O homem que incomoda
(Matthew Shirts*)


     

     Bons tempos aqueles em que o moderno nas artes e nas letras se debatia utópica e quixotescamente - mas com convicção - contra o passadismo. Não se preocupava muito com pré-pós-neo-retrô ou coisas do gênero. Competia aos artistas e intelectuais pegar o passado de surpresa, assaltá-lo, violentando-o para dar lugar a idéias e estéticas novas.

     No continente americano, tal atitude, própria do modernismo, floresceu no vácuo deixado pelos colonizadores. Onde não havia tradições seculares na alta cultura, havia possibilidade de mudança. Onde não havia passado, havia futuro. Mais que o fim de alguma coisa, o modernismo, aqui, foi a tentativa de um começo.

     Ninguém mais americano e modernista neste sentido do que Flávio de Carvalho. Engenheiro, arquiteto, pintor, urbanista, escultor, escritor, jornalista, enfim, uma espécie de renascentista da modernidade brasileira, ele vivia às voltas com o futuro. Planos e mais planos. "Roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros.", como diria seu amigo Oswald de Andrade. Flávio era possuído da doce idéia de que o futuro, principalmente no continente americano, era dos homens e dos artistas. Bastava engatar a imaginação e desenhá-lo. Foi o que ele fez. Em 1930, no IV Congresso Pan-americano de Arquitetura, no Rio de Janeiro, ele apresentou, para constrangimento de muitos presentes, o curioso plano da chamada "Cidade do Homem Nu". Não se tratava de um gigantesco campo de nudismo, mas sim de uma cidade racionalmente planejada, cientificamente controlada, "a habitação do homem nu, sem propriedade e sem matrimônio". Na racionalidade, nas máquinas e no planejamento estava a possibilidade de libertação, do sonho, do delírio, e da mudança. Nas tradições havia apenas estagnação e rotina. A cidade do homem nu só seria possível, portanto, no continente americano, "que não herdou do passado o recalque trágico da filosofia escolástica (...) nem os tabus da velha Europa".

     O próprio Flávio se sentiu obrigado a investir contra as tradições locais. Em 1931, numa performance ousada e radical que, pelo jeito, seria censurada até hoje, o nosso performático se insurgiu contra uma procissão de Corpus Christi no centro da Cidade de São Paulo. Avançou ameaçadoramente, não tirou o chapéu, e até flertou com as Filhas de Maria. Não deu outra. A massa começou a perseguir o performático, gritando "lincha, lincha". A política chegou, e Flávio acabou preso, acusado de comunista. Parece que nunca ninguém foi preso no Brasil acusado de modernista...

     *Matthew Shirts, é um brazilianista que de vez em quando nos finais de semana comenta futebol na tevê e escreve nos grandes jornais.
   **Resenha extraída da revista Primeiro Toque, abr. - jun. 1986 para o lançamento da biografia "Flávio de Carvalho - O Performático" escrita por Antonio Carlos Robert Moraes, publicada na coleção "Encanto Radical".