Reduto
de colecionadores de discos fecha as portas em SP
(Rodrigo
Brancatelli - O Estado de S. Paulo)
foto©:
Rodrigo de Carvalho Leme
www.silentinsanity.blogspot.com
Nuvem Nove, localizada no Itaim, vende menos de um terço
do que vendia no ano 2000
Júlia,
uma moça de rosto fino e cabelos castanhos, apaixonada
pelo rock dos anos 70, queria comprar o novo álbum do Van
Morrison. Quase duas décadas depois, o vendedor José
Carlos Damiani, sujeito de cabelos ralos e olhos calmos, apaixonado
por rock dos anos 60, mal consegue lembrar qual era o tal disco.
Ou mesmo se ele tinha o bolachão em seu acervo. “Acho
que era aquele do patinho na capa, né... Tinha um lago...
Avalon Sunset, acho...”, tenta recordar. Mas, ainda assim,
com ou sem disco, depois de muitas músicas e discussões
sobre qual década foi a mais importante para o rock, Júlia
e José Carlos encontraram uma outra paixão em comum.
Uma paixão que, convenhamos, renderia uma ótima
música.
“É, quem diria que
o Van Morrison ia me render um casamento”, brinca Zé,
como é conhecido pelos clientes da loja de música
Nuvem Nove, no Itaim, zona sul de São Paulo. Inaugurado
em 22 de abril de 1991, o endereço foi palco de incontáveis
outros namoros, casórios, brigas, amizades e ótimas
barganhas. Ali, era possível passar o dia inteiro comprando
CDs dos Rolling Stones e da Jovem Guarda, pedindo conselhos musicais,
ouvindo os últimos lançamentos, fazendo novos colegas
e discutindo qual disco dos Beatles era o melhor (Sgt. Pepper’s?
Revolver? O disco branco?). A história da loja, no entanto,
está nas últimas estrofes. Hoje, às 15 horas,
a Nuvem Nove baixa as portas para sempre, deixando para trás
inúmeros fãs desolados.
“Uma hora tudo acaba, não
tem jeito”, diz Zé, visivelmente triste pelo fechamento
da loja. “Foram muitas coisas boas aqui, muitos amigos,
muitas risadas, muitos relacionamentos, mas não tinha mais
cliente novo. Só os de sempre, os colecionadores. CD virou
peça de colecionador. Hoje, vendo menos de um terço
do que vendia em 2000, por exemplo. E tem o lance da informação
também, a minha função não importa
mais. Antes, eu comprava revistas importadas, livros, então,
quando um cliente vinha aqui, eu sabia tudo sobre as bandas. Dava
sugestões, mostrava algo que ele fosse gostar e levar para
casa. Hoje, qualquer moleque entra na internet e sabe mais do
que eu. Não dá para competir.”
Saudosistas
Com acervo de 12 mil CDs e quase
10 mil vinis, a Nuvem Nove era um lugar onde a música podia
ser vista, tocada, sentida e saboreada da mesma forma que podia
ser simplesmente ouvida. Interessante não era apenas comprar
música, mas sim discorrer sobre ela. A coleção
da loja começou com os próprios vinis de Zé
Carlos, empolgado em viver de música - boa parte dos discos
eram de rock, principalmente dos anos 60, mas era possível
encontrar MPB, blues, samba, metal, punk, jazz e até pagode.
“Antes, eu vendia na sala da casa de um amigo, na Granja
Julieta”, lembra. “Começou a dar certo, as
vendas aumentaram e comprei esse imóvel no Itaim para abrir
a loja. O problema é que o Itaim ficou insuportável,
é muito trânsito, não tem onde estacionar,
há muitos crimes. Ficou complicado ter uma loja de rua.”
4O principal motivo para o fechamento
da Nuvem Nove, no entanto, é uma mudança de comportamento
que o dono da loja não consegue acompanhar nem impedir.
A filha de Zé Carlos e Júlia, por exemplo, de 14
anos, simplesmente não compra mais discos. “Ela baixa
todas as músicas de que gosta na internet”, diz ele,
que não sabe nem ligar um iPod e tem aversão a MP3.
“E ela acompanha faixas, mas não acompanha bandas.
Um dia ela ouve uma coisa, no seguinte, outra coisa totalmente
diferente. É uma outra cultura, um outro jeito de consumir
música. Quando eu era moleque, eu comprava tudo do Lou
Reed e do Neil Young, ficava na expectativa pelos discos novos,
ia correndo na loja e ficava babando nas artes dos discos. Você
se apegava à música, criava empatia. Isso não
existe mais, seja para melhor ou para pior.”
Os “saudosistas” desse
tempo fizeram fila na porta da loja para se despedir de Zé
Carlos e da Nuvem Nove. Até mesmo na internet - recinto
estranho para esse tipo de gente que não vê charme
nenhum nas músicas em MP3 -, fãs da loja fazem apelos
para que ela continue funcionando. “Lá, eles respeitam
nerds de todos os tipos”, escreve um blogueiro. “Se
você pedir um disco raro do Led Zeppelin, gravado em Roma
durante uma corrida de bigas, os vendedores não vão
fazer cara de paisagem. Eles vão achar o disco para você.
E ainda comentar: ‘Pô, legal esse disco!’.”