O
solitário caminhante do Planalto
(Esdras do Nascimento*)
Não
adoto nenhuma fórmula. Quando o miolo é personagem,
parto do personagem. Quando é incidente, parto do incidente.
Depoimento
/ Samuel Rawet visto por Esdras do Nascimento
Um
crítico, certa vez, dividiu a história do conto
no Brasil em duas fases: antes e depois de Samuel Rawet. Ninguém
põe em dúvida a excelente qualidade dos seus textos,
mas pouca gente o conhece. O homem e o escritor Samuel Rawet
constituem um dos mais fascinantes mistérios da moderna
literatura brasileira. Neste trabalho, escrito especialmente
para Ficção, o romancista Esdras do Nascimento
dá importantes informações sobre o autor
de Contos do Imigrante.
Em 1969, a professora Lúcia
Helena, da Faculdade de Letras da Universidade do Estado da
Guanabara, ganhou o prêmio Esso de Literatura com ensaio
intitulado Rawet em questão.
Um ano antes, um artigo publicado
no suplemento literário do jornal O Estado de São
Paulo, Urbano Tavares Rodrigues colocava Samuel Rawet ao lado
de Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar e Alejo Carpentier,
e considerava Os sete sonhos como “uma das grandes obras
da literatura contemporânea”.
Com esse livro, Samuel Rawet conquistou
o Prêmio Guimarães Rosa, no concurso de contos
instituído pelo Governo do Estado do Paraná. Comentando-o,
escreveu Urbano Tavares Rodrigues:
“A extraordinária
novela do livro, aquela que podemos considerar verdadeira obra-prima,
é a Crônica de um vagabundo, com a extensão
de um pequeno romance. Nela temos como figura central o outsider,
emigrado da vida quotidiana normal, homem sem amanhã,
cujo hoje escorre numa torrente de sensações,
entre os dejetos do passado e o zero de um futuro que ele resolveu
anular. Esse anti-herói, que gasta os últimos
dinheiros, vende o próprio relógio, deixa-se vigarizar
com irônica indiferença, mas luta pela vida, ante
o brilho de uma faca, na noite dos instintos primitivos; que,
pisando a fita incolor do vago, do impreciso, na margem dos
sentimentos indefinidos, deambula por uma cidade concreta, onde
lhe sucedem coisas extraordinárias, como ser pago por
um desconhecido para dar banho a uma velha quase paralítica,
ou ser abordado por um jovem e triste sodomita, a cujas instâncias
não cede, mas de quem se compadece e com quem confraterniza;
dar todo o seu dinheiro (mas sem piedade, sem descortinar sequer
a que móbil profundo obedece) a uma prostituta envelhecida
– esse anti-herói, novo Ulisses de um pesadelo
quase paranóico, faz o périplo da cidade grande
dos noturnos temores, dos gritos que ecoam noutros gritos, cidade
onde todas as vozes se fundem num só rumor indistinto.
O pitoresco convizinha com o mistério profundo, com o
horror e com o lirismo, nestas páginas apaixonadamente
geradas”.
Um
homem silencioso
Quase
como o herói de sua novela, Rawet é um homem calado,
arredio, de poucos amigos. Certa vez recusou-se a entrar em
contacto com uma aluna de cursos de pós-graduação
que estava preparando tese de mestrado sobre sua obra: “Quem
está escrevendo tese é ela. Nada tenho a ver com
isso”.
Morando em Brasília –
cidade que ajudou a construir, como engenheiro – vai ao
Rio, de vez em quando, telefona rapidamente a três ou
quatro pessoas (uma delas invariavelmente é a escritora
Nélida Piñon) e ocupa suas férias cariocas
em longas caminhadas, que começam em qualquer ponto da
cidade e terminam sempre num boteco do Largo do Machado, com
paradas num ou noutro bar, para cafezinhos solitários.
Às vezes nem sai do hotel do Flamengo onde se hospeda.
Fica no hall, olhando o movimento, vai fazer refeições
na lanchonete perto do cinema Paissandu, arruma outra vez a
mala e retorna a Brasília.
Antigamente, Rawet bebia muito, mas desde que lhe serviram álcool
iodado, em vez de uísque, numa cidade satélite
de Brasília, e ele quase morreu, nunca mais tocou em
bebida. Para compensar, talvez, consome agora pelo menos dois
litros de café por dia. Tem sempre em casa uma garrafa
térmica com água quente e faz cafezinho de cinco
em cinco minutos. Deve fumar cerca de três maços
de cigarro por dia.Anda vários quilômetros todas
as noites, sendo comum vê-lo caminhando sozinho, de madrugada,
pelos gramados desertos das superquadras de Brasília.
Conhece todos os bares, inferninhos e botecos da cidade. E vai
diariamente ao sofisticado Hotel Nacional, onde freqüenta
a sauna e faz massagem com um japonês. Adquiriu esse hábito
por necessidade, desde que sofreu acidente, na estrada de Alexânia,
em Goiás, quando viajava de automóvel com o escritor
Almeida Fischer. Passou muito tempo usando colete de gesso e
nunca mais deixou de sentir, na coluna e nas costelas, dores
que só passam com as massagens do japonês do Hotel
Nacional.
Zacarias
"Abama",
- segundo trabalho de Rawet, em ordem de publicação
– começa com um homem de bicicleta acendendo um
a um os letreiros luminosos das lojas de uma rua e termina com
o mesmo homem de bicicleta apagando-os ao amanhecer.
A novela decorre entre esses dois momentos e relata as andanças
noturnas do personagem Zacarias, pelas vielas, becos e bairros
de uma grande cidade.
“Passamos a vida inteira
à espera de um homem que nos diga algo de fundamental,
e quando percebemos vagamente que talvez ele já nos tenha
procurado, não podemos deixar de concluir com amargura
que nós não o soubemos ouvir, e muito menos identificar.
Esperávamos sem estar preparados para a espera”.
A
geração dos duplos
“Vivia-se
um sonho para afastar o terror. E numa rápida seqüência
"Abama" se multiplicou e para cada unidade de sua
forma um duplo surgia e esse duplo gerava outros dois, e cada
um deles projetava um lamento em paisagem diversa. Desertos,
dunas, sóis, vilarejos,casebres, palácios; palmeiras,
carvalhos, tamareiras; lágrimas, choro, pranto. Reunir
tudo isso, extrair o sumo, deixar que a sucessiva marca de humilhações
estiole o gesto mais espontâneo, e aceitar o que sobra
como irremediável. Irremediável como as acusações
que entre si faziam os vários duplos gerados pelo duplo
Abama, até que o desgaste fez com que desaparecessem.
E de novo a sós, Zacarias e Abama, num clima de contornos
definidos, em que não se distinguia bem vida e sombra
de vida. Havia uma pergunta entre eles. Por que transformar
em palavreado complexo o que era simples e não precisava
de definição?”.
O
contrato rasgado
Um
crítico carioca apontou o ano de 1956 como divisor de
águas da literatura brasileira, por causa da publicação
de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães
Rosa, e Contos do imigrante, de Samuel Rawet. Haveria assim
um antes e um depois para o romance e o conto no Brasil.
Entusiasmado com as referências
ouvidas, um editor do Rio pediu a Rawet um livro de contos.
Foi assinado o contrato, o clima era de cordialidade. Mas o
autor de Os sete sonhos ficou sabendo que o editor demitira
um dos seus funcionários graduados por que ele tivera
a audácia de programar o pagamento de direitos autorais
dos livros publicados pela empresa, como ato de rotina. Rawet
procurou o editor, pediu o contrato e o rasgou, sem comentários.
Vendeu a seguir um apartamento de três quartos que possuía
em Brasília e gastou o dinheiro reeditando seus livros
esgotados e publicando alguns trabalhos novos que não
haviam interessado aos editores, por serem considerados anti-comerciais,
devido ao reduzido número de páginas que se compunham.
Foi assim que chegaram às livrarias "Consciência
e valor", "Alienação e realidade",
"Homossexualismo (sexualidade e valor)", "Contos
do imigrante" (2.ª edição), "Viagens
de Ahasverus" e "Eu-tu-ele".
Infância
e adolescência
Samuel
Rawett nasceu a 23 de julho de 1929, em Klimotow, uma aldeia
perto de Varsóvia. Veio para o Brasil em 1936. Aprendeu
o português na rua. Até os vinte e poucos anos
morou na Leopoldina, em Ramos e Olaria, no Rio: “Sou fundamentalmente
suburbano. O subúrbio está muito ligado a mim”,
Suas leituras foram desordenadas. Ia escolhendo e apanhando
livros, recuando e avançando. Ficou muito marcado pelos
escritores russos, que começou a ler em traduções:
Gorki, Dostoiévsqui, por aí afora, mas principalmente
Gorki. Na época se apaixonou também pelos romancistas
que chama de “os gigantes do Nordeste”. Teve crises,
andou deixando de escrever por causa deles. Achava que nada
tinha a dizer, que diante de Graciliano, Zé Lins e outros,
o melhor que podia fazer era ficar calado. Só mais tarde
é que foi descobrir outros autores cujos trabalhos o
estimularam e ajudaram, como Cornélio Pena e Lima Barreto,
por exemplo. Começou a escrever contos para os suplementos
literários dos jornais do Rio, concluiu curso de engenharia
e passou a viver o drama que persiste talvez até hoje:
o de sobreviver na profissão de calculista e de seguir
a vocação de contista.
O
escritor
Samuel
Rawet, neste começo de 1976, mora num pequeno apartamento
na Asa Sul de Brasília. Da janela se vêem extensos
gramados, largas pistas e raros automóveis. No terreno
de 160 mil metros quadrados onde se situa o seu edifício,
ao lado de outros dez prédios, quase nunca se vê
uma pessoa caminhando. Os automóveis entram e saem das
garagens, com as luzes acesas, em baixa velocidade, quase em
silêncio. Ao atingirem a pista que separa as quadras,
chegam rapidamente a 100 km/h e desaparecem quase misteriosamente
na distância. É como se tudo se passasse em Alphaville.
- Costuma reler seus livros publicados?
– pergunto a Rawet.
Ele se levanta, vai À janela,
abre um pouco mais os vidros, tira e bota os óculos:
- Não. Às vezes
folheio algumas páginas, levado por uma lembrança,
pela necessidade de encontrar algum elemento particular de expressão.
- Já pensou em escrever
um romance? – Não. Além do conto, só
um tipo particular de novela me interessa: novela curta com
estrutura de poema sinfônico (Abama, etc). – Por
que seus contos cada vez mais se reduzem de tamanho? Você
acha que o leitor de hoje não dispõe de muito
tempo para ler? É por isso? – Não sei. Necessidade
de não estagnar numa forma rígida. Quanto
ao tempo de leitura do leitor, isto é ilusão.
Os calhamaços de alguma superprodução cinematográfica
continuam sendo devorados.
Leitor
e autor
-
Em que tipo de leitor você pensa quando escreve?
Samuel Rawet bebe nova xícara de café, acende
outro cigarro, sem perceber que o anterior, ainda pela metade,
está queimando no cinzeiro, e responde incisivo:
- Penso no leitor que tenha algum
interesse em ler exatamente o que estou escrevendo.
- Já pensou em escrever
um livro no qual você aparecesse como personagem, com
seu próprio nome?
- O autor é sempre personagem,
dentro e fora de seus livros. Não, nunca pensei. No final
de “Viagens de Ahasverus” meu nome aparece como
uma das metamorfoses da personagem, exatamente o contrário.
- A leitura de jornais e revistas
serviu alguma vez como ponto de partida para a elaboração
de seus contos?
- Não como ponto de partida,
mas como elemento de fusão de episódios.
- Gosto de conviver, mas não
em formas organizadas (associação, etc.). Gosto
do relacionamento concreto, do relacionamento em que há
alguma coisa a dizer, ou a ouvir. Quanto ao resto, sinto uma
necessidade profunda de solidão.
- Qual é o seu processo
de criação? Você parte de um personagem,
um incidente, um tema definido, um vago estado de espírito?
Planeja o que vai escrever, ou só a partir do momento
em que começa adquire consciência do trabalho em
andamento?
- Não adoto nenhuma fórmula.
Quando o miolo é personagem, parto do personagem; quando
é incidente, parto do incidente, etc.
As
religiões
-
O fenômeno da religiosidade está ocorrendo intensamente
nos dias atuais. O que pensa disso? Você é um homem
religioso?
- A imbecilidade do espírito
científico encarado como totalidade só poderia
acarretar uma exacerbação da religiosidade no
péssimo sentido. A organização rígida
das religiões oficiais tem muito de científico.
Daí a confusão. Não, não sou religioso
nesse sentido. Medito sempre sobre um trabalho de Martim Buber:
"Eclipse de Deus".
O
conselho e os hábitos
-
Que conselho daria a um jovem interessado em se tornar escritor?
- Não acredito em jovem interessado
em se tornar escritor. Acredito em escritor jovem. Este não
precisa de conselho. Aprenderá
ou não a dar murro em ponta de faca.
- Quais são os seus hábitos
de trabalho?
- Habitualmente datilografo, em
pé, numa Hermes 3000 apoiado numa prancheta.
- Até onde vai o seu interesse
pela teoria literária?
- Até o ponto em que pode
me servir de estímulo para a criação.
Ensino
da literatura
-
O que pensa do ensino da literatura no Brasil?
- Tenho algumas idéias
particulares no momento. Não acredito que o ensino da
literatura como vem sendo feito possa despertar o gosto pela
literatura, única finalidade, me parece. Isso poderia
ser conseguido com alguma coisa parecida com as escolinhas de
arte. As crianças não se transformam necessariamente
em artistas, mas passam a encarar a criação artística
de maneira diferente, bem mais aberta. Embora pareça
estranho, o espírito modernista venceu em todas as áreas,
menos na literatura. Atribuo isso a ensino. Vivemos dentro da
arquitetura moderna, por mais medíocre que seja, dispomos
de móveis produto de muita vanguarda, utilizamos lâmpadas
que derivam do que há de mais abstrato em escultura,
mas ainda resistimos ao poema moderno.
Os
projetos e a censura
-
Quais são os seus atuais planos literários?
- Pretendia voltar ao teatro,
mas a proibição pela censura da minha peça
"Farsa da Pesca do Pirarucu e da Caçada do Jacu"
me fez retomar outros trabalhos. "Que os mortos enterrem
seus mortos", contos; "Angústia e conhecimento",
ensaio. Gostaria ainda de escrever um ensaio pequeno sobre pornografia
e obscenidade.
*Ficção
– Histórias para o prazer da Leitura. Mar. / 1976
- Nº.3