O
Living Theater no Brasil
Zéca
Ligiéro*
Trad.: Valéria de Castro Sant'Ana
A primeira vez que eu ouvi falar
sobre o Living Theater foi em 1970. Eu era um estudante de direção
do antigo Conservatório de Teatro no Rio de Janeiro (hoje
Escola de Teatro da UNI-RIO) e estava interessado em teatro
experimental e de vanguarda. Era uma época difícil
para os artistas brasileiros porque a ditadura era muito severa
- muitos artistas estavam presos, vários teatros estavam
fechados. O Living Theater chegou ao Brasil e sua presença
deu uma importante dimensão internacional à nossa
luta contra o sistema militar repressivo.
Mas o Living Theater estava trabalhando
principalmente em São Paulo e eu não soube deles,
até que eles fossem presos. Naquela ocasião a
imprensa brasileira deu uma grande cobertura a prisão
porque um pouco de "marijuana" foi encontrada na casa
ocupada pelo Living Theater em Ouro Preto, Minas Gerais.
A natureza de sua atividade política,
entretanto, não era inteiramente compreendida pelo público
e pelas autoridades brasileiras. As razões de sua prisão
foram sensacionalizadas pela imprensa brasileira, dando a ela
um tratamento de novela - o típico gosto brasileiro.
As manchetes destacavam: "Julian Beck se tornou avô
enquanto estava na cadeia", referindo-se ao nascimento
de sua neta nos Estados Unidos; "A Mãe de Julian
Beck vem ao Brasil para ver seu filho", e o encontro foi
descrito como muito dramático; "As atrizes do Living
Theater fazem yoga com outras prisioneiras na prisão
feminina", referindo-se ao trabalho delas na prisão;
"Eu libertei meu filho", declarou o pai de Ilian Troya
depois de ver seu filho aprisionado por ter se juntado ao grupo
alguns meses antes. Paradoxalmente, o jornal mais conservador,
O Estado de Minas, começou a publicar os diários
de cela de Malina pela primeira vez.
Finalmente, o General Médici,
nosso ditador naquela época, expulsou do país
o Living Theater porque eles denegriram o bom nome do Brasil
na imprensa estrangeira. Mas o que o Living Theater disse sobre
as razões da expulsão permaneceu desconhecido
para a maioria da população brasileira.
Quinze anos mais tarde eu encontrei
Ilyan Troya ainda trabalhando com o Living Theater, e morando
em Nova York no mesmo apartamento de Malina (Julian havia morrido
há dois anos). Um par de meses depois, junto com outros
atores brasileiros, eu trabalhei numa produção
de vídeo da TV Brazil que seria exibida pela TV Educativa
no Rio de Janeiro em 22 de maio de 1986. Discutindo as experiências
do Living Theater com enfoque especial na turnê brasileira,
o vídeo foi chamado simplesmente: "The Living Theatre".
Naquela entrevista, Judith Malina
e Troya mostraram um material abundante sobre seu trabalho e
suas práticas. Os dois pontos que mais me interessavam
foram o Projeto "Favela" e o subsequente encarceramento
do grupo. O Projeto "Favela" foi desenvolvido como
criação coletiva com estudantes e encenado na
comunidade da favela de morros da periferia da capital paulista.
Eu tinha curiosidade sobre como o grupo funcionava, porque no
Brasil nós não tínhamos informações
sobre isso. O outro ponto, o Living Theater na cadeia, me interessava
por causa de seu conteúdo político e com tremendo
impacto em ambas as imprensas, internacional e brasileira, naquela
época.
O
Projeto "Favela"
O interesse de Beck e Malina no
Brasil começou quando eles estavam em Paris. O convite
de vir ao Brasil veio do Teatro Oficina de São Paulo
e abriu novas perspectivas para ambos os grupos. Ainda em Paris,
eles se prepararam para sua experiência brasileira. Eles
leram "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freire,
que seria muito importante para as pesquisas deles, e começaram
a estudar o português falado Brasil. Além disso,
eles assistiram alguns dos mais importantes filmes do Cinema
Novo e se encontraram com o diretor brasileiro Glauber Rocha.
Judith Malina explicou as razões de sua turnê brasileira:
Na época, quando nós
estávamos trabalhando como uma pequena organização
de apoio ativo em Paris, Zé Celso veio até nós
e nos contou sobre a situação do Oficina e todas
as pressões que caíram sobre eles. E muito pouca
coisa era possível na época; talvez nada pudesse
ser feito. Eles foram brutalizados, suas vidas estavam em perigo,
os atores estavam na prisão, teatros estavam fechados
e, sendo um homem aventureiro, Zé Celso disse: "Se
o Living Theater pudesse vir, poderia ser muito importante para
nós". E, então, tendo muito poucos pertencentes,
nós fizemos as malas e fomos para o Brasil. (Entrevista
- TV Brazil - Fev. 1986)
No Brasil, o Living Theater iniciou
um trabalho progressivo com o Teatro Oficina e Los Lobos, um
grupo de teatro experimental da Argentina; entretanto, a apresentação
nunca foi concluída porque não era possível
unir três ideologias e linguagens de palco diferentes
em uma única peça. Cada grupo tinha uma convicção
muito forte e visões diversas sobre as funções
do teatro. O Living Theater era guiado pelos conceitos anarquistas
da ação revolucionária, enquanto o Oficina
tinha orientação marxista e era um dos mais famosos
no Brasil na época, assim como o Los Lobos em seu país,
só que este último concentrava-se num preparo
físico e formal do ator sem precedentes na América,
neste sentido, ainda mais radical que o próprio Living
Theater. O processo de colaboração do Living Theater
com os artistas latino-americanos naquela ocasião, embora
bastante desejado, era muito difícil porque a nossa luta
contra a opressão do capitalismo internacional nos deu
um forte desejo de auto-suficiência em nossa produção.
Nós estávamos discutindo assuntos como a importância
da arte engajada e a busca por uma linguagem tipicamente brasileira.
Dois movimentos foram consolidados no final dos anos 60, a Bossa
Nova e o Cinema Novo, ambos tendo "nova" ou "novo"
em seus nomes. Ambos estavam procurando uma "nova"
arte que incluísse nosso país e seus problemas
sócio-econômicos. O Living Theater, embora afinado
ideologicamente com a nossa luta, tinha um processo de trabalho
e uma estética bastante peculiar e teve que trabalhar
sozinho, buscando sua própria alternativa em face da
realidade brasileira.
O próximo passo significativo
foi uma mudança no contexto teatral. Eles decidiram representar
do lado de fora do espaço habitual do teatro. O Living
Theater queria ser parte da batalha do povo brasileiro e, conseqüentemente,
trouxe o seu trabalho para as ruas. Se eles insistissem em trabalhar
no palco como uma companhia profissional, eles teriam de se
submeter às regras militares - sujeitar o texto e a performance
à censura militar e restringir suas performances apenas
à classe média, que era o único público
do teatro. Nas ruas eles tinham uma chance maior de expressar
suas mensagens e ter um contato direto com o povo brasileiro.
O encontro com os habitantes da
favela do Buraco Quente na periferia de São Paulo, uma
das comunidades mais pobre do Brasil (parcialmente destruída
em 1998 por um incêndio catastrófico), marcou uma
mudança definitiva nos trabalhos do Living Theater. O
impacto da primeira visita do Living Theater àquele lugar
foi descrito por Malina:
Os Mais Pobres
"O
Buraco Quente e o Buraco Frio. No vale entre duas ruas duas
comunidades de madeira do tipo mais primitivo. O cenário
é o de total desolação/desespero, pobreza
sem esperança. A coisa toda agora foi trabalhada progressivamente
durante meses. O trabalho começou em Croissy - Sun -
Seixe no último inverno. Então, ele realmente
já começou há quase um ano; e, a este ponto,
a dezoito dias dele, o espetáculo Favela não está
nem mesmo pela metade ...
Mas ele permanece sobre uma base
firme.
Como se minha vida inteira estivesse
a este ponto: o teatro está na rua".
(A Vida do Teatro - 1972)
Em dezembro de 1970, o Living
Theater começou a preparar a performance com alguns estudantes
da Escola Dramática na Universidade de São Paulo.
A peça tornou-se muito mais clara quando ela foi desenvolvida
em oito cenas: (1) A procissão dos olhos vendados; (2)
Questão: O que o povo quer? (3) Seis histórias
sobre: dinheiro, morte, amor, propriedade e o Estado; (4) A
favela fala e a abertura dos olhos; (5) Transe, o contrato social
e servidão; (6) Libertação; (7) Bolo; (8)
Encontro.
O contato com as pessoas e o local
da favela deu ao grupo mais conhecimento sobre os próximos
passos a dar em seu trabalho. Eles ficaram familiarizados com
a vida da comunidade, seus problemas, seus sentimentos e suas
esperanças. Eles entrevistaram alguns habitantes da favela
fazendo perguntas abertas como: "Conte-me um pouco sobre
você e sua vida, fale-me um pouco sobre sua comunidade
aqui, quais são suas esperanças para o futuro
e com e o que você sonha". Alguns dos tapes foram
colocados no ar com alto-falantes durante a quarta parte da
performance.
Beck e Malina trabalharam em levar
as histórias para o palco em um estilo relacionado ao
trabalho do grupo em 1951, quando eles fizeram "Aqueles
que dizem sim e aqueles que dizem não", de Brecht.
"Um certo estilo didático, narrativo, com um diálogo
e uma encenação poéticos", comentou
Malina em seu diário. Ela também criou muitos
desenhos interessantes ilustrando o desenvolvimento de suas
idéias - trabalhando como uma cartunista, buscando uma
visão sintética.
O trabalho progressivo tornou-se
intensivo: longos ensaios, questões, novas pesquisas
e discussões. Em 21 de dezembro a performance estava
quase pronta; entretanto, lá fora os problemas começaram
a interferir diretamente no trabalho, porque a universidade
estava impedida de dar performances nos morros, onde os eventos
políticos eram proibidos pelos militares. Finalmente,
os estudantes participaram como indivíduos, não
como elementos da Universidade. A despeito de toda a paranóia,
em 23 de dezembro, o Living Theater entrou na favela tocando
a sua música.
"As
crianças nos seguem, descalças e felizes.
Nossa canção, e a nós também, é
alegre, embora as palavras sejam tristes
Nós avançamos excitados porque
é nosso primeiro teatro de rua,
é a entrada para o outro lado do mundo
Nós fomos avisados dos perigos
é a "noite de abertura" no sol do meio-dia."
(Diário de Malina - 23 de Dezembro)
No início do show o público
era composto principalmente de crianças e mulheres porque
era um dia de trabalho. Ele aumentou ao longo do evento, que
durou cerca de duas horas. Os adultos ficaram atrás das
crianças, que cercaram a ação. Era um sinal
de real envolvimento nela. Na primeira parte, como escreveu
Malina, eles sorriam, ouvindo cuidadosamente e permanecendo
interessados nas histórias. Houve dois momentos especiais,
como Malina descreveu:
"Mas
quando chegou o rei com o filho de pés descalços
eles estavam acesos.
Nós também estávamos.
Era um grande momento.
José Bento saltou de dentro
da caixa cheio de fervor e gritou, atacando o rei: "Eu
exijo um par de sapatos."
Nossos olhos passaram ao redor
do círculo de crianças descalças com seus
pés pretos no barro fresco.
E mesmo as crianças de
seis anos sentiram de repente, "Isto é uma brincadeira
a respeito dos meus pés".
As crianças reconheceram
que suas próprias vidas estavam sendo representadas pelos
atores e os objetivos do Living Theater foram alcançados.
A vida estava dentro do ritual da representação;
arte e realidade estavam integrados na performance.
A segunda passagem descrita por
Malina aconteceu da segunda à última ação,
quando os atores estavam presos em cordas apelando para os moradores
da favela:
Assim, Paulo perguntou se as pessoas
nos desamarrariam.
E aí seguiu-se uma pausa
durante a qual as decisões foram tomadas. E, então,
eu vi uma mulher e um homem virem da direção das
pessoas, primeiro timidamente, e logo, encorajados pela confiança
delas, moverem-se bravamente e começarem a remover as
correntes. E duas crianças desamarrando Julian e uma
mulher descalça soltando as cordas em volta de Jimmy.
E então, um homem veio em minha direção
e ele me desamarrou, curvou-se e sussurrou: "Amanhã
o povo vai libertar todo o mundo".
"Meu
libertador, um homem no final de seus quarenta anos com uma
pele enrugada, pés descalços e usando uma camisa
branca, sorriu quando eu iniciei o som do coral e imediatamente
juntou-se a ele. E quando eu estava livre eu levantei suas mãos
com a minha e um círculo estava se formando e nós
nos juntamos a ele e fizemos um som de absoluta satisfação
quando o bolo foi trazido."
(Diário de Malina - 1970)
Nesta performance não foi
o ator que libertou o público, como no modelo clássico.
Aqui é o próprio público que precisa agir
com o objetivo de ser livre e criar liberdade.
No Projeto "Favela"
os atores e o público encontraram um "final feliz"
comendo um bolo trazido pelo grupo para comemorar o espírito
comunal do Natal. Entretanto, o próximo trabalho do Living
Theater, uma criação coletiva com estudantes secundaristas,
seria brutalmente interrompido pela força de repressão
brasileira.
Performance
de uma Prisão
O Living Theatre foi para Minas
Gerais, o mais conservador estado brasileiro, e começou
a trabalhar com expressão corporal, o que era considerado
"imoral" e "revolucionário". O Bispado
Católico chamou a polícia para agir contra o Living
Theater, acusando seus membros de molestarem crianças
sexualmente.
A Polícia Federal invadiu
a casa onde as pessoas do Living Theater estavam vivendo, procurando
por terroristas. É claro que eles não encontraram
armas, mas acharam uma pequena quantidade de "marijuana",
o que foi suficiente para incriminar o grupo. Eles levaram presos
alguns dos membros do Living Theater. A polícia Federal
retornou à casa do Living Theater e escondeu mais "marijuana"
e conduziu uma nova batida com a cobertura da imprensa. Os livros,
jornais, fotos do Living Theater foram confiscados como material
imoral e subversivo. Alguns dias mais tarde os líderes
do grupo, Julian Beck e Judith Malina, foram levados presos.
Os brasileiros não poderiam
libertar o Living Theater como o público tinha feito
na performance da favela. Na prisão o grupo apelou para
a ajuda internacional. O Living Theater sentiu a opressão
do regime político brasileiro naquela época. Os
membros do grupo foram divididos e enviados a três prisões
diferentes para esperar pelo julgamento.
Declaração
do Dia da Bastilha
O Living Theater veio ao Brasil
porque ele foi convidado pelos artistas brasileiros a ajudar
na luta pela liberação em uma terra na qual eles
descreveram a situação como "desesperadora".
Nós concordamos porque acreditamos que é hora
dos artistas começarem a levar o conhecimento e o poder
de sua atividade aos infelizes da Terra.
Aqui no Brasil nós tentamos,
através da mais alta expressão de nossa arte,
aumentar a consciência entre os mais pobres dos pobres,
entre os trabalhadores das fábricas, mineradores e suas
crianças.
A prática de nossa arte
nestas áreas esquecidas fez recair sobre nós a
ira das forças de repressão e nós somos
agora acusados de subversão, além de posse e tráfico
de drogas. Nós não estamos sofrendo no sentido
que 70 milhões de pessoas neste país, que são
diariamente torturadas pela fome, estão sofrendo; mas
nós somos prisioneiros na luta de vida e morte pela consciência
livre no planeta.
Nós apelamos a nossos amigos,
nossos aliados por qualquer ajuda que eles possam reunir, de
maneira que possamos continuar a desenvolver e praticar nossa
arte a serviço daqueles que são os prisioneiros
da pobreza.
Julian Beck / Judith Malina
The Living Theater
Celas de Detenção, DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social)
Belo Horizonte, Brasil
Dia da Bastilha, 1971 (Le Monde, 1971)
O apelo foi publicado pela imprensa
internacional e deu a eles enorme notoriedade por todo o Brasil.
Como prisioneiros eles representaram um sério problema
para o regime ditatorial, porque eles revelaram ao mundo a gravidade
da situação dentro das prisões políticas
brasileiras, o DOPS.
O caso legal de Beck se tornou um importante assunto, tanto
na imprensa internacional quanto brasileira. O cônsul
americano interviu. Finalmente, um veredicto foi declarado e
o Living Theater expulso do Brasil por denegrir a imagem nacional
no exterior, de acordo com o presidente Médici.
Depois da expulsão o Living
Theatre continuou a desenvolver seu trabalho nos Estados Unidos.
A primeira apresentação na série de performances
de rua, criadas no Brasil, continuaram a influenciar outras
peças do Living Theater - algumas das canções
e histórias eram transformadas e incluídas em
outras performances. Contudo, as mais poderosas em suas performances
posteriores eram as cenas de tortura baseadas em suas experiências
nas prisões brasileiras representadas em sua criação
de 1973: "Sete Meditações Sobre o Sado-Masoquismo
Político".
O aspecto mais evidente da jornada
do Living Theater no Brasil foi o desenvolvimento de seus conceitos
teatrais e a profunda organização de sua compreensão.
Foi uma dura lição, mas uma inspiradora também.
De volta aos Estados Unidos, eles continuaram a lutar pela liberdade
das pessoas na América Latina.
Em minha retrospectiva do Living
Theater no Brasil eu considero a performance da Favela uma experiência
interessante do teatro de guerrilha envolvendo elementos sintéticos
e mensagens determinadas. Era uma performance ambientalista
que incluía a participação do público
em diferentes níveis - como observador, como performer
e como material novato para os eventos. Devido à maneira
que o grupo agia dentro de uma comunidade e aprendia sobre seus
problemas específicos, ele criava uma peça dirigida
àqueles problemas e, finalmente, representava-a para
a comunidade; é difícil imaginar qualquer destas
performances sendo transplantadas para um outro ambiente. Assim,
estas performances devem ser vistas como eventos circulares
com início e fim em si mesmas.
Em 17 de outubro de 1988 o Living
Theater mostrou o seu Retrospectacle (Retroespetáculo)
no palco do teatro da Universidade Cooper Union em Nova York.
O grupo que se apresentou aquela noite foi composto inteiramente
dos membros da Companhia Living Theater de várias fases
de sua história. A canção O Que é
a Vida ("What is Life?") que abriu a performance da
favela foi tocada e cantada. Mas o cenário usado para
descrever a experiência brasileira do Living Theater foi
a cena de tortura da peça Sete Meditações
("Seven Meditations") Aquela cena se tornou um símbolo
de uma época em que o Living viveu no Brasil, bem como
o Living Theater tornou-se para nós, povo brasileiro,
um símbolo da arte revolucionária.
*
Diretor teatral, professor adjunto do Departamento de Direção
e do Mestrado em Teatro na UNI-RIO. Doutor em Estudos da Performance
pela New York University.
Living
promove catarse de rua em Campinas
(Marco Henrique Veloso*)
Para
quem não conhecia ou já tinha se esquecido, o
Living Theater não decepcionou em sua passagem pelo Festival
Internacional de Teatro de Campinas. O grupo, atualmente comandado
pela atriz Judith Malina, apresentou na manhã de sábado
o resultado do 'worshop' realizado durante a última semana.
O Living Theater revolucionou o teatro da década de 60,
com seus espetáculos públicos de espírito
anarquista.
Às 10h16 de sábado,
o ator Ilion Troya, 43, brasileiro de Rio Claro, que há
quase 20 anos trabalha como o Living, deu início ao espetáculo
'Três atos públicos', que durou pouco mais de uma
hora e meia e que envolveu mais de 300 pessoas. Com megafone
na mão, Ilion anunciou a hora e a primeira parte de 'Três
atos públicos'.
O grupo de 70 atores partiu em
caminhada do largo da Catedral, dirigindo-se rumo ao largo do
Rosário. O nome 'Passeata da alienação
da vida cotidiana' diz bem o que se passou. Parecendo um grupo
de turistas esquizofrênicos, o elenco deixou perplexa
a população que vinha pela rua de comércio.
A cena e o sol eram de rachar.
No largo do Rosário o grupo
se concentrou com gritos e expressões de dor. Curiosos
perguntaram pelo que se passava. A palavra teatro não
significa muito nessas horas. Ilion Troya anunciou a hora e
o primeiro ato público. Encarando a platéia de
perto cada ator lançou uma pergunta, alguns dramatizando,
outros sem qualquer afetação: "não
me é permitido passear sem a minha carteira de identidade?",
"eu não posso viver sem dinheiro?", "não
me é permitido beijar o teu rosto?".
Às 10h31, Ilion Troya encerrou
o primeiro ato e declarou o início da segunda passeata.
Na 'Passeata da violência assassina' eles se agrediram
de todos os modos.
Na praça diante do Palácio
da Justiça, Ilion anunciou o segundo ato público:
'A casa do Estado'. Deitaram-se diante do prédio como
"reverência ao Estado". Um por um anunciou a
razão de se prostrar.
Após, Ilion e o ator Sérgio Maberti deram início
ao 'Sacrifício do sangue'. Cada ator deu um corte no
dedo, mostrou o sangue e fez a sua declaração:
"Esse é o sangue dos estudantes chineses",
"das crianças que morreram durante a gestação",
"das prostitutas e dos meninos abandonados", por exemplo.
Pessoas que assistiam também participaram.
Às 11h15, depois da 'Passeata
erótica', teve início o terceiro ato 'A casa do
amor'. Um garoto de rua perguntou a Ilion o que estava acontecendo.
Ele respondeu que era teatro para quem não tem dinheiro
para pagar uma entrada e perguntou se não era uma boa.
Após cenas de amor e paixão, os atores amarraram-se
uns aos outros com cordas ("Cena do amor que escraviza').
Passado um tempo, o público os libertou e o objetivo
do grupo foi atingido. Em seguida, com a participação
de mais de 300 pessoas, um grande círculo foi feito em
torno da praça. Um 'oh' contínuo foi entoado e
um grupo de pombas retornou ao largo. O The Living Theater havia
demonstrado que a moderna catarse não tem endereço.
Ilion Troya disse que ficou bastante
surpreso com a participação do público.
"As pessoas se comportaram como público. Na Europa,
eles agridem, os carros não param, enquanto aqui muita
gente que passava se juntou ao grupo", declarou. Ele crê
que dessa experiência fica a confirmação
de que é possível se fazer arte para a rua sem
ser folclore e o desmentido de que o teatro correto precisa
de um lugar e um aparato técnico para acontecer.
*Folha
de S. Paulo. 9 abr. / 1990.
Decreto
de Collor dá visto para Judith Malina
A
fundadora do Living Theater, Judith Malina, chegou ontem de
manhã ao Brasil para participar de 'workshops' do Festival
Internacional do Teatro em Campinas. Sua entrada foi autorizada
por um decreto do presidente Fernando Collor, da última
terça-feira, que revoga um outro decreto, de 27 de agosto
de 1971, referente à expulsão de Judith do território
nacional. Os 'workshops' acontecem no sábado, dentro
da programação do festival.
*Folha
de S. Paulo. 5 abr. 1990.