Estética e ideologia: o Modernismo em 1930
(João Luiz Lafetá*)


 

Sobrepondo-se ao otimismo anarquista da primeira fase do Modernismo, a pré-consciência do subdesenvolvimento introduz um elemento de tensão entre o projeto estético e o projeto ideológico da literatura brasileira dos anos 30. Se algumas das realizações mais felizes do período surgem sob o influxo da "politixação", por outro lado est acaba desviando o conjunto da produção literária da linha d eintensa experimentação que vinha seguindo.    

     O estudo da história literária coloca-nos sempre diante de dois problemas fundamentais, quando se trata de desvendar o alcance e os exatos limites circunscritos por qualquer movimento de renovação estética: primeiro, é preciso verificar em que medida os meios tradicionais de expressão são afetados pelo poder transformador da nova linguagem proposta, isto é, até que ponto essa linguagem é realmente nova; em seguida, e como necessária complementação, é preciso determinar quais as relações que o movimento mantém com os outros aspectos da vida cultural, de que maneira a renovação dos meios expressivos se insere no contexto mais amplo de sua época. Para retomar a distinção apresentada pelos "formalistas russos" diríamos que se trata, na história literária, de situar o movimento inovador: em primeiro lugar dentro da série literária, a seguir na sua relação com as outras séries da totalidade social. Decorre daí que qualquer nova proposição estética deverá ser encarada em suas duas faces (complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não obstante, às vezes relacionadas em forte tensão); enquanto projeto estético, diretamente ligadas às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão-de-mundo) de sua época.
     Essa distinção é útil porque operatória; não podemos entretanto correr o risco de torná-la mecânica e fácil: na verdade o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão-de-mundo (justificando, explicitando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade), investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo. Entretanto, consideremos o poder que tem uma ideologia de se disfarçar em formas múltiplas de linguagem; revestindo-se de meios expressivos diversos dos anteriores, pode passar por novo e crítico o que permanece velho e apenas diferente. Pensemos, por exemplo, em certo aspecto exaltador do futurismo marinettiano que, pretendendo-se expressão da moderna vida industrial, representava de fato o prolongamento anacrônico de consciência burguesa otimista e "progressista" do século XIX; ou lembremos ainda a retórica popularesca e demagógica de contra-revoluções como o fascismo e o nazismo, com seu apelo à mobilização das massas, instaurando na simbólica partidária a fraude ideológica. por outro lado, é também verdade que Marinetti e o fascismo - para continuar com nosso exemplo - em muitos dos seus aspectos representam inovações radicais na literatura e na retórica política e nesse sentido devem ser vistos como rupturas parciais com o passado; nesse caos, apesar da postura ideológica reacionária de base, a linguagem contém elementos pertencentes à modernidade.

     Modernismo projeto estético e ideológico
     Assim, é possível concluir que, a despeito de sua artificialidade, a distinção estético/ideológico, desde que encarada de forma dialética, é importante como instrumento de análise. O exame de um movimento artístico deverá buscar a complementaridade desses dois aspectos, mas deverá também descobrir os pontos de atrito e tensão existentes entre eles. Sob esse prisma, podemos examinar o Modernismo brasileiro em uma das linhas de sua evolução, distinguindo o seu projeto ideológico (renovação dos meios, ruptura da linguagem tradicional) do seu projeto ideológico (consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e produções).
     A experimentação estética é revolucionária, e caracteriza fortemente os primeiros anos do movimento: propondo uma radical mudança na concepção da obra de arte, vista não mais como mimese (no sentido em que o naturalismo marcou de forma exarcebada esse termo) ou representação direta da natureza, mas como um objeto de qualidade diversa e de relativa autonomia, subverteu assim os princípios da expressão literária. Por outro lado, inserindo-se dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional - característica de nossa literatura -, não ficou apenas no desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão do país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade. Nesse ponto encontramos aliás uma curiosa convergência entre projeto estético e ideológico: assumindo a modernidade dos procedimentos expressionais, o Modernismo rompeu a linguagem bachalaresca, artificial e idealizante que espelhava, na literatura passadista de 1890-1920, a consciência ideológica da oligarquia rural instalada no poder, a gerir estruturas esclerosadas que em breve, graças às transformações provocadas pela imigração, pelo surto industrial, pela urbanização (enfim, pelo desenvolvimento do país), iriam estalar e desaparecer em parte. Sensível ao processo de modernização e crescimento de nossos quadros culturais, o Modernismo destruiu as barreiras dessa linguagem "oficializada", acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular. Assim, as "componentes recalcadas" de nossa personalidade vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial; curiosamente, é a experimentação de linguagem, com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite - e obriga - essa ruptura.
     Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista. O Modernismo brasileiro foi tomar, das vanguardas européias, sua concepção de arte e as bases de sua linguagem: a deformação do natural como fator construtivo, o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academista, a cotidianidade como recusa à idealização do real, o fluxo da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional. Ora, para realizar tais princípios os vanguardistas europeus foram buscar inspiração, em grande parte, nos procedimentos técnicos da arte primitiva, aliando-se à tradição artística de que provinham e, por essa via, transformando-a; mas no Brasil - já o notou um crítico - as artes negra e ameríndia estavam tão presentes quanto a cultura branca, de procedência européia. O senso do fantástico, a deformação do sobrenatural, o canto do cotidiano ou a espontaneidade da inspiração eram elementos que circundavam as formas acadêmicas de produção artística. Dirigindo-se a eles e dando-lhes lugar na nova estética. o Modernismo, de um só passo, rompia com a ideologia que segregava o popular - distorcendo assim nossa realidade - e instalava uma linguagem conforme a modernidade do século.
     Outro fator que permite essa convergência é a transformação sócio-econômica que ocorre então no país. O surto industrial dos anos de guerra, a imigração e o conseqüente processo de urbanização por que passamos nessa época, começam a configurar um Brasil novo. A atividade de industrialização já permite comparar uma cidade como São Paulo, no seu cosmopolitismo, aos grandes centros europeus. Esse dado é decisivo já que a literatura moderna está em relação com a sociedade industrial tanto na temática quanto nos procedimentos (a simultaneidade, a rapidez, as técnicas de montagem, a economia e a racionalização da síntese). É de se notar, entretanto, que no Brasil a arte moderna não nasce com o patrocínio dos capitães-de-indústria; é a parte mais refinada da burguesia rural, os detentores das grandes fortunas do café, que acolhem, estimulam e protegem os escritores e artistas da nova corrente. Mário de Andrade insiste nesse aspecto em várias partes de sua conferência "O Movimento Modernista", afirmando com humor: "Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu. Os italianos, alemães, os israelitas se faziam de mais guardadores do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais... (Mário de Andrade, "O Movimento Modernista", in Aspectos da Literatura Brasileira, São Paulo, Martins, s.d., p.241).
     Há uma contradição aparente no fato de a arte moderna, implicando todas aquelas ligações com a sociedade industrial, ter sido patrocinada e estimulada por fração da burguesia rural. O paradoxo, todavia, fica ao menos parcialmente resolvido se atentarmos para a divisão de classes no Brasil, durante a década de 20; apesar da insuficiência de estudos a esse respeito, parece hoje confirmado que, além das relações de produção no campo paulista já terem caráter nitidamente capitalista por essa época, uma importante fração da burguesia industrial provém da burguesia rural, bem como grande parte dos capitais que permitiram o processo de industrialização. (Ver Edgard Carone. A Primeira República e República Velha, São Paulo; Difusão Européia do Livro, 1969 e 1970; Boris Fausto, A Revolução de 1930, São Paulo, Brasiliense, 1970; Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1966; Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1963). Daí não haver, de fato, nada de espantoso em que uma fração da burguesia rural assuma a arte moderna contra a estética "passadista", "oficializada" nos jornais do governo e na Academia. Educada na Europa, culturalmente refinada, adaptada aos padrões e aos estilos da vida moderna, não apenas podia aceitar a nova arte como, na verdade, necessitava dela. Por outro lado - e isso ajuda a explicar o caráter "localista" que marca tão fundamente o Modernismo - a par do seu "cosmopolitismo", a burguesia faz praça de sua origem senhorial de proprietária de terras. O aristocratismo de que se reveste precisa ser justificado por uma tradição que seja característica, marcante e distintiva - um verdadeiro caráter nacional que ela represente em seu máximo refinamento. É interessante observar que, ainda em "O Movimento Modernista", Mário de Andrade assinala a imponência de riqueza e tradição" no ambiente dos salões, e se refere várias vezes ao cultivo da tradição, representada principalmente pela cozinha, de cunho afro-brasileiro, aparecendo em "almoços e jantares perfeitíssimos de composição". Dessa forma, os artistas do Modernismo e os senhores do café uniam o culto da modernidade internacional à prática da tradição brasileira. "Desrecalque localista; assimilação da vanguarda européia" sintetiza um crítico. A convergência de projeto estético e de projeto ideológico deu as obras mais radicais, mais tipicamente modernistas (e talvez mais "modernas", vistas da perspectiva de hoje) do movimento: O Miramar e o Serafim, de Oswald de Andrade, o Macunaíma de Mário, a contundência estética da poesia Pau-Brasil. A ruptura na linguagem literária correspondia ao instante em que o curso da história propiciava um reajustamento da vida nacional: "É a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil", intuiu Oswald. (Oswald de Andrade, "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", Correio da Manhã, 18-3-24). Daí a força renovadora modernista, seu caráter marcadamente nacional e o viço de contemporaneidade que, cinqüenta anos depois, faz com que suas obras mais representativas mantenha o traço da vanguarda.

     Da "Fase heróica" aos anos trinta
     Vimos que, por uma razão de ordem artística (a natureza intrínseca da linguagem modernista solicitando a incorporação do popular e do primitivo) e outra de ordem ideológica (a burguesia apoiando-se em sua origem e revalorizando,a través da transmutação estética modernizante, hábitos e tradições culturais do Brasil arcaico), os dois projetos do Modernismo se articulam e se complementam. Podemos agora levar um pouco mais longe o raciocínio e indagar das condições sociais e políticas que, a essa época, permitem a complementação.
     Para situar corretamente o Modernismo é preciso pensar na sua correlação com outras séries da vida social brasileira, em especial na sua correlação com o desenvolvimento da economia capitalista em nosso país. Aí parece estar o fulcro da questão: atentando para a efervescência política dos anos 20 o observador poderá inferir que o Brasil atravessa uma fase de transformações profundas, tenentes a configurar um quadro econômico-estrutural mais complexo que o sistema agrário-exportador herdado do Império. As modificações no sistema de produção datam, naturalmente, de muito antes da década de 20: vêm de antes da Abolição, com o emprego do trabalho assalariado, e passam pelos sucessivos surtos de industrialização, pela política do Encilhamento, pelas várias levas imigratórias, pelas inúmeras agitações operárias do começo do século, tudo caminhando em direção a uma complexidade crescente, tanto da nossa vida econômica, quanto da nossa vida cultural. Apesar de não afastar do poder as oligarquias rurais, a burguesia (comercial, financeira, industrial; sozinha ou aliada aos interesses capitalistas imperialistas) se encontra em franco processo de ascensão; cresce também classe média, forma-se nas cidades um proletariado que sabe, às vezes, demonstrar sua agressividade. Nos três primeiros decênios do século XX os velhos quadros econômicos, políticos e culturais do século XIX são lentamente modificados e acabam por estourar na Revolução de 30.
     Há durante esses anos, não obstante, a resistência das superestruturas: permanece a política dos governadores, a serviço das oligarquias; permanece em suas linhas básicas a política financeira protecionista do café, gerando atritos com a burguesia industrial; permanecem ainda, em alto grau de diluição, o naturalismo e o simbolismo do século anterior. Durante os anos 20 esses óbices vão sendo mais vigorosamente atacados: o "tenentismo" é clara expressão de um desejo de modificação do país, assim como a fundação do Partido Comunista e a formação, por Jackson de Figueiredo, de um grupamento pequeno-burguês católico e direitista. Trata-se no fundo, do processo de plena implantação do capitalismo no país e do fluxo ascensional da burguesia, dois fatores que mexem com as demais camadas sociais e são espelhados por tal agitação.
     Nesse panorama de modernização geral se inscreve a corrente artística renovadora que, assumindo o arranco burguês, consegue paradoxalmente exprimir de igual forma as aspirações de outras classes, abrindo-se para a totalidade da nação através da crítica radical às instituições já ultrapassadas. Nesse ponto o Modernismo retoma e aprofunda uma tradição que vem de Euclides da Cunha, passa por Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato: trata-se da denúncia do Brasil arcaico, regido por uma política ineficaz e incompetente.
     Mas, notemos, não há no movimento uma aspiração que transborde os quadros da burguesia. A ideologia de esquerda não encontra eco nas obras da "fase heróica"; se há denúncias das más condições de vida do povo, não existe todavia consciência da possibilidade ou da necessidade de uma revolução proletária.
     Essa é a grande diferença com relação à segunda fase do modernismo. O decênio de 30 é marcado, no mundo inteiro, por um recrudescimento da luta ideológica: fascismo, nazismo, comunismo, socialismo e liberalismo medem suas forças em disputa ativa; os imperialismos se expandem, o capitalismo monopolista se consolida e, em contrapartida, as Frentes Populares se organizam para enfrentá-lo. No Brasil é a fase de crescimento do Partido Comunista, de organização da Aliança Nacional Libertadora, da Ação Integralista, de Getúlio e seu populismo trabalhista. A consciência da luta de classes, embora de forma confusa, penetra em todos os lugares - na literatura inclusive, e com uma profundidade que vai causar transformações importantes.
     Um exame comparativo, superficial que seja, da "fase heróica" e da que se segue à Revolução, mostra-nos uma diferença básica entre as duas: enquanto na primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto estético (isto é, o que se discute principalmente é a linguagem), na segunda a ênfase é sobre o projeto ideológico (isto é, discute-se a função da literatura, o papel do escritor, as ligações da ideologia com a arte). Uma das justificativas apresentadas para explicar tal mudança de enfoque diz que o Modernismo, por volta de 30, já teria obtido ampla vitória com seu programa estético e se encontrava, portanto, no instante de se voltar para outro tipo de preocupação. Veremos ainda adiante. Por enquanto importa assinalar essa diferença: enquanto nos anos 20 o projeto ideológico do Movimento correspondia à necessidade de atualização das estruturas, proposta por frações das classes dominantes, nos anos 30 esse projeto transborda os quadros da burguesia, principalmente em direção às concepções esquerdizantes (denúncia dos males sociais, descrição do operário e do camponês), mas também no rumo das posições conservadoras e de direita (literatura espiritualista, essencialista, metafísica e ainda definições políticas tradicionalistas, como a de Gilberto Freyre, ou francamente reacionárias, como o integralismo). Na verdade os dois projetos ideológicos parecem corresponder, para retomar aqui uma proposição de Mário Vieira de Mello, a duas fases distintas da consciência de nosso atraso: nos anos 20 a tomada de consciência é tranqüila e otimista, e identifica as deficiências do país - compensando-as - ao seu estatuto de "país novo"; nos anos 30 dá-se início à passagem para a consciência pessimista do subdesenvolvimento, implicando uma atitude diferente diante da realidade. Dentro disso podemos concluir que, se a ideologia do "país novo" serve à burguesia (que está em franca ascensão e se prevalece, portanto, de todas as formas - mesmo destrutivas - de otimismo), a consciência (ou a "pré-consciência") pessimista do subdesenvolvimento não se enquadra dentro dos mesmos esquemas, já que aprofunda contradições insolúveis pelo modelo burguês.
     A diferença entre os projetos ideológicos das duas fases vai principalmente por conta dessa agudização da consciência política. O "anarquismo" dos anos 20 descobre o país, desmascara a idealização mantida pela literatura representativa das oligarquias e das estruturas tradicionais, instaura uma nova visão e uma nova linguagem, muito diferentes do "ufanismo", mas ainda otimistas e pitorescas, pintando (como na poesia Pau-Brasil e em João Miramar, na Paulicéia Desvairada e no Clã do Jaboti, no verde-marelismo) estados de ânimo vitais e eufóricos; o humorismo é a grande arma desse modernismo e o aspecto carnavalesco, o canto largo e aberto, jovem e confiante, são sua meta e seu princípio. A "politização" dos anos 30 descobre ângulos diferentes: preocupa-se mais diretamente com os problemas sociais e produz os ensaios históricos e sociológicos, o romance de denúncia, a poesia militantes e de combate. não se trata mais, nesse instante, de "ajustar" o quadro cultural do país a uma realidade mais moderna; trata-se de reformar ou revolucionar essa realidade, de modificá-la profundamente, para além (ou para aquém...) da proposição burguesa: os escritores e intelectuais esquerdistas mostram a figura do proletário (Jubiabá, por exemplo) e do camponês (Vidas Secas), instando contra as estruturas que os mantém em estado de sub-humanidade; por outro lado, o conservadorismo católico, o tradicionalismo de Gilberto Freyre, as teses do integralismo, são maneiras de reagir contra a própria modernização.
     Entretanto, não podemos dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas do Modernismo; da consciência otimista e anarquista dos anos 20 à pré-consciência do subdesenvolvimento há principalmente uma mudança de ênfase. Assinalemos, por exemplo, o Retrato do Brasil, oscilando entre o pessimismo da análise (de que foi tão acusado) e o otimismo do Post-Scriptum, confiante na "revolução"; ou Macunaíma, cuja agudeza satírica parece, em 1928, mostrar já o instante da virada, ressaltando em tom alternadamente humorístico e melancólico (principalmente ao final do livro) o "não caráter" do brasileiro. As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, como dissemos atrás, se o projeto estético, a "revolução na literatura", é a predominante na fase heróica, a "literatura na revolução" (para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar), o projeto ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o primeiro plano dos anos 30. E mais: essa troca de posições vai se dando progressivamente e durante todo o período modernista: o equilíbrio inicial entre revolução literária e literatura revolucionária (ou reacionária, conservadora, tradicionalista: pensemos sempre na direita política) vai sendo lentamente desfeito e a década de 30, chegando a seu término, assiste a um quase esquecimento da lição estética essencial do Modernismo: a ruptura da linguagem.

     Vanguarda e Diluição
     Esse último ponto, pelo que encerra de complexidade, deve ser mais detalhadamente matizado. Com efeito, a opinião unânime dos estudiosos do Modernismo é que o movimento atingiu, durante o decênio de 30, sua fase áurea de maturidade e equilíbrio, superando os modismos e os cacoetes dos anos 20, abandonando o que era contingência ou necessidade do período de combate estético. Tendo completado de maneira vitoriosa a luta contra o passadismo, os escritores modernistas e a nova geração que surgia tinham campo aberto à sua frente, e podiam criar obras mais livres, mais regulares e seguras. Sob esse ângulo de visão, a incorporação crítica e problematizada da realidade social brasileira representa um enriquecimento adicional e completa - pela ampliação dos horizontes de nossa literatura - a revolução na linguagem.
     Tal análise aparece-nos, ainda hoje, como essencialmente correta. É fato que a década de 30 deu-nos algumas das obras mais realizadas e algumas das obras mais realizadas e alguns dos escritores mais importantes da literatura brasileira. Na poesia bastaria lembrar a qualidade dos dois estreantes (em livro) de 1930, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, acrescentando ainda que o período tem Remate de Males, Libertinagem e Estrela da Manhã, além de Jorge de Lima; na prosa de ficção o romance social de José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, o ponto alto atingido por Graciliano Ramos, a direção diferente de Cyro dos Anjos; no ensaio os estudos históricos e sociológicos de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Hollanda, o próprio Mário de Andrade.
     Essa produção, pelo alto nível que atinge, coroa sem dúvida o Modernismo; aqui, a vanguarda vitoriosa mostra-se no que tem de melhor e de mais completo, abarcando além disso o campo dos problemas sociais. A Revolução de 30, com a grande abertura que traz, propicia - e pede - o debate em torno da história nacional, da situação de vida do povo no campo e na cidade, do drama das secas, etc. O real conhecimento do país faz-se sentir como uma necessidade urgente e os artistas são bastante sensibilizados por essa exigência. A Revista Nova, por exemplo, marca de forma bem clara, em seu primeiro editorial, o novo roteiro do Modernismo; seus diretores (Paulo Prado, Antônio de Alcântara Machado e Mário de Andrade), justificando-se com o "imenso atraso intelectual do Brasil", explicam o caráter abrangente da publicação e escrevem: "Com tal intuito a Revista Nova não se cingirá à pura literatura de ficção. Nem mesmo lhe reservará a maior parte do espaço. O conto, o romance, a poesia e a crítica deles não ocuparão uma linha mais do que de direito lhes compete numa publicação cujo objetivo é ser uma espécie de repertório do Brasil. Assim o interessado encontrará aqui tudo quanto se refere a um conhecimento, ainda que sumário desta terra, através da contribuição inédita de ensaístas, historiadores, folcloristas, técnicos, críticos e (está visto) literatos. Numa dosagem imparcial". Revista Nova, Ano I, nº I, 15. III. 31, p. 3-4.
     Peguemos o problema por esse ângulo: nos anos 20 a grande discussão é eminentemente literária e se trava em torno da questão (básica) da linguagem nova inaugurada pelo Modernismo; no raiar dos anos 30 já se quer uma "dosagem imparcial" e já surge uma revista que se deseja "uma espécie de repertório" do Brasil. Em termos de mudança de ênfase essa modificação é significativa, principalmente porque, com o decorrer dos anos, a imparcialidade da dosagem vai sendo levemente alterada; se os primeiros tempos do decênio assistem à alta produção da maturidade modernista, assistem também ao início da diluição de sua estética: à medida que as revolucionárias proposições de linguagem vão sendo aceitas e praticadas, vão sendo igualmente atenuadas e diluídas, vão perdendo a contundência que transparece em livros radicais e combativos da fase heróica, como as Memórias Sentimentais de João Miramar e Macunaíma.
     Tal diluição, aliás, começa antes de 30, começa no interior mesmo do movimento modernista e já na hora mais quente da luta. O crítico Haroldo de Campos, examinando a dialética entre vanguarda e kitsch, observava com acerto que o Verde-amarelismo e a Escola da Anta dissolveram e aguaram a escritura vanguardista. Mas é principalmente na segunda metade da década de 30 que a kitschização da vanguarda parece se tornar mais aguda, mais grave, até desemborcar, já nos anos 40, numa literatura incolor e pouco inventiva, e numa linguagem novamente preciosa, anêmica, "passadista", pela qual é principalmente responsável a chamada "geração de 45".
     Mas que tem isso a ver com o projeto ideológico do Modernismo, com a intensidade da luta política que se trava após a Revolução de Outubro, com as novas posições assumidas pelos intelectuais e artistas brasileiros, com os extremismos partidaristas do período que nos interessa? A nossa hipótese é está: na fase de conscientização política, de literatura participante e de combate, o combate, o projeto ideológico colore o projeto estético imprimindo-lhe novos matizes que, se por um lado possibilitam realizações felizes como as já citadas por outro lado desviam o conjunto da produção literária da linha de intensa experimentação que vinha seguindo e acabam por destruir-lhe o sentido mais íntimo de modernidade.

     Vejamos, de forma rápida, alguns exemplos.
     Na poesia tal modificação se dá principalmente por causa de uma reação de fundo "direitista", que vem do grupo espiritualista encabeçado por Tasso da Silveira corre paralelamente ao Modernismo com as revistas Terra de Sol e Festa, e vai encontrar sua realização maior nos poemas prolixos e retóricos de Schmidt. Esse poeta, tanto como os seus seguidores de menos talento e menos técnica (e que proliferaram no decênio de 30), parece-nos um bom exemplo de diluição: desejando combater as "exterioridades" do Modernismo, o que fez na realidade foi incorporar o que havia de mais propriamente exterior no movimento (verso livre, inspiração solta, neo-romantismo), esquecendo-se do que este possuía de mais contundente (coloquialismo, condensação, surpresa verbal, humor). Se Schmidt foi capaz de rotinizar, isto é, de adotar e aplicar com relativa mestria alguns processos poéticos de compor, preconizados pelos modernos, foi incapaz de manter a tensão de linguagem que caracterizou a vanguarda, dissolvendo-a no condoreirismo reacionário que Mário de Andrade soube ver e denunciar.
     Na prosa de ficção esse balanceio entre rotinização e diluição (ou entre "vanguarda" e "kitsch") fica bem mais claro principalmente no romance de denúncia, no romance "social", "político", "proletário", "nordestino", que é a grande novidade do decênio. Incorporando processos fundamentais do Modernismo, tais como a linguagem despida, o tom coloquial e presença do popular, esse tipo de narrativa mantém, entretanto, um arcabouço neo-naturalista que, se é eficaz enquanto registra e protesta contra as injustiças sociais, mostra-se esteticamente muito pouco inventivo e pouco revolucionário. Colocados ao lado de Serafim Ponte Grande (escrito em 1928, embora publicado em 1933) ou Macunaíma, deixam entrever a pequena audácia e a curta modernidade de seus esquemas.
     Não cabe nos estreitos limites deste ensaio - repetimos - uma análise da evolução estética do Modernismo nos anos 30.      Limitamo-nos aqui a esboçar o roteiro de um conflito que se nos afigura importante para compreender e situar os problemas que serão enfrentados pela crítica nesse momento. A tensão que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda (a ruptura da linguagem através do desnudamento dos procedimentos, a criação de novos códigos, a atitude de abertura e de auto-reflexão contidas no interior da própria obra) e o projeto ideológico (imposto pela luta política) vai ser o ponto em torno do qual se desenvolverá a nossa literatura por essa época. Desse conflito é que nascerá uma opinião bastante comum nos anos 30: a suspeita de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito grande de cacoetes, de "atitudes" literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem realizada. Na verdade esse questionamento tinha um ponto de razão; mas, na medida em que foi exagerado (e nisso a consicência política, tanto de direita quanto de esquerda, exerceu forte influência), afastou as obras então produzidas grande parte da radicalidade da nova estética. No (bom) exemplo que é a reação espiritualista em poesia, parece-nos que o peso da ideologia é claramente o fator responsável pela diluição, pois insistindo em que a literatura devia tratar temas essenciais e elevados caminhoupara a eloqüência inflada e superficial; no (bom) exemplo que é o romance neo-naturalista, foi também a consciência da função social da literatura que, tomada de orma errada, conforme os parâmetros de um desguarnecido realismo, provocou o desvio e a dissolução.
     O estudo da literatura na década e 30 (e até o fim da guerra), vista do ângulo dessa tensão entre o projeto estético da vanguarda e as modificações introduzidas pelo novo projeto ideológico, ainda está por ser feita. Há, naturalmente, problemas intricados a serem resolvidos; para ficar num caso apenas, podemos exemplificar com as alterações formais na linguagem do romance, operadas em compromisso com as estruturas narrativas do século XIX (os modelos romântico e naturalista), o que o constitui por si só um campo vasto de discussão.

    *"Estética e ideologia: o Modernismo em 1930", Texto do saudoso professor João Luiz Lafetá, originalmente publicado na revista "Argumento", Ano 1 nº2, Novembro de 1973.