Na Direção do Giroscópio: Uma Entrevista com Milton Le Cury, Baterista da Banda Ghi, que Foi a Última a Ensaiar com Arnaldo Durante o Ano de 1981 Antes de Seu Acidente
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Na Direção do Giroscópio: Uma Entrevista com o Baterista da Banda Ghi, que Foi a Última a Ensaiar com Arnaldo Durante o Ano de 1981 Antes de Seu Acidente
O baterista Milton Le Cury: "Arnaldo dizia que queria se limitar a cantar, no estilo de um crooner ou líder de banda".
1981
O baterista Milton Le Cury relembra: "Arnaldo dizia que queria se limitar a cantar, no estilo de um crooner ou líder de banda."
Se você observar atentamente a contracapa do álbum Singin' Alone, verá uma foto em que Arnaldo, enquanto acende um cigarro, apoia o braço sobre um caderno equilibrado em seu joelho. Seria aquele o caderno de suas composições? Após tantas mudanças repentinas, lares desfeitos e até um passaporte extraviado, será que alguma composição inédita de Arnaldo conseguiu sobreviver ao tempo?
Em 2005, Zé Brasil e Silvia Helena gravaram a inédita parceria entre Arnaldo Baptista e Zé Brasil, “Cabelos Dourados”. A letra, entregue por Arnaldo a Zé Brasil em 1974, passou por pequenas alterações antes da gravação. Esse marco representou a primeira vez que uma composição inédita de Arnaldo, nunca antes registrada por ele mesmo, foi gravada.
Curiosamente, em 1981, o baterista Milton Le Cury também recebeu diretamente de Arnaldo a letra de “Garota de Sucesso” para musicar. No entanto, apenas em setembro de 2020, durante a pandemia, a gravação de “Garota de Sucesso” veio à tona, revelada em vídeo, com Milton Le Cury cantando e tocando violão.
Quem sabe se um dia o amor se encontrar
Na paz do nosso lar
A tangência de uma dor
Que ainda tento esquecer ao encontrar
Não sei não
Quem sabe onde estarás
Se um dia o amor vier bater à porta
Vou voar de um sertão que é só meu
Nunca se arrependa nunca do que um dia pensamos em ter
Se meus lábios ainda quentes de um beijo que um dia eu sonhei
Se foi isso em vão
Se foi na vida um turbilhão
Com a história da garota em coquete de sucesso iê
Mas ainda vou pensar em encontrar na minha casa
O seu encanto encantador
Meu Deus
Mas ainda vou pensar em encontrar na minha casa
O seu encanto encantador
Início da Jornada
“A proposta do Arnaldo era gravar Singin' Alone com a gente” (Milton Le Cury)
A bordo do Ford Maverick dirigido por Arnaldo, no banco do carona, fosse ao lado do baterista Milton Le Cury ou do técnico de som Plínio Hessel Jr., Arnaldo sempre explicava com entusiasmo a função que o giroscópio teria em sua nave espacial. E aqueles garotos sabiam: o giroscópio era o coração de tudo! Ainda lembram com nitidez das manhãs em que desciam a serra com Arnaldo, rumo ao pé da montanha para comprar pão, no primeiro horário, a toda velocidade no lendário Maverick.
— Arnaldo dirigia um Maverick?
Milton Le Cury: Sim, ele acelerava aquele Maverick pela serra, enfrentando a neblina, sempre que íamos buscar pizza lá embaixo ou pão na padaria. Conhecia aquela estrada como a palma da mão. Numa dessas idas, com Arnaldo ao volante, João Diniz (piano) e Robson Vernalha (guitarra), ele desceu a toda velocidade pela Serra da Cantareira e, ao chegar, soltou: "Tenho saudades da minha Corvette..." Imagina! Se já fazia miséria com o Maverick, o que não faria com a Corvette?
Arnaldo se orientava e se movia através da sua criatividade e do seu jeito de viver, sempre buscando novas formas de expressão e conexão.
“Arnaldo dava aulas de passos de ballet clássico para a gente logo que acordávamos, rs.” (Milton Le Cury, o baterista, tinha 23 anos na época).
“O Arnaldo não tinha perfil para negócios. Ele era totalmente dedicado à arte.”
“Tenho um exemplar do Lóki? autografado por ele. Escreveu algo como: ‘Para o maior baterista do universo’ haha!”
No início, "Garota de Sucesso" era um blues.
— Vocês eram músicos? Quem na banda era mais próximo do Arnaldo?
Milton Le Cury: Sim! Somos músicos, e todos éramos fãs dos Mutantes. Já conhecíamos o arranjador Rogério Duprat, que era muito próximo de Milton Takada, um dos guitarristas da banda Ghi.
Creio que todos éramos próximos do Arnaldo de alguma forma, porque a gente morava lá metade da semana, rs. Mas eu era próximo, e o Renato Comi, o guitarrista, também.
— Como era a formação da Ghi?
Milton Le Cury: A Ghi já existia desde 1981. Já éramos uma banda quando conhecemos o Arnaldo em uma loja de instrumentos musicais, onde fomos comprar dois amplificadores e uma mesa de som Giannini.
(...) Eu na bateria, João Lisanti Neto no contrabaixo, Renato Comi na guitarra solo e voz, além de dois guitarristas, Robson Vernalha e Milton Takada. João Diniz tocava piano acústico e teclados, e Roberto Comi fazia os vocais de apoio (backing vocal). Em algumas músicas, como “Corta Jaca”, eu também fazia backing vocal. Arnaldo queria reduzir a formação e manter apenas eu, Renato Comi, João Diniz no piano e, possivelmente, Miltinho Takada. A banda era grande, e ele preferia algo mais compacto.
— Gravaram algum ensaio?
Milton Le Cury: Sim, a gente gravava. O Plínio fazia as gravações. Acho que ele não tem mais, não posso afirmar com certeza... Eu tenho uma gravação em K7. Pretendo passar para CD e conseguir um link, mas ainda não fui atrás disso. A qualidade não é boa, bem "trash", gravação direta... roots (risos). Depois que conhecemos o Arnaldo, ele quis ver a gente tocar e foi a um ensaio da banda em Itapecerica da Serra. Depois disso, nos convidou para tocar com ele em sua casa, onde morava com Suzana, na Serra da Cantareira. Tenho algumas fotos desses ensaios, mas poucas em que o Arnaldo aparece. Eram fotos tiradas com câmera de filme, e algumas ainda tenho reveladas.
— Rolava alguma coisa dos Mutantes?
Milton Le Cury: Dos Mutantes, a gente não tocava. Apenas brincávamos tocando algumas coisas na forma de medley. Tínhamos muita liberdade para criar e arranjar as músicas dele.
Por exemplo, em "Ciborg", a gente tinha um fraseado de duo de guitarra bem original. Tocávamos todas as músicas do Singin' Alone! Íamos para a casa dele, do Arnaldo e da Suzana, na Serra da Cantareira, nas quartas e ficávamos lá até domingo, tocando e ensaiando. Nossas versões eram incríveis! As músicas dele são muito boas: "Trem", um blues incrível, e "Corta Jaca", que era ótimo porque tínhamos um backing vocal com terças... A gente criava junto, e ele dava algumas direções de arranjo que gostava no piano. A voz dele era boa, com uma extensão vocal incrível e muito afinada, com aquele sotaque caipira, paulista.
— Ele comentava sobre a recente volta dele do Rio para São Paulo?
Milton Le Cury: Não! Ele estava totalmente focado nos ensaios. Tinha uma energia incrível, e os ensaios eram como verdadeiros shows, super dinâmicos.
— Qual foi o processo de criação da música ‘Garota de Sucesso’?
Milton Le Cury: 'Garota de Sucesso', Arnaldo escreveu a letra naquele ano de 1981 e me deu para musicar. A poesia de Arnaldo está neste lugar onde ele sempre habitou, uma dimensão profundamente ligada à criatividade, de uma forma muito pura e genuína. É algo que vem direto do coração, o que a torna realmente incrível. Fiz duas versões. Mostrei uma para o Sérgio Dias, mas durante a pandemia, fiz outra música. Gosto mais dessa versão. Estou trabalhando nela.
— Durante o tempo que você esteve na Cantareira, ele recebia visitas? Ele falava com vocês sobre os dias dele com os Mutantes?
Milton Le Cury: Não. Arnaldo comentava sobre os Mutantes, mas só sobre algumas histórias bacanas. Nunca falou sobre sua saída da banda, nem sobre a Rita. Depois que tocávamos, ele se retirava para o quarto, enquanto a gente ficava na sala, onde também ensaiávamos. Suzana sempre pedia para não fumarmos na presença dele — ela cuidava dele com carinho. De qualquer forma, já evitávamos fumar perto dele.
A reclusa Suzana Braga, num dia qualquer de 2016.
Suzana era um verdadeiro doce de mulher e mãe. Ela tinha um negócio de cerâmica de família, localizado na rua Frei Caneca. Era muito criativa também. Eu gostava muito dela. Fomos bastante próximos nessa convivência lá na Cantareira.
Suzana Braga não cantava com a gente. Ela tinha dois filhos pequenos, André e a filha mais velha, Ariana, com quem também convivíamos durante os dias de ensaio.
Arnaldo era extremamente sensível e inteligente. Ele adorava amplificadores Marshall valvulados, os famosos tube amps, e também curtia muito tocar no piano dele. Apesar de ter uma condição neurológica que era classificada como algum tipo de loucura, ele era lúcido dentro da própria loucura... sabe o que quero dizer? A gente percebia isso, mas era algo normal. Ele era muito sensível, criativo e extremamente amoroso.
— Ele falava de Lou Reed?
Milton Le Cury: Sim, ele gostava e também era fã do Elton John.
— Arnaldo viajou para a Europa ou Estados Unidos nesse período?
Milton Le Cury: — Não! Ele sumiu por uma semana e voltou dizendo que tinha ido para a Inglaterra. Mas acho que não... Foi só uma viagem dele...
— Essa ‘sumida’ era um eufemismo para uma internação rápida?
Milton Le Cury: — Era mais relacionado a essa situação.
— Como você soube sobre a queda dele?
Milton Le Cury: Suzana nos contou o que havia ocorrido. Fomos informados por ela.
— Como foi para você encontrar Martha Mellinger no Hospital do Servidor Público, naquele momento tão delicado após o acidente do Arnaldo, e mais tarde ouvir dele próprio sobre o episódio envolvendo a tentativa de se atirar e a influência da música ‘Let Me Try Again’? E como foi esse reencontro inesperado com ele no metrô anos depois?
Milton Le Cury: Encontrei Martha Mellinger uma única vez, quando fui visitar o Arnaldo no Hospital do Servidor Público, logo após o acidente. Eu estava entrando no elevador, e ela saía acompanhada de Rita Lee. Mas não me dei conta de que era a Martha. A ficha daquele encontro inesperado na entrada do elevador só caiu depois, quando a conheci pessoalmente no ano passado, em 2024, e percebi que era ela quem estava ao lado da Rita.
Quando Arnaldo recebeu alta e já conseguia falar novamente, contou-nos que havia tentado se atirar. Porém, a blusa do uniforme de internação ficou presa na maçaneta, interrompendo o movimento. Nesse momento, ele se lembrou da música de Frank Sinatra, "Let Me Try Again", e decidiu se lançar novamente. Havia uma marquise. Ele caiu sobre ela. Anos depois, cruzei com ele no metrô. Foi um encontro inesperado que me deixou atônito.
OBS: Na versão da revista Manchete, diz-se que “Arnaldo caiu no chão de cimento do pátio de estacionamento”.
No entanto, a versão mais plausível é que ele estava do outro lado, na fachada principal, onde havia uma marquise na entrada do edifício (porta principal). Anos depois, cruzei com ele no metrô. Foi um encontro inesperado que me deixou atônito.
— Pós-acidente: quais foram os shows que vocês fizeram com o Arnaldo, e quem mais dividiu o palco com vocês?
Milton Le Cury: Nós tocamos com ele no Lira Paulistana e fizemos outro show no Tuca, que foi o último antes do teatro pegar fogo. Com a gente, o Arnaldo apenas cantava. O pianista era o João Diniz, da formação clássica também. Frequentemente nos encontrávamos e tocávamos juntos, como naquele show no Tuca, onde dividimos o palco com o Belchior.
2025
— Você trabalha como ator?
Milton Le Cury: Sou ator também. No ano passado, conheci e reencontrei Martha Mellinger quando trabalhamos juntos no longa Fé para o Impossível. Durante as gravações, fui descobrindo mais sobre ela, até que tudo se encaixou. Só então percebi que já a conhecia — enquanto conversávamos, a lembrança veio nítida à minha mente: aquele encontro na porta do elevador do hospital.
Na foto, o ator Milton Le Cury aparece à direita, no set do longa Fé para o Impossível, dirigido por Ernani Nunes.
Fé para o Impossível é baseado em uma história real sobre uma família religiosa cuja mãe sofreu uma agressão violenta no Rio de Janeiro, mas conseguiu uma recuperação milagrosa. Eu e Martha interpretamos os avós das crianças dessa família. Os protagonistas do filme são Dan Stulbach e Vanessa Giácomo, e eu interpreto o personagem do pai de Dan.