Dentro da coordenação,
sozinho, horário de almoço, cheiro
bom de bife com cebola, o colega não tem
os medos constantes de bactérias e fungos
e afins, deixa a marmita aberta na mesa e eu imagino
se o sujo ar condicionado geral do prédio
não manda partículas de imundícies,
quando bebo sempre solicito para molharem a lata
da cerveja, o colega considera isso coisa de "mocinha".
Ele chega e pergunta algo, ignoro, estou com fones
ouvindo Liverpool, uma banda carioca dos anos
60, um amigo músico sempre ouve, seu velho
tio baixista participou da gravação,
é suave o som, me acalma.
O colega mastiga
o bife com seus dentes encardidos, me impressiona
o fato da dentadura ser desbotada e furada de
tanto café e cigarros, quando o conheci
ele não vinha trabalhar com dentes, quando
colocou a dentadura pareceu que seu rosto aumentou
muito verticalmente, ele se cansou das sacanagens
alheias. Um dia o paraíba, um sujeito trabalhador,
tosco como o que se convencionou nos anos 2000
chamar de "zé povinho", trouxe
um envelope e deixou na mesa do colega, ele abriu
e se espantou com o mau cheiro, jogou fora e nunca
comentou o assunto, curioso fui até o paraíba
que rindo me informou que se tratava de uns dentões
que tiraram de um cavalo morto, não contou
mais nada, reclamou da barriga doendo de tanto
rir. Com a rotina diária me acostumei com
o aspecto vertical do rosto do colega, quando
ele tira os dentes seu rosto diminui um pouco
e considero esquisito, nos acostumamos a quase
tudo mesmo.
A música
do Liverpool me acalma mas por dentro estou tenso,
essa tensão já dura quase quatro
anos, trabalho a sete no mesmo posto e sou visto
como alguém com possibilidades e que não
é esperto, não sabe ganhar dinheiro
com o conhecimento que detém. Não
largo o emprego para estudar para não cair
na desgraça de não ter dinheiro
para se pagar o dia a dia, com quase trinta anos
não posso exigir de meus pais boa comida
na mesa, julgo que meu quarto deveria ser do meu
sobrinho, gosto muito do garoto. Como repetido
no bom filme "O Cheiro do Ralo", a vida
é dura.
Sou pragmático,
quando vejo gente fazendo o contrário do
que manifestam como valores absolutos, sempre
exalto a hipocrisia do momento. São vários
exemplos, às vezes pessoas que se dizem
distintas não valem o que deixam no vaso,
isso é um paradoxo e tanto.
O tocador de mp3
começa a tocar Dead Kennedys, take
this job and shove it, infelizmente não
posso fazer isso, no momento não há
possibilidade para eu mandar nada para a casa
do caralho, quase tudo está me importando:
minha família onde sou ausente, meus poucos
amigos, a mãe de minha jóia que
nem atende meu telefone, tudo. Concluo que realmente
me convenceram que a vida é um rio que
flui e eu estou agarrado a capins da margem, o
problema é o que fazer para começar
a mudança. Para não ser um martírio
a tal mudança vou fazer algo fora do padrão
do meu dia a dia: natação, me fará
bem.
Muitas elucubrações
depois de uma longa conversa com o colega dos
dentes encardidos, a situação é
a mesma, apenas essas palavras ficaram no papel,
fica meu registro para alguns finitos leitores,
a vida é dura my brothers... nem
sei mais se vale a pena ser mais racional que
sentimental. Pedro Juan Gutiérrez em todos
os seus livros se apresenta como um animal sexual,
talvez bissexual, não importa, o importante
que é que ele ganha a vida fazendo o que
gosta, escrever.