São
Paulo, 5 dez. / 1979.
Régis - John Lennon afirma
na matéria Lennon Remembers da The Rolling Stone Interviews,
que suas Iyrics preferidas são as que "ficam em
pé" sem melodia, as que funcionam, em última
análise, como poemas no papel. Isso me lembra os trovadores
galego-portugueses. Desconhecemos suas melodias e conhecemos
apenas suas "Iyrics" que, mesmo sem som, funcionam
à maravilha como poemas no papel. Você toparia
usar esse critério em relação às
suas letras? Quais as suas preferidas? Por que?
Caetano - Não, esse critério, na verdade,
é praticamente o oposto do meu, porque o que me interessa
é a palavra cantada.
Talvez tenha sido esse o caminho que levou os trovadores provençais,
os galego-portugueses a fazerem poemas que terminaram sendo
bonitos mesmo sem as melodias. Talvez, tenha sido esse o caminho,
esse lance de ter a palavra já com o som musical.
Acho que o critério de John Lennon pode ser mais ou menos
esse, mas não sei se, de fato, é esse, se corresponde
a própria realidade poética dele.
Não sei, pode ser que, a posteriori, depois de muito
tempo, a gente possa ler uma letra sem música e achar
um barato.
Penso que Lennon, quando fez aquela afirmação,
queria dizer que ele estava mais vinculado ao texto, entendeu?
Ele cita, se não me engano, "Across The Universe",
que considera um poema lindíssimo mesmo sem a música,
mas quando fala do que acha ser a grande poesia do rock and
roll lembra imediatamente de Chuck Berry e de algumas coisas
de Little Richard. Ele fala de coisas que você sabe que
são maravilhosas porque são aqueles rocks e ele
achou tudo incrível, importantíssimo sem ter lido
antes no papel.
Sobre minhas letras não sei dizer as que mais gosto,
depende da época. Por exemplo, tomei susto outro dia
porque ultimamente não tenho escrito minhas letras. Das
do LP "CinemaTranscendental" apenas uma escrevi parcialmente
no papel antes da música, foi "Oração
ao Tempo". Escrevi umas estrofes e bolei, em seguida, uma
melodia para a primeira estrofe. Depois, resolvi repetir essa
melodia pra o resto do texto, queria tudo com a mesma métrica,
o mesmo ritmo. Foi a única, portanto, que eu escrevi
no papel.
O jornal "Enfim", do Tarso de Castro, pediu pra eu
mandar letras inéditas, antes do disco sair, pra publicar.
Entreguei "Lua de São Jorge", "Oração
ao Tempo" e "Menino do Rio". A que mais curtia
era "Lua de São Jorge". Bati à máquina
e não prestei muita atenção. Mandei pro
jornal que editou só as duas últimas.
Acho a letra de "Menino do Rio", quando canto, deslumbrante,
adoro aquele verso "O Havaí seja aqui", que
tem um som afro. Agora, quando eu vi no jornal, escrita, achei
uma coisa débil mental, tola. E ela não é
tola, pelo contrário, é muito bonita quando cantada!
"Oração ao Tempo", por outro lado, segurava
mais, podia ser lida.
A palavra cantada é, em suma, um outro tipo de matéria-prima,
que tem a ver com a palavra escrita e com a falada, mas que
não se reduz a nenhuma delas. A palavra cantada funciona,
talvez, como síntese das outras duas, tem desempenhado,
pelo menos, essa função porque toda a curtição
da palavra em estado de poesia tem sido muito mais intensa na
área de música popular do que nas demais .
Talvez, esse fenômeno decorra, um pouco, do cansaço
do visual, da comunicação visual, da leitura.
O fim dos anos 60, os papos de McLuhan, talvez, tenham sido
uma notícia desse cansaço. O olho dançou.
O ouvido é uma coisa mais envolvente, mais participante.
O som chega de todos os lados, entra em todos os poros.
Pode ser que esse cansaço seja apenas passageiro. As
coisas vão e vêm. Não creio nessa caminhada
para a frente, como se pudesse haver um progresso . Não
compartilho dessa idéia ocidental de progresso linear.
Régis - Embora os circuitos de produção
da poesia-música e da poesia-papel sejam diversos e até
mesmo antagônicos (a primeira está vinculada às
relações de troca, de compra e venda e a segunda
não), você me disse há pouco tempo atrás,
que não distinguia entre uma canção de
Jorge Ben e um poema de Augusto de Campos, que ambos eram biscoitos
finos para o seu paladar. Gostaria que falasse um pouco mais
sobre isso.
Caetano - Há uma
coisa na pergunta que está um pouco em falso, isso de
que a poesia-música está vinculada às relações
de troca e a poesia-papel não, não é verdade.
Acho que ambas são produtos, sendo que, no momento, como
produto de venda, a poesia-canção está
muito mais bem sucedida. A questão é de mercado.
A diferença entre uma e outra não é de
circuito mas de nível de intensidade na produção
e no consumo. Não há diversidade e antagonismo.
Na verdade, ambas são iguais, estão no mesmo planeta.
Os livros podem ser vendidos, poesia é pra vender, como
o disco. Só que a poesia escrita não está
fazendo sucesso, dos anos 50 para cá, não só
no Brasil como no mundo todo.
Você diz que a poesia-papel
não tem existência real, certo? Não, ela
tem. Sejamos modernos, o que ocorre é que ela está
em crise de mercado.
Não sei porque isso acontece, talvez, seja uma
questão da história das línguas ocidentais,
um momento no swing interno dessas línguas. O fenômeno,
como eu disse, é planetário, não existe
mais o interesse que havia em termos de consumo e em termos
de feitura. Há pouca gente fazendo uma poesia responsavelmente
poética, com uma vinculação ao que há
de grandioso na história da poesia e, por outro lado,
pouca gente compra qualquer poesia escrita, entendeu?
Ultimamente, há muita gente fazendo muita poesia, mas
sem força, com uma animação vazia, mas
ninguém sabe, daí, desse contexto pode sair um
lance quente.
Acho que a diferença que você coloca na pergunta
não é precisa. Agora, pessoalmente, não
costumo distinguir as coisas, não separo música
popular de música erudita, etc. Não carrego comigo
a idéia de nobreza do material, detesto isso. Cientificamente,
você pode isolar as diversas manifestações
artísticas, mas creio que esse tipo de olho dançou,
não corresponde mais à realidade viva.
Régis - Queria que
você falasse sobre música popular. Por que ela
é tão forte no Brasil?
Caetano - A música popular brasileira é,
em todos os sentidos, abundante. É a única manifestação,
no Brasil, que não é carente. Na verdade, é
uma aberração dentro da sociedade brasileira,
é diferente, em nenhum país do mundo ela tem a
importância que tem aqui. A música popular sempre
se mantém, sempre consegue agenciar recursos pra ficar
forte, o que não ocorre com a poesia escrita, com o cinema,
com o teatro. Ela une o pique nacional, tem a vocação
de expressar o país.
Só pintou uma geração como a minha, com
Jorge Ben, Gil, Chico, Paulinho da Viola, porque já havia
outras pessoas fortes.
Nem nos Estados Unidos a música popular é tão
forte como aqui porque lá as outras coisas são,
também, fortes. Lá eles têm grana, comida,
carro, a grama, como diz Leminski, é bacana. O brasileiro
é muito pobre, não consegue fazer nada, não
consegue se ajuntar pra fazer nada, mas, dentro desse caos,
a música popular funciona. Ela é a expressão
filosófica do país. É muito mais importante
do que todos os universitários de todas as épocas
que já escreveram todas as coisas complicadas. Ela é
uma expressão mais totalizante do Brasil, mais direta,
não transa com materiais nobres porque o Brasil não
é um país nobre.
Creio que os poetas papel estão, de um modo geral, mais
vinculados a uma tradição européia e a
música popular é uma coisa mais vinculada à
américa, quando ela pintou já existia a américa.
Ela é meio parecida, nesse sentido, com o cinema e, ao
mesmo tempo, é música porque é uma coisa
antiquíssima.
Régis - Seria o cinema
transcendental . . .
Caetano - Claro, exatamente isso ...
Régis - Aproveitando
o pique, gostaria que você falasse sobre o lendário
Araçá Azul.
Caetano - Araçá Azul não é
classe A, xingu chic, como por exemplo, as coisas que Egberto
Gismonti vem fazendo. É outra coisa, não é
xingu chic. Eu sou mais Oswald de Andrade do que Mário
de Andrade ou Academia Brasileira de Bossas.
Acho, até hoje, o Araçá Azul maravilhoso,
faço, inclusive, uma referência a ele na canção
"Aracaju", que está em meu último LP.
Quis fazer esse disco sozinho para poder desinibir no estúdio,
pois, pra mim, estúdio de gravação é
uma coisa muito inibidora.
Ficamos eu e o técnico de som, Marcus Vinícius,
trabalhando. Depois, chamei várias pessoas, como Duprat,
Perna, Lanny, para complementarem em cima do que eu havia feito.
Adoro o resultado, principalmente aquele lance de conversa,
de vozes superpostas com percussão corporal, com percussão
na pele.
Mas o som ficou chapado, eu não manjava de estúdio.
Hoje, se eu tivesse que fazer de novo, faria com mais profundidade
e nuance no colorido dos sons. Mas não tenho, agora,
vontade de fazer mais aquilo. Mesmo porque, naquela altura,
quando acabei de lançar o Araçá, saiu o
disco "Ben", de Jorge Ben, também de 1972,
com "As Rosas Eram Todas Amarelas", "Quem Cochicha
o Rabo Espicha", "Taj MahaI", "Fio Maravilha",
um trabalho monumentalmente genial.
Então, eu pensava comigo, puxa, fiz o Araçá
e parece que sou um artista. Fiquei com raiva, meu deus, eu
fiz essa coisa tão louca e todo mundo vai achar que é
um disco intelectualmente elevado, importante e, na verdade,
o grande disco é o de Jorge Ben, incomparavelmente superior.
O meu era uma brincadeira, fiquei com raiva do tipo de respeito
que ele causou. O Araçá eu fiz em uma semana,
não era o meu trabalho mais elaboraqo, como dizia parte
da crítica. Fiquei com raiva, pois, o grande lance era
e é Jorge Ben.
Régis - Pra minha geração,
a 'a fala', o fascínio pelo coloquial, pelo oral, pelas
possibilidades de comunicação que existem no oral,
tem a mesma importância que a incorporação
do visual tinha para os poetas aglutinados em torno da Poesia
Concreta. Nesse sentido, sua poesia, a de Gil é tão
ou mais importante pra gente do que a de Drummond, Cabral, Augusto,
Décio. Como vê isso?
Caetano - E Chico Buarque?
Régis - Antes de você responder, quero
explicar porque não citei Chico. Acho a poesia dele,
com exceção do lado mulher, tipo "Folhetim",
velha, um lirismo dos anos 50, picadinho de Vinícius,
Drummond, Bandeira. Penso que lhe falta um lado mais elétrico.
Ele tem muito essa coisa do bom brasileiro, que é chatíssima.
Caetano - Acho natural sua geração gostar mais
da gente do que dos poetas papel, para usar essa expressão
que você inventou. É um lance bem da nossa época.
Isso faz de vocês pessoas iguais a todo mundo, o que é
ótimo.
Acho também fascinante que o pessoal da poesia escrita
fique ligado nos músicos populares. Agora, voltando àquela
primeira pergunta, quando você cita a frase do Lennon,
você vê bem ali que existe uma interrelação
entre a gente e os poetas. No fundo, somos iguais. Por acaso,
por sorte descambamos para a música popular. Mas veja,
nós também somos ligados ao mundo das letras escritas,
das idéias.
Todo esse pessoal estudou, Dylan só fala em William Blake,
Lennon em Lewis Carrol, dizendo, inclusive, que quando leu Joyce
se identificou bastante.
Quero dizer que não concordo com o que você falou
sobre Chico Buarque. Ele tem tudo o que você falou, mas
é maravilhoso. Ele anda pra frente arrastando a tradição,
isso é bem do signo dele, que é gêmeos.
Chico escreve de um jeito maravilhoso, o lance da palavra cantada
atinge, no trabalho dele, os pontos mais altos, chega à
perfeição, entendeu? Mas, de fato, ele tem mesmo
essa coisa do bom brasileiro. Eu, por exemplo, me sinto um sueco
no Brasil.
Mas acho Chico deslumbrante, ele é o supervinícius,
o superdrummond, o superbandeira com a espontaneidade de Dorival
Caymmi. A palavra cantada, nele, tem uma fluidez incrível.
E você sabe que considero Caymmi o maior, a mãe
da palavra cantada, um gênio.
Régis - Você, um poeta-músico, próximo
dos pretos, próximo da poesia-papel, acredita no futuro
desta última ou pensa que se Maiakóvski, por exemplo,
estivesse vivo trocaria o papel pela guitarra, mudaria de Moscou
para Londres, Nova Iorque ou Salvador e cantaria: "Well,I'm
gonna China to see for myself / Gonna China, gonna china / Just
Got to give me some rock and roIl"?
Caetano - Acho que tem futuro. A própria coisa da poesia
escrita deixar de ser cursiva e entrar para um outro nível
de informação é um fato que aponta para
certas necessidades do homem que, a qualquer momento, podem
explodir de novo. Como eu disse, tudo é cíclico,
a respiração não para, de repente pode
voltar a haver procura genuína de poesia papel. Repito,
o que acontece é que ela hoje está em crise de
mercado. No futuro, sei lá, pode ser que as pessoas voltem
a sentir necessidade de ler, de pegar um lápis e papel
e escrever.
A poesia escrita que se faz hoje pode estar apontando para rumos
que, embora desconhecidos, poderão vingar, explodir.
Ninguém sabe ao certo. Agora, essa imagem que você
montou do Maiakóvski, cantando I'm gonna China é
perfeita.
Régis - Não sei, sempre imaginei o John Lennon
como uma reencarnação pop do Maiakóvski,
ambos são, para mim, poetas guerreiros, impetuosos, bardos,
não sei, pode ser um delírio ...
Caetano - Não, essa estória é linda, Maiakóvski
era bastante pop mesmo. Agora, Lennon é o que mais gosto
do pessoal do rock. É o meu favorito porque eu adoro
os Beatles. Eu gosto mais dos Beatles juntos. Depois de separados,
o único disco que eu acho genial é o "Dream
is Over", do John, adoro as letras e as músicas.
Régis - Esse disco que você acabou de citar, de
1970, foi acusado, na época que saiu, do mesmo modo que
"Muito" e "Cinema Transcendental" agora,
de ser ralo musicalmente, de ter arranjos pobres, de ser uma
coisa de fundo de quintal.
Caetano - Pra você ver, e é um clássico,
né? Mas voltando, Paul Mc Cartney também é
legal, ele é geminiano, como o Chico Buarque. Ele carrega
também a tradição, une o habitual ao que
está sendo proposto. John, às vezes, fica chato,
quando começa a inventar muito, como, por exemplo, naquela
canção que fez pra Yoko, "I want you - She's
so heavy". Mas, Lennon é o meu favorito. Por exemplo,
Bob Dylan eu demorei muito de gostar, eu achava aquilo tudo
muito comprido, retórico, prolixo, metafórico.
A coisa dele é difícil de entender e eu preferia
letras sintéticas, não curtia letra longa, mas
fiquei gostando muito, hoje em dia eu gosto muito. Ele é
um cantor maravilhoso, parece o Pato Donald com consciência
social, como disse Paulo Francis, citando um americano. Dylan,
sim, faz uma poesia meio declamada porque ele vem dessa linha
do canto falado do folk blues.
Régis - E Jimi Hendrix?
Caetano - Eu estava em Londres quando ele morreu. Ele morreu
até perto da casa onde a gente morava. Acho ele, até
hoje, maravilhoso. No Festival Pop da Ilha de Wight, eu estava
próximo do palco e Hendrix tocou uma série de
números novos que não causou aquele frisson esperado,
embora ele tenha sido bem recebido. Aí, de repente, ele
parou e falou: "Vocês querem todas aquelas coisas
velhas?". Eu, que estava perto, gritei: "Todas elas".
Ele virou e piscou o olho pra mim.
Régis - Então, você foi abençoado
por um dos deuses de lá...
Caetano - Hendrix era lindo, sexy, parecia um garotinho da Bahia.
Era sorridente, tinha a cara leve, não tinha aquele aspecto
barra pesada de capa de disco, aquilo era marketing errado.