos, onde foi detectado o câncer no intestino. Com o início do tratamento quimioterápico, passou a se ausentar com freqüência de seu escritório na Unesco. "Essa droga, o interferon, me derruba", costumava reclamar. Procurava levar vida normal, frqüentando conferências e mantendo encontros, mas seus amigos se assustavam com sua pele amarelada pelos remédios e com seu emagrecimento rápido. Em novembro, compareceu à entrega do prêmio literário Cino del Duca a Jorge Amado. Ouviu o discurso do escritor com os olhos semi-cerrados e, ao final, apressou-se em deixar o local. "Vamos embora, Hilda", disse à mulher, com quem teve um casal de filhos. "Você sabe que eu não consigo ficar muito tempo de pé". Na segunda-feira passada, Merquior submeteu-se a nova cirurgia em Westchester, perto de Nova York, e logo após não resistiu a duas paradas cardíacas.

*Revista Veja, 16 de janeiro, 1991. Sem o autor mencionado.

** Nos anos 80, José Guilherme Merquior, batizou de "visão pateta" do Brasil dar a compositor popular status de intelectual. A música popular regozija-se com a morte de quem faz críticas ao seu avacalhamento ético.

 

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