O dia em que Welles batizou o rio Itabira
(Artur Xexéo*)


       

     Orson Welles todo mundo sabe quem é. Alyrio Cavallieri... bem, a minha geração conhece. Mas como o colunista alimenta a fantasia de também ser lido pela galera mais jovem, aqui vão duas ou três coisas que sei dele. Foi o melhor juiz de menores que esta cidade já teve. Tomou posse em 1969, quando a gente ainda era a Guanabara. Sério, humanista, trabalhador, ficou famoso por suas decisões, nem sempre seguindo a lei ao pé da letra, mas semprer pensando na criança em primeiro lugar. Causou polêmica quando proibiu que uma butique de Ipanema mantivesse o nome de Marijuana. Não deixou que Pedro Bloch lançasse uma peça teatral com o título LSD. Foi um personagem carioca, embora tenha nascido em Minas. Se alguém me perguntar o nome do atual juiz de menores, respondo sem hesitar. Alyrio Cavallieri. Já mudou faz tempo. Mas sua passagem pelo juizado foi tão marcante, que é difícil lembrar dos nomes que o sucederam.

     Há dois dias, o colunista teve a honra de receber uma cartinha de Alyrio Cavallieri. "Arrumando gaveta - lazer de aposentado - encontrei o que lhe mando, esperando proporcionar-lhe um giro por uma varanda do passado", escreveu ele. E que giro! O encontrado era uma cópia de reportagem, assinada por Iller Save, publicada no dia 22 de abril de 1942 no semanário carioca Cine-Rádio Jornal. Na ocasião, Orson Welles filmava no Brasil o mítico It's all true e a imprensa publicava fofocas garantindo que cineasta nunca tinha ido a Outo Preto. Confesso que nunca soube que o filme tinha imagens de Ouro Preto. Mas Iller Save, testemunha da passagem do cineasta pela cidade, desfez o disse-me-disse. Save era o pseudônimo de Cavallieri - pseudônimo jequíssimo, nas palavras do próprio juiz - e autor do artigo Orson Welles, Ouro Preto e eu. Reproduzo aqui trechos do dia em que Alyrio Cavallieri encontrou-se com Orson Welles em Itabirito!

     "Uma nota de Celestino Silveira no seu Em cartaz inspirou-me este artigo. É que se divulga o boato segundo o qual Orson Welles não tinha ido a Ouro Preto. Somente a sua equipe de filmagem tinha estado lá. Sinto-me autorizado a dizer a verdade a respeito, não só porque estive mais de uma hora com o Citizen Kane, como assisti a algumas tomadas de cena em Ouro Preto.

     Distando 50 quilometros da Cidade Monumento, fica esta minha provinciana cidade de Itabirito. E foi precisamente aqui que o carro em que viajava Orson Welles precisou de reparos. No Bar do Primo, instituição tradicional da cidade - onde consegui, sem trabalhos, autógrafos preciosos de Stefan Zweig, Agripino Grieco, Jacques Ebstein, Lódia Silva, etc, etc. -, dei de cara com um tipo gordíssimo, alto, com bigode recente, cabelos despenteados, sem gravata nem paletó, um cordão de prata com santinhos ao pescoço, umas enormes abotoadoras de ouro nos punhos, de fala altissonante e americana. Identifiquei logo Orson Welles, com grande surpresa. E pensei logo: - Mas esse homem não estava ontem no Rio, selecionando extras?".

     Corta! Agora, imagine. Um jovem de 21 anos, inteligente, amante de cinema, perdido em Itabirito, diante de Orson Welles! Itabirito era passagem para quem se dirigia a Ouro Preto e o Bar do Primo - de propriedade do pai de Cavallieri e onde nosso personagem trabalhava como garçom - parada obrigatória para uma refeição rápida ou uma ida ao banheiro. Ação!

    "Fiquei longo tempo a observar o 'gigante menino' do cinema. Levantava-se freqüentemente, dirigia-se a uma vitrine e mordia inúmeros doces, bolos, pastéis, à cata de algo que lhe agradasse. (...) Um pedido de autógrafo, feito no meu inglesinho 'de la miséria', foi minha porta de entrada com Mr. Welles. Perguntou-me se falava inglês. Por amor à verdade e à modéstia, respondi que arranhava. E o maior elogio feito ao meu professor de inglês do ginásio foi feito pelo revolucionário do cinema: - It's better than my Portuguese.

     Depois de devorar inúmeros doces típicos, e de querer qulaquer cousa que tivesse pimenta e de recusar todos os sanduíches, alegando que são internacionais, andou pela cidade pequena. Diante do cineminha do interior, interessou-se pelos cartazes. Para aquela noite estava anunciado o filme Não cobiçarás a mulher alheia com a já saudosa Carole Lombard e Charles Laugton. Perguntei-lhe o que achava do filme. Levantou a mão grandalhona e fez, entre dentes: - Bad!".

     Corta! Os doces típicos a que Cavallieri se refere eram cocadas. Orson Welles ficou fã de cocadas. O garçom-cinéfilo não cobrou a conta. E o cineminha visitado pelo cineasta era o Cinema Central, atualmente fechado. Existe um movimento em Itabirito para reabrir o Central. Tem todo o meu apoio. Ação!

     "(...) Querem ver até onde vai a igualdade do cidadão Kane? Tive, desde que o vi, vontade de tirar-lhe uma foto, com minha box. Mas logo me assaltou a extensão da ousadia No entanto, um demônio típico coçou-me o corpo. Preparei a máquina e fui encontrá-lo no meio da rua, ou melhor, na balaustrada de uma ponte, sob um sol quentíssimo. Cantei-lhe a foto. Esperava uma recusa no duro. Mas o homem tomou atitude, colocou-me bem contra a luz, tirou o enorme óculos preto, fez uma posse e disse: - Now!

     A foto que ilustra esta coluna é o momento exato em que Orson Welles diz Now! sobre a ponte do Rio Itabira. O que Alyrio Cavallieri não contou na reportagem de 1942, mas revelou ontem para o colunista em rápida conversa telefônica, é que, logo após a foto, o cineasta abriu a braguilha da calça e batizou as águas do rio. O juiz pediu para a travessura permanecer inédita. O colunista pede desculpas. E, com licença de José Wilker, the end.

     *Publicado no Jornal do Brasil - Artur Xexéo, 5 mar. / 1999.


As infames aventuras de Mr. Welles na Era Vargas