Demônios
Caídos
(Paulo Roberto Miranda)
"Deus! Ó Deus! Onde estais
que não respondes?"
Castro Alves
É logo alí meu irmão!
Acerca de 50 quilômetros do Alvorada,
Uma cerca de arame farpado no cerrado separa
o bem e o mal
Separa as luzes e os neons da escuridão
De um lado, a cidade que reluz: Valparaíso
Do outro o inferno, a ignomínia,
a prisão
Que esconde nas entranhas o crime, a dor,
a aflição
Lá dentro assaltantes, traficantes,
homicidas, misturados
Doentes, aidéticos, epiléticos,
tuberculosos, flagelados
Meu Deus! Meu Deus! Estão presos
em gaiolas, pendurados!
Mãos e pernas fora das celas, a
nos pedir socorro
Quem vai lá ouve os gemidos, o ranger
de dentes
Quem vai lá ouve os pedidos de clemência,
o choro
Você já foi à cadeia
de Valparaíso, meu irmão?
Você imagina o que é superlotação?
Você conhece o zoológico de
seres humanos em Goiás?
É um depósito bizarro, surreal,
perverso e desumano
Somente superado em dor, fedor, desgraça
e degradação
Pela cadeia de Contagem, perto de Belo
Horizonte, capital das Minas Gerais
Você já foi a alguma cadeia na Bahia, nega? Não?
Então vá!
Lá não tem vatapá,
não tem água limpa nem colchão. Lá
se dorme no chão
Lá não tem preso famoso,
não tem Fernandinho Beira-Mar
As cadeias podres do Brasil... Ai meu Deus!
Onde já se viu!
Não tem preso bacana, com soberba
e capital, como o Juiz Nicolau
Que por ser velho e velhaco tem prisão
domiciliar
Os demônios caídos do Brasil,
os pobres endiabrados
Que não tem poder, não tem
dinheiro e advogados
São espremidos nas celas aos montes,
asfixiados
Mais de 30 em cada uma, de 12 a 20 metros
quadrados
Nunca se deitam tranqüilos nem podem
ficar sentados
Não tem ventilação
nas masmorras, muito menos ventilador
Os demônios caídos do Brasil
estão no inferno, mais de 40 graus de calor
Estão sem trabalho, sem remédios,
sem dentista, sem pudor
Humilhados, ofendidos, violentados como
um dia violentaram
Mas onde estão os outros bandidos,
os ladrões engravatados?
Os espertos de colarinho branco, onde estão?
Às vezes condecorados, com medalha,
com mandato e o voto do povão
Onde estão os bicheiros e os doleiros?
Os sonegadores de impostos, os corruptos
embusteiros?
Os refinados banqueiros agiotas de gravata
borboleta, onde estão?
Esses tais não freqüentam pardieiros
Esses tem conceituados advogados
Nunca são algemados nem "passeiam"
em camburão
Você já foi ao presídio da Papuda, gatinha?
Ou sua mãe só deixa você
ir a missa e a festinha?
Você já foi à cadeia
de Planaltina de Goiás, ( a Brasilinha) rapaz?
Já ouviu falar do agente carcerário
Ferrabrás?
Você acha que a liberdade é
uma calça jeans, azul e desbotada?
E que preso é realmente animal e
só merece levar porrada?
Você aí, ô bacana!, que gosta de queimar um
fuminho
Você aí, ô menina!,
que se amarra numa cocaína
Já conhecem a prisão de Formosa,
do lado de Planaltina?
Lá não tem formosura nenhuma,
nem pescaria em lagoa
P'ra não virar "boneca",
ou p'ra não ser estuprado
Você tem que pagar uma taxa, p'ra
poder ficar "numa boa"
Lá em Fortaleza, princesa!, capital do Ceará
No Instituto Penal Paulo Sarasate
A bóia do pessoal vem num saco transparente
Como uma sopa nojenta, literalmente a boiar
Lá na Casa de Custódia José de Ribamar Leite,
em Teresina
Calorosa capital do Piauí, terra
do poeta Torquato Neto, da cajuína e do buriti
Os presos entraram na porrada , foram escondidos
da imprensa e de uma CPI
Porque esses bichos enjaulados foram todos
descobertos quando já iam fugir
Lá em Belém do Pará, Jesus Cristo! Sabe qual
foi a solução,
Já que presídio decente é
caro e não dá voto ao cidadão?
Nos 40 graus de calor as presas ficam encarceradas
em "containers"
Aquelas caixonas de zinco, que servem de
carrocerias p'ra caminhão
Lá em São Luís do Maranhão, terra
do poeta Gonçalves Dias
Terra de triste lendas e oligarquias
Onde Ana Janssen maltratava e torturava
suas "peças", no tempo da escravidão
Existe ainda um presídio-buraco,
em que o teto é de grade, um verdadeiro alçapão
Meu Deus! Isso é igual ao horror
dos campos de concentração!
"Minha terra tem palmeiras, onde canta
o sabiá
As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam
como lá...
Não permita Deus que eu morra, sem
que eu volte para lá!
Mas me responda, presidente!
Se um presidiário normal
Castigado, humilhado, torturado
Por todos nós vilipendiado
Maltratado mais que animal
É preso municipal, estadual ou federal?
Você que fez a lei, deputado ou senador!
Já foi alí na invasão
do Itapuã, alí na periferia?
Já visitou Águas Lindas e
sua delegacia?
Os senhor já esteve no Caje, lugar
de menor infeliz, seu juiz?
Quem deixa passar a maconha para os bandidos,
delegado?
Já provou da desgraça humana,
você que quer ser vingado?
Você lembra dos 111 mortos por PMs
no Carandirú, presídio lá de São Paulo?
Se lembra dos meninos mortos na igreja
da Candelária, por PMs do Rio de Janeiro?
Se lembra dos 23 presos mortos de Ponte
Nova, incendiados na prisão?
E dos 8 desgraçados de Rio Piracicaba,
queimados na passagem do "Ano Bom"?
" O rio de Piracicaba vai jogar água
p'ra fora
Quando chegar a água dos olhos de
alguém que chora."
OUÇA
TRECHO DA ENTREVISTA COM PADRE VALDIR
Estou
lhes enviando uma
entrevista
que fiz com o Padre Valdir, um dos coordenadores da Pastoral Carcerária
em todo o país, que conhece como poucas autoridades a situação
dos cárceres e dos encarcerados do Brasil. É um
depoimento longo, mas que vale a pena ser escutado porque é
o retrato da realidade que tenho testemunhado nas visitas da CPI
do Sistema Carcerário, que infelizmente não tem
sido acompanhada pela mídia conivente e venal, ( por ex:
a Folha e o Estado de São Paulo não deram uma linha
da visita que foi feita aos presídios de São Paulo,
para não denegrir a imagem do Governo José Serra,
como também o Estado de Minas não deu uma linha
da nossa visita a Contagem, a cadeia provisória pior que
já conheci na vida, para não empanar o brilho do
Governo Aécio Neves. Os governos estaduais tratam dos presos
como o lixo que tem que ser jogado debaixo do tapete. A cadeia
é um depósito de marginais ( somente de pobres,
pois não há um só preso de classe média
alta ou rico em todos os presídios que já visitei)
que, na visão dos governantes, tem que ser afastada da
vista dos "incluídos", para que não ouçamos
os gemidos, os pedidos, o choro e os gritos dos que são
torturados. A democracia acabou com a tortura aos presos políticos,
mas não acabou com os maus tratos nem com a tortura aos
presos comuns, que também são de carne e osso e,
por isso, também sentem dor, tristeza e desespero.
Um abraço do Paulão do Pacotão, sentindo
ainda o fedor da prisão. (Paulo Roberto Miranda)