Estética e ideologia:
o Modernismo em 1930
(João Luiz Lafetá*)
Sobrepondo-se ao otimismo anarquista
da primeira fase do Modernismo, a pré-consciência
do subdesenvolvimento introduz um elemento de tensão
entre o projeto estético e o projeto ideológico
da literatura brasileira dos anos 30. Se algumas das realizações
mais felizes do período surgem sob o influxo da "politixação",
por outro lado est acaba desviando o conjunto da produção
literária da linha d eintensa experimentação
que vinha seguindo.
O estudo da história
literária coloca-nos sempre diante de dois problemas
fundamentais, quando se trata de desvendar o alcance e os exatos
limites circunscritos por qualquer movimento de renovação
estética: primeiro, é preciso verificar em que
medida os meios tradicionais de expressão são
afetados pelo poder transformador da nova linguagem proposta,
isto é, até que ponto essa linguagem é
realmente nova; em seguida, e como necessária complementação,
é preciso determinar quais as relações
que o movimento mantém com os outros aspectos da vida
cultural, de que maneira a renovação dos meios
expressivos se insere no contexto mais amplo de sua época.
Para retomar a distinção apresentada pelos "formalistas
russos" diríamos que se trata, na história
literária, de situar o movimento inovador: em primeiro
lugar dentro da série literária, a seguir na sua
relação com as outras séries da totalidade
social. Decorre daí que qualquer nova proposição
estética deverá ser encarada em suas duas faces
(complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não
obstante, às vezes relacionadas em forte tensão);
enquanto projeto estético, diretamente ligadas às
modificações operadas na linguagem, e enquanto
projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão-de-mundo)
de sua época.
Essa distinção é
útil porque operatória; não podemos entretanto
correr o risco de torná-la mecânica e fácil:
na verdade o projeto estético, que é a crítica
da velha linguagem pela confrontação com uma nova
linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico.
O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque
às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época;
se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua
visão-de-mundo (justificando, explicitando, desvelando,
simbolizando ou encobrindo suas relações reais
com a natureza e a sociedade), investir contra o falar de um
tempo será investir contra o ser desse tempo. Entretanto,
consideremos o poder que tem uma ideologia de se disfarçar
em formas múltiplas de linguagem; revestindo-se de meios
expressivos diversos dos anteriores, pode passar por novo e
crítico o que permanece velho e apenas diferente. Pensemos,
por exemplo, em certo aspecto exaltador do futurismo marinettiano
que, pretendendo-se expressão da moderna vida industrial,
representava de fato o prolongamento anacrônico de consciência
burguesa otimista e "progressista" do século
XIX; ou lembremos ainda a retórica popularesca e demagógica
de contra-revoluções como o fascismo e o nazismo,
com seu apelo à mobilização das massas,
instaurando na simbólica partidária a fraude ideológica.
por outro lado, é também verdade que Marinetti
e o fascismo - para continuar com nosso exemplo - em muitos
dos seus aspectos representam inovações radicais
na literatura e na retórica política e nesse sentido
devem ser vistos como rupturas parciais com o passado; nesse
caos, apesar da postura ideológica reacionária
de base, a linguagem contém elementos pertencentes à
modernidade.
Modernismo
projeto estético e ideológico
Assim, é possível
concluir que, a despeito de sua artificialidade, a distinção
estético/ideológico, desde que encarada de forma
dialética, é importante como instrumento de análise.
O exame de um movimento artístico deverá buscar
a complementaridade desses dois aspectos, mas deverá
também descobrir os pontos de atrito e tensão
existentes entre eles. Sob esse prisma, podemos examinar o Modernismo
brasileiro em uma das linhas de sua evolução,
distinguindo o seu projeto ideológico (renovação
dos meios, ruptura da linguagem tradicional) do seu projeto
ideológico (consciência do país, desejo
e busca de uma expressão artística nacional, caráter
de classe de suas atitudes e produções).
A experimentação
estética é revolucionária, e caracteriza
fortemente os primeiros anos do movimento: propondo uma radical
mudança na concepção da obra de arte, vista
não mais como mimese (no sentido em que o naturalismo
marcou de forma exarcebada esse termo) ou representação
direta da natureza, mas como um objeto de qualidade diversa
e de relativa autonomia, subverteu assim os princípios
da expressão literária. Por outro lado, inserindo-se
dentro de um processo de conhecimento e interpretação
da realidade nacional - característica de nossa literatura
-, não ficou apenas no desmascaramento da estética
passadista, mas procurou abalar toda uma visão do país
que subjazia à produção cultural anterior
à sua atividade. Nesse ponto encontramos aliás
uma curiosa convergência entre projeto estético
e ideológico: assumindo a modernidade dos procedimentos
expressionais, o Modernismo rompeu a linguagem bachalaresca,
artificial e idealizante que espelhava, na literatura passadista
de 1890-1920, a consciência ideológica da oligarquia
rural instalada no poder, a gerir estruturas esclerosadas que
em breve, graças às transformações
provocadas pela imigração, pelo surto industrial,
pela urbanização (enfim, pelo desenvolvimento
do país), iriam estalar e desaparecer em parte. Sensível
ao processo de modernização e crescimento de nossos
quadros culturais, o Modernismo destruiu as barreiras dessa
linguagem "oficializada", acrescentando-lhe a força
ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular.
Assim, as "componentes recalcadas" de nossa personalidade
vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia
oficial; curiosamente, é a experimentação
de linguagem, com suas exigências de novo léxico,
novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas
diferentes, que permite - e obriga - essa ruptura.
Tal coincidência entre o
estético e o ideológico se deve em parte à
própria natureza da poética modernista. O Modernismo
brasileiro foi tomar, das vanguardas européias,
sua concepção de arte e as bases de sua linguagem:
a deformação do natural como fator construtivo,
o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento
academista, a cotidianidade como recusa à idealização
do real, o fluxo da consciência como processo desmascarador
da linguagem tradicional. Ora, para realizar tais princípios
os vanguardistas europeus foram buscar inspiração,
em grande parte, nos procedimentos técnicos da arte primitiva,
aliando-se à tradição artística
de que provinham e, por essa via, transformando-a; mas no Brasil
- já o notou um crítico - as artes negra e ameríndia
estavam tão presentes quanto a cultura branca, de procedência
européia. O senso do fantástico, a deformação
do sobrenatural, o canto do cotidiano ou a espontaneidade da
inspiração eram elementos que circundavam as formas
acadêmicas de produção artística.
Dirigindo-se a eles e dando-lhes lugar na nova estética.
o Modernismo, de um só passo, rompia com a ideologia
que segregava o popular - distorcendo assim nossa realidade
- e instalava uma linguagem conforme a modernidade do século.
Outro fator que permite essa convergência
é a transformação sócio-econômica
que ocorre então no país. O surto industrial dos
anos de guerra, a imigração e o conseqüente
processo de urbanização por que passamos nessa
época, começam a configurar um Brasil novo. A
atividade de industrialização já permite
comparar uma cidade como São Paulo, no seu cosmopolitismo,
aos grandes centros europeus. Esse dado é decisivo já
que a literatura moderna está em relação
com a sociedade industrial tanto na temática quanto nos
procedimentos (a simultaneidade, a rapidez, as técnicas
de montagem, a economia e a racionalização da
síntese). É de se notar, entretanto, que no Brasil
a arte moderna não nasce com o patrocínio dos
capitães-de-indústria; é a parte mais refinada
da burguesia rural, os detentores das grandes fortunas do café,
que acolhem, estimulam e protegem os escritores e artistas da
nova corrente. Mário de Andrade insiste nesse aspecto
em várias partes de sua conferência "O Movimento
Modernista", afirmando com humor: "Nenhum salão
de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro
nos acolheu. Os italianos, alemães, os israelitas se
faziam de mais guardadores do bom-senso nacional que Prados
e Penteados e Amarais... (Mário de Andrade, "O Movimento
Modernista", in Aspectos da Literatura Brasileira, São
Paulo, Martins, s.d., p.241).
Há uma contradição
aparente no fato de a arte moderna, implicando todas aquelas
ligações com a sociedade industrial, ter sido
patrocinada e estimulada por fração da burguesia
rural. O paradoxo, todavia, fica ao menos parcialmente resolvido
se atentarmos para a divisão de classes no Brasil, durante
a década de 20; apesar da insuficiência de estudos
a esse respeito, parece hoje confirmado que, além das
relações de produção no campo paulista
já terem caráter nitidamente capitalista por essa
época, uma importante fração da burguesia
industrial provém da burguesia rural, bem como grande
parte dos capitais que permitiram o processo de industrialização.
(Ver Edgard Carone. A Primeira República e República
Velha, São Paulo; Difusão Européia do Livro,
1969 e 1970; Boris Fausto, A Revolução de 1930,
São Paulo, Brasiliense, 1970; Caio Prado Jr., A Revolução
Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1966; Celso Furtado,
Formação Econômica do Brasil, Brasília,
Ed. da Universidade de Brasília, 1963). Daí não
haver, de fato, nada de espantoso em que uma fração
da burguesia rural assuma a arte moderna contra a estética
"passadista", "oficializada" nos jornais
do governo e na Academia. Educada na Europa, culturalmente refinada,
adaptada aos padrões e aos estilos da vida moderna, não
apenas podia aceitar a nova arte como, na verdade, necessitava
dela. Por outro lado - e isso ajuda a explicar o caráter
"localista" que marca tão fundamente o Modernismo
- a par do seu "cosmopolitismo", a burguesia faz praça
de sua origem senhorial de proprietária de terras. O
aristocratismo de que se reveste precisa ser justificado por
uma tradição que seja característica, marcante
e distintiva - um verdadeiro caráter nacional que ela
represente em seu máximo refinamento. É interessante
observar que, ainda em "O Movimento Modernista", Mário
de Andrade assinala a imponência de riqueza e tradição"
no ambiente dos salões, e se refere várias vezes
ao cultivo da tradição, representada principalmente
pela cozinha, de cunho afro-brasileiro, aparecendo em "almoços
e jantares perfeitíssimos de composição".
Dessa forma, os artistas do Modernismo e os senhores do café
uniam o culto da modernidade internacional à prática
da tradição brasileira. "Desrecalque localista;
assimilação da vanguarda européia"
sintetiza um crítico. A convergência de projeto
estético e de projeto ideológico deu as obras
mais radicais, mais tipicamente modernistas (e talvez mais "modernas",
vistas da perspectiva de hoje) do movimento: O Miramar e o Serafim,
de Oswald de Andrade, o Macunaíma de Mário, a
contundência estética da poesia Pau-Brasil. A ruptura
na linguagem literária correspondia ao instante em que
o curso da história propiciava um reajustamento da vida
nacional: "É a coincidência da primeira construção
brasileira no movimento de reconstrução geral.
Poesia Pau-Brasil", intuiu Oswald. (Oswald de Andrade,
"Manifesto da Poesia Pau-Brasil", Correio da Manhã,
18-3-24). Daí a força renovadora modernista, seu
caráter marcadamente nacional e o viço de contemporaneidade
que, cinqüenta anos depois, faz com que suas obras mais
representativas mantenha o traço da vanguarda.
Da "Fase
heróica" aos anos trinta
Vimos que, por uma razão
de ordem artística (a natureza intrínseca da linguagem
modernista solicitando a incorporação do popular
e do primitivo) e outra de ordem ideológica (a burguesia
apoiando-se em sua origem e revalorizando,a través da
transmutação estética modernizante, hábitos
e tradições culturais do Brasil arcaico), os dois
projetos do Modernismo se articulam e se complementam. Podemos
agora levar um pouco mais longe o raciocínio e indagar
das condições sociais e políticas que,
a essa época, permitem a complementação.
Para situar corretamente o Modernismo
é preciso pensar na sua correlação com
outras séries da vida social brasileira, em especial
na sua correlação com o desenvolvimento da economia
capitalista em nosso país. Aí parece estar o fulcro
da questão: atentando para a efervescência política
dos anos 20 o observador poderá inferir que o Brasil
atravessa uma fase de transformações profundas,
tenentes a configurar um quadro econômico-estrutural mais
complexo que o sistema agrário-exportador herdado do
Império. As modificações no sistema de
produção datam, naturalmente, de muito antes da
década de 20: vêm de antes da Abolição,
com o emprego do trabalho assalariado, e passam pelos sucessivos
surtos de industrialização, pela política
do Encilhamento, pelas várias levas imigratórias,
pelas inúmeras agitações operárias
do começo do século, tudo caminhando em direção
a uma complexidade crescente, tanto da nossa vida econômica,
quanto da nossa vida cultural. Apesar de não afastar
do poder as oligarquias rurais, a burguesia (comercial, financeira,
industrial; sozinha ou aliada aos interesses capitalistas imperialistas)
se encontra em franco processo de ascensão; cresce também
classe média, forma-se nas cidades um proletariado que
sabe, às vezes, demonstrar sua agressividade. Nos três
primeiros decênios do século XX os velhos quadros
econômicos, políticos e culturais do século
XIX são lentamente modificados e acabam por estourar
na Revolução de 30.
Há durante esses anos,
não obstante, a resistência das superestruturas:
permanece a política dos governadores, a serviço
das oligarquias; permanece em suas linhas básicas a política
financeira protecionista do café, gerando atritos com
a burguesia industrial; permanecem ainda, em alto grau de diluição,
o naturalismo e o simbolismo do século anterior. Durante
os anos 20 esses óbices vão sendo mais vigorosamente
atacados: o "tenentismo" é clara expressão
de um desejo de modificação do país, assim
como a fundação do Partido Comunista e a formação,
por Jackson de Figueiredo, de um grupamento pequeno-burguês
católico e direitista. Trata-se no fundo, do processo
de plena implantação do capitalismo no país
e do fluxo ascensional da burguesia, dois fatores que mexem
com as demais camadas sociais e são espelhados por tal
agitação.
Nesse panorama de modernização
geral se inscreve a corrente artística renovadora que,
assumindo o arranco burguês, consegue paradoxalmente exprimir
de igual forma as aspirações de outras classes,
abrindo-se para a totalidade da nação através
da crítica radical às instituições
já ultrapassadas. Nesse ponto o Modernismo retoma e aprofunda
uma tradição que vem de Euclides da Cunha, passa
por Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato: trata-se
da denúncia do Brasil arcaico, regido por uma política
ineficaz e incompetente.
Mas, notemos, não há
no movimento uma aspiração que transborde os quadros
da burguesia. A ideologia de esquerda não encontra eco
nas obras da "fase heróica"; se há denúncias
das más condições de vida do povo, não
existe todavia consciência da possibilidade ou da necessidade
de uma revolução proletária.
Essa é a grande diferença
com relação à segunda fase do modernismo.
O decênio de 30 é marcado, no mundo inteiro, por
um recrudescimento da luta ideológica: fascismo, nazismo,
comunismo, socialismo e liberalismo medem suas forças
em disputa ativa; os imperialismos se expandem, o capitalismo
monopolista se consolida e, em contrapartida, as Frentes Populares
se organizam para enfrentá-lo. No Brasil é a fase
de crescimento do Partido Comunista, de organização
da Aliança Nacional Libertadora, da Ação
Integralista, de Getúlio e seu populismo trabalhista.
A consciência da luta de classes, embora de forma confusa,
penetra em todos os lugares - na literatura inclusive, e com
uma profundidade que vai causar transformações
importantes.
Um exame comparativo, superficial
que seja, da "fase heróica" e da que se segue
à Revolução, mostra-nos uma diferença
básica entre as duas: enquanto na primeira a ênfase
das discussões cai predominantemente no projeto estético
(isto é, o que se discute principalmente é a linguagem),
na segunda a ênfase é sobre o projeto ideológico
(isto é, discute-se a função da literatura,
o papel do escritor, as ligações da ideologia
com a arte). Uma das justificativas apresentadas para explicar
tal mudança de enfoque diz que o Modernismo, por volta
de 30, já teria obtido ampla vitória com seu programa
estético e se encontrava, portanto, no instante de se
voltar para outro tipo de preocupação. Veremos
ainda adiante. Por enquanto importa assinalar essa diferença:
enquanto nos anos 20 o projeto ideológico do Movimento
correspondia à necessidade de atualização
das estruturas, proposta por frações das classes
dominantes, nos anos 30 esse projeto transborda os quadros da
burguesia, principalmente em direção às
concepções esquerdizantes (denúncia dos
males sociais, descrição do operário e
do camponês), mas também no rumo das posições
conservadoras e de direita (literatura espiritualista, essencialista,
metafísica e ainda definições políticas
tradicionalistas, como a de Gilberto Freyre, ou francamente
reacionárias, como o integralismo). Na verdade os dois
projetos ideológicos parecem corresponder, para retomar
aqui uma proposição de Mário Vieira de
Mello, a duas fases distintas da consciência de nosso
atraso: nos anos 20 a tomada de consciência é tranqüila
e otimista, e identifica as deficiências do país
- compensando-as - ao seu estatuto de "país novo";
nos anos 30 dá-se início à passagem para
a consciência pessimista do subdesenvolvimento, implicando
uma atitude diferente diante da realidade. Dentro disso podemos
concluir que, se a ideologia do "país novo"
serve à burguesia (que está em franca ascensão
e se prevalece, portanto, de todas as formas - mesmo destrutivas
- de otimismo), a consciência (ou a "pré-consciência")
pessimista do subdesenvolvimento não se enquadra dentro
dos mesmos esquemas, já que aprofunda contradições
insolúveis pelo modelo burguês.
A diferença entre os projetos
ideológicos das duas fases vai principalmente por conta
dessa agudização da consciência política.
O "anarquismo" dos anos 20 descobre o país,
desmascara a idealização mantida pela literatura
representativa das oligarquias e das estruturas tradicionais,
instaura uma nova visão e uma nova linguagem, muito diferentes
do "ufanismo", mas ainda otimistas e pitorescas, pintando
(como na poesia Pau-Brasil e em João Miramar, na Paulicéia
Desvairada e no Clã do Jaboti, no verde-marelismo) estados
de ânimo vitais e eufóricos; o humorismo é
a grande arma desse modernismo e o aspecto carnavalesco, o canto
largo e aberto, jovem e confiante, são sua meta e seu
princípio. A "politização" dos
anos 30 descobre ângulos diferentes: preocupa-se mais
diretamente com os problemas sociais e produz os ensaios históricos
e sociológicos, o romance de denúncia, a poesia
militantes e de combate. não se trata mais, nesse instante,
de "ajustar" o quadro cultural do país a uma
realidade mais moderna; trata-se de reformar ou revolucionar
essa realidade, de modificá-la profundamente, para além
(ou para aquém...) da proposição burguesa:
os escritores e intelectuais esquerdistas mostram a figura do
proletário (Jubiabá, por exemplo) e do camponês
(Vidas Secas), instando contra as estruturas que os mantém
em estado de sub-humanidade; por outro lado, o conservadorismo
católico, o tradicionalismo de Gilberto Freyre, as teses
do integralismo, são maneiras de reagir contra a própria
modernização.
Entretanto, não podemos
dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas
do Modernismo; da consciência otimista e anarquista dos
anos 20 à pré-consciência do subdesenvolvimento
há principalmente uma mudança de ênfase.
Assinalemos, por exemplo, o Retrato do Brasil, oscilando entre
o pessimismo da análise (de que foi tão acusado)
e o otimismo do Post-Scriptum, confiante na "revolução";
ou Macunaíma, cuja agudeza satírica parece, em
1928, mostrar já o instante da virada, ressaltando em
tom alternadamente humorístico e melancólico (principalmente
ao final do livro) o "não caráter" do
brasileiro. As duas fases não sofrem solução
de continuidade; apenas, como dissemos atrás, se o projeto
estético, a "revolução na literatura",
é a predominante na fase heróica, a "literatura
na revolução" (para utilizar o eficiente
jogo de palavras de Cortázar), o projeto ideológico,
é empurrado, por certas condições políticas
especiais, para o primeiro plano dos anos 30. E mais: essa troca
de posições vai se dando progressivamente e durante
todo o período modernista: o equilíbrio inicial
entre revolução literária e literatura
revolucionária (ou reacionária, conservadora,
tradicionalista: pensemos sempre na direita política)
vai sendo lentamente desfeito e a década de 30, chegando
a seu término, assiste a um quase esquecimento da lição
estética essencial do Modernismo: a ruptura da linguagem.
Vanguarda
e Diluição
Esse último ponto,
pelo que encerra de complexidade, deve ser mais detalhadamente
matizado. Com efeito, a opinião unânime dos estudiosos
do Modernismo é que o movimento atingiu, durante o decênio
de 30, sua fase áurea de maturidade e equilíbrio,
superando os modismos e os cacoetes dos anos 20, abandonando
o que era contingência ou necessidade do período
de combate estético. Tendo completado de maneira vitoriosa
a luta contra o passadismo, os escritores modernistas e a nova
geração que surgia tinham campo aberto à
sua frente, e podiam criar obras mais livres, mais regulares
e seguras. Sob esse ângulo de visão, a incorporação
crítica e problematizada da realidade social brasileira
representa um enriquecimento adicional e completa - pela ampliação
dos horizontes de nossa literatura - a revolução
na linguagem.
Tal análise aparece-nos,
ainda hoje, como essencialmente correta. É fato que a
década de 30 deu-nos algumas das obras mais realizadas
e algumas das obras mais realizadas e alguns dos escritores
mais importantes da literatura brasileira. Na poesia bastaria
lembrar a qualidade dos dois estreantes (em livro) de 1930,
Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, acrescentando ainda
que o período tem Remate de Males, Libertinagem e Estrela
da Manhã, além de Jorge de Lima; na prosa de ficção
o romance social de José Lins do Rego, Jorge Amado e
Rachel de Queiroz, o ponto alto atingido por Graciliano Ramos,
a direção diferente de Cyro dos Anjos; no ensaio
os estudos históricos e sociológicos de Gilberto
Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Hollanda, o
próprio Mário de Andrade.
Essa produção, pelo
alto nível que atinge, coroa sem dúvida o Modernismo;
aqui, a vanguarda vitoriosa mostra-se no que tem de melhor e
de mais completo, abarcando além disso o campo dos problemas
sociais. A Revolução de 30, com a grande abertura
que traz, propicia - e pede - o debate em torno da história
nacional, da situação de vida do povo no campo
e na cidade, do drama das secas, etc. O real conhecimento do
país faz-se sentir como uma necessidade urgente e os
artistas são bastante sensibilizados por essa exigência.
A Revista Nova, por exemplo, marca de forma bem clara, em seu
primeiro editorial, o novo roteiro do Modernismo; seus diretores
(Paulo Prado, Antônio de Alcântara Machado e Mário
de Andrade), justificando-se com o "imenso atraso intelectual
do Brasil", explicam o caráter abrangente da publicação
e escrevem: "Com tal intuito a Revista Nova não
se cingirá à pura literatura de ficção.
Nem mesmo lhe reservará a maior parte do espaço.
O conto, o romance, a poesia e a crítica deles não
ocuparão uma linha mais do que de direito lhes compete
numa publicação cujo objetivo é ser uma
espécie de repertório do Brasil. Assim o interessado
encontrará aqui tudo quanto se refere a um conhecimento,
ainda que sumário desta terra, através da contribuição
inédita de ensaístas, historiadores, folcloristas,
técnicos, críticos e (está visto) literatos.
Numa dosagem imparcial". Revista Nova, Ano I, nº I,
15. III. 31, p. 3-4.
Peguemos o problema por esse ângulo:
nos anos 20 a grande discussão é eminentemente
literária e se trava em torno da questão (básica)
da linguagem nova inaugurada pelo Modernismo; no raiar dos anos
30 já se quer uma "dosagem imparcial" e já
surge uma revista que se deseja "uma espécie de
repertório" do Brasil. Em termos de mudança
de ênfase essa modificação é significativa,
principalmente porque, com o decorrer dos anos, a imparcialidade
da dosagem vai sendo levemente alterada; se os primeiros tempos
do decênio assistem à alta produção
da maturidade modernista, assistem também ao início
da diluição de sua estética: à medida
que as revolucionárias proposições de linguagem
vão sendo aceitas e praticadas, vão sendo igualmente
atenuadas e diluídas, vão perdendo a contundência
que transparece em livros radicais e combativos da fase heróica,
como as Memórias Sentimentais de João Miramar
e Macunaíma.
Tal diluição, aliás,
começa antes de 30, começa no interior mesmo do
movimento modernista e já na hora mais quente da luta.
O crítico Haroldo de Campos, examinando a dialética
entre vanguarda e kitsch, observava com acerto que o Verde-amarelismo
e a Escola da Anta dissolveram e aguaram a escritura vanguardista.
Mas é principalmente na segunda metade da década
de 30 que a kitschização da vanguarda parece se
tornar mais aguda, mais grave, até desemborcar, já
nos anos 40, numa literatura incolor e pouco inventiva, e numa
linguagem novamente preciosa, anêmica, "passadista",
pela qual é principalmente responsável a chamada
"geração de 45".
Mas que tem isso a ver com o projeto
ideológico do Modernismo, com a intensidade da luta política
que se trava após a Revolução de Outubro,
com as novas posições assumidas pelos intelectuais
e artistas brasileiros, com os extremismos partidaristas do
período que nos interessa? A nossa hipótese é
está: na fase de conscientização política,
de literatura participante e de combate, o combate, o projeto
ideológico colore o projeto estético imprimindo-lhe
novos matizes que, se por um lado possibilitam realizações
felizes como as já citadas por outro lado desviam o conjunto
da produção literária da linha de intensa
experimentação que vinha seguindo e acabam por
destruir-lhe o sentido mais íntimo de modernidade.
Vejamos, de forma
rápida, alguns exemplos.
Na poesia tal modificação
se dá principalmente por causa de uma reação
de fundo "direitista", que vem do grupo espiritualista
encabeçado por Tasso da Silveira corre paralelamente
ao Modernismo com as revistas Terra de Sol e Festa, e vai encontrar
sua realização maior nos poemas prolixos e retóricos
de Schmidt. Esse poeta, tanto como os seus seguidores de menos
talento e menos técnica (e que proliferaram no decênio
de 30), parece-nos um bom exemplo de diluição:
desejando combater as "exterioridades" do Modernismo,
o que fez na realidade foi incorporar o que havia de mais propriamente
exterior no movimento (verso livre, inspiração
solta, neo-romantismo), esquecendo-se do que este possuía
de mais contundente (coloquialismo, condensação,
surpresa verbal, humor). Se Schmidt foi capaz de rotinizar,
isto é, de adotar e aplicar com relativa mestria alguns
processos poéticos de compor, preconizados pelos modernos,
foi incapaz de manter a tensão de linguagem que caracterizou
a vanguarda, dissolvendo-a no condoreirismo reacionário
que Mário de Andrade soube ver e denunciar.
Na prosa de ficção
esse balanceio entre rotinização e diluição
(ou entre "vanguarda" e "kitsch") fica bem
mais claro principalmente no romance de denúncia, no
romance "social", "político", "proletário",
"nordestino", que é a grande novidade do decênio.
Incorporando processos fundamentais do Modernismo, tais como
a linguagem despida, o tom coloquial e presença do popular,
esse tipo de narrativa mantém, entretanto, um arcabouço
neo-naturalista que, se é eficaz enquanto registra e
protesta contra as injustiças sociais, mostra-se esteticamente
muito pouco inventivo e pouco revolucionário. Colocados
ao lado de Serafim Ponte Grande (escrito em 1928, embora publicado
em 1933) ou Macunaíma, deixam entrever a pequena audácia
e a curta modernidade de seus esquemas.
Não cabe nos estreitos
limites deste ensaio - repetimos - uma análise da evolução
estética do Modernismo nos anos 30. Limitamo-nos
aqui a esboçar o roteiro de um conflito que se nos afigura
importante para compreender e situar os problemas que serão
enfrentados pela crítica nesse momento. A tensão
que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda
(a ruptura da linguagem através do desnudamento dos procedimentos,
a criação de novos códigos, a atitude de
abertura e de auto-reflexão contidas no interior da própria
obra) e o projeto ideológico (imposto pela luta política)
vai ser o ponto em torno do qual se desenvolverá a nossa
literatura por essa época. Desse conflito é que
nascerá uma opinião bastante comum nos anos 30:
a suspeita de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito
grande de cacoetes, de "atitudes" literárias
que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem
realizada. Na verdade esse questionamento tinha um ponto de
razão; mas, na medida em que foi exagerado (e nisso a
consicência política, tanto de direita quanto de
esquerda, exerceu forte influência), afastou as obras
então produzidas grande parte da radicalidade da nova
estética. No (bom) exemplo que é a reação
espiritualista em poesia, parece-nos que o peso da ideologia
é claramente o fator responsável pela diluição,
pois insistindo em que a literatura devia tratar temas essenciais
e elevados caminhoupara a eloqüência inflada e superficial;
no (bom) exemplo que é o romance neo-naturalista, foi
também a consciência da função social
da literatura que, tomada de orma errada, conforme os parâmetros
de um desguarnecido realismo, provocou o desvio e a dissolução.
O estudo da literatura na década
e 30 (e até o fim da guerra), vista do ângulo dessa
tensão entre o projeto estético da vanguarda e
as modificações introduzidas pelo novo projeto
ideológico, ainda está por ser feita. Há,
naturalmente, problemas intricados a serem resolvidos; para
ficar num caso apenas, podemos exemplificar com as alterações
formais na linguagem do romance, operadas em compromisso com
as estruturas narrativas do século XIX (os modelos romântico
e naturalista), o que o constitui por si só um campo
vasto de discussão.
*"Estética e ideologia:
o Modernismo em 1930", Texto do saudoso professor
João Luiz Lafetá, originalmente
publicado na revista "Argumento", Ano 1 nº2,
Novembro de 1973.