Nada como respirar a brisa fresca da tarde. Ar puro com cheiro
de verde.
Olhando para o céu de um azul imaculado, sem uma só
nuvem, eu buscava um pontinho no céu, uma cor diferente
que destruísse aquele senso de perfeição.
A palavra ”irreal” tomava conta da minha mente fazendo-me
desconfiar dos meus próprios sentidos e, justamente por
isso mesmo, fazendo com que a realidade daquele céu parecesse
brutalmente palpável como se a Terra estivesse cercada
por uma frágil redoma de vidro azulado pronta para partir-se
e despencar-se na minha cabeça numa chuva de cacos pontudos
e azulados.
De repente perturbado pelo súbito despertar à
realidade física ao meu redor, deparei-me sentado num
banco de madeira à contemplar um lago com mais ou menos
um quilometro de diâmetro. O lago com sua forma circular
absolutamente perfeita possuía em torno dele um pequeno
anel de asfalto negro que, na margem do lago perdia-se dentro
da água. No limite, separando o asfalto negro da grama
verde encontravam-se os bancos de madeira, todos iguais e separados
por intervalos precisos como se estivessem marcando os minutos
num gigantesco relógio. No gramado mais para o fundo
as arvores, todas da mesma espécie, pontiagudas, apontado
para o céu, pareciam ter sido todas plantadas no mesmo
dia e, clonadas uma das outras. A água do lago, estática,
sem uma onda, sem uma impureza, um gravetinho flutuante que
fosse, refletia o azul do céu como se fosse um espelho.
Duas fatias de pão azulado sanduichando-me no meio. Quebrando
a imobilidade mas, ao mesmo tempo, aumentando o senso de repetição
e continuidade, do outro lado do lago, um grupo de seis pessoas
lentamente prosseguem metodicamente na sua corrida pelo asfalto
em torno do lago, alcançando cada banco como se fossem
os ponteiros do relógio. Tique, taque, tique, taque...
O lago, um “círculo perfeito”. Meu antigo
professor de geometria à muito muito tempo atrás
me disse que um círculo perfeito não pode ser
produzido, que o círculo perfeito é uma abstração
geométrica que, tem vida apenas na nossa mente. Na minha
eterna busca pela essência e significado da vida não
posso deixar de sentir que o círculo está impregnado
em tudo. A esfera não deixa de ser um círculo
tridimensional. Desta forma, o universo é esférico,
assim como as estrelas e os planetas com suas trajetórias
elíptico circulares. No mundo sub atômico tudo
indica que as partículas também estão presas
às suas órbitas circulares. Não esqueçamos
do óvulo, mãe da humanidade. Um dos aspectos do
círculo que mais me fascina e que sinto dentro de mim
talvez seja o elemento mais importante, é a questão
da continuidade, do “loop”, da repetição.
E se tem repetição tem movimento, freqüência,
e de certa forma, é vida que não tem começo
e que não tem fim. Infinito. Eternidade.
Próximo aos meus pés, vejo no chão duas
folhas verdes e amarelecidas nas pontas. Como elas chegaram
lá eu não sei pois eu não as tinha notado
antes. Curvo-me para a frente e observo-as atentamente notando
que as mesmas são desagradavelmente iguais. O amarelo
envelhecido obedecendo padrões idênticos, as veias
alastrando-se pelas folhas seguindo em ambas os mesmos caminhos
como se estivessem tentando irrigar dois cérebros verdes
porem já mortos. Meu Deus, tudo é tão estranho
e irreal, sintético mesmo. Tão perfeito que machuca.
E perfeição é outra coisa que só
existe na mente. Um círculo perfeito. Será Deus
um círculo, uma força em movimento, algo sem começo
e sem fim? Algo que só existe na mente, preciso como
uma fórmula matemática.
Perfeito na sua intransigência contra a imperfeição,
no radicalismo do não retorno. Perfeito na impossibilidade
da compreensão…Como absorver a perfeição
dentro de algo tão imperfeito e finito como nós?
Mergulhado no silêncio dos meus pensamentos mas, com as
veias esverdeadas daquelas folhas alastrando-se no meu cérebro,
buscando caminhos como a água da chuva na terra seca,
sou lentamente trazido à tona, pelo som da cadência
rítmica dos corredores que se aproximam. Tique…….taque,
Tique…….taque. Como um pequeno comando militar,
cinco homens um atrás do outro com um sexto correndo
paralelamente junto do último da fila aproximam-se em
passos largos mas lentos, muito lentos. Mais parecem astronautas
num bale coreografado andando na superfície da Lua. Seus
braços em movimento sincronizado. Como uma antiga locomotiva
com todas as suas rodas girando ao mesmo tempo. Partes de uma
máquina invisível. Os homens todos nus, e iguais,
sem nenhum cabelo no corpo, todos com uma gota de suor na testa,
escorrendo exatamente no mesmo lugar. Sem expressão,
os olhos vidrados, fixados num ponto distante e inatingível.
Passam por mim sem notarem a minha presença, muito embora
eu estivesse à um metro deles. Como manequins de vitrine.
Nus e esperando para serem vestidos e personalizados. Serão
Deuses? Serão todos apenas um? Músculos em movimento,
correndo para completar a volta, o círculo. Deus. Círculo.
”-Dash!”
Deus. Círculo. Deus. Círculo. Deus. Círc...
”-Dash!” Repetiu a voz em seu cérebro.
Hum..Humm...Loop. Repetir. Círculo. Deus. Deus. De...
”-Dash! Acorde!” repetiu a voz com mais ênfase.
Com dificuldade, como se estivesse saindo de um estado de coma,
Dash reconheceu a voz melódica, tranqüila e assexuada
da sua SI (Servo Inteligência).
”-O que você quer?” Com um amargor na boca,
Dash falava com dificuldade e mau humor como se ainda estivesse
preso naquele sonho estranho.
”-Não sou eu que quero. Eu fui instruído
por você mesmo a acordá-lo exatamente às
10 horas da manhã pois você me disse ontem que
tinha que mudar seus hábitos. Você disse também
que tinha chegado à conclusão que dormir o dia
todo era um tipo de fuga da realida...”
”-X quer fazer o favor de deixar-me em paz!” Dash
interrompeu sua SI bruscamente.
Do lado do seu colchão anti-gravitacional, X que era
o nome carinhoso dado por Dash silenciou-se. X não tinha
braços nem pernas e, sua forma cônica terminando
com uma esfera na ponta mais lembrava uma daquelas antigas esculturas
funcionais feitas pelos antigos seguidores da Bauhaus. Na sua
base, a mesma tecnologia usada no seu colchão era usada
para criar um pequeno campo anti-gravitacional que o mantinha
poucos centímetros acima do chão. Movimentava-se
silenciosamente de um lado para outro e, sempre estava à
mão para qualquer dúvida ou para aquele bate-papo.
X vivia conectado permanentemente via MegaNet com a BET (Biblioteca
Eletrônica Terrestre). A BET incorporava todo tipo de
informação tanto gráfica, visual como sonora.
Desde a unificação da Terra a BET assim como a
MegaNet tinham ganho uma importância sem precedentes na
distribuição de informação e conhecimento.
A verdade é que agora Dash já não conseguia
mais dormir. O silêncio de repente ficou insuportável
e a presença muda da SI ali parada e imóvel era
perturbadora. Dash observou aquela bola sem expressão
e teve pena. Afinal de contas, X por meses tinha sido sua única
companhia diária.
”-X perdoe-me?” Dash tentou recompor-se, limpando
a garganta e continuou:
”-Você sabe...” E, usando a sua frase favorita
acrescentou:
”-Alguém tem que pagar por isto!” Dash deu
uma pausada para meditar e, continuou falando como se estivesse
falando com sigo mesmo:
“-Eu estou aqui trancafiado por meses, só acumulando
tensão e, acabo desabafando em quem está mais
próximo. Se eu não espernear, fico louco!”
”-Eu entendo.” Respondeu X, acrescentado filosoficamente:
”- A liberdade é uma necessidade fundamental para
os seres humanos.”
”-O que você entende à respeito de liberdade?”
Dash explodiu indignado. E, sentindo-se como uma ilha continuou:
”-Você não passa de uma…”
”-Servo Inteligência? X interrompeu candidamente
e continuou:
”-Eu percebo que você está deprimido o que
é bem natural diante das circunstancias. Eu não
sei se este é um bom momento para uma discussão
intelectual entretanto, devo salientar que uma rápida
passada de olhos pelos bancos da BET mostra que antes da Grande
Unificação os povos lutaram muito em busca de
liberdade.”
”-X você não vê que tudo é relativo!
O que é liberdade para um é repressão para
outros! De qualquer forma você não tem idéia
de como me sinto.” Dash cobriu o rosto com as mãos,
encolhendo-se todo ao mesmo tempo que seu corpo virou no espaço
para em suspensão dar as costas para o X.
”-Dash você está cometendo um engano. Certamente
eu nunca vou poder experimentar as mesmas emoções
que você. Aliás nenhum ser humano ou SI pode. Um
escritor chamado Audous Huxley escreveu à muito tempo
atrás que, “Os amantes procuram em vão unir
seus êxtases isolados” ele disse também que
“Os mártires penetram na arena de mãos dadas
mas morrem sozinhos”. Eu acho que estas frases exemplificam
muito bem o problema da transmissão da nossa experiência
para os outros. Eu nunca vou experimentar o seu sofrimento ou
o seu prazer mas, eu posso comparar com o dos outros e ter uma
idéia. É mais ou menos o que vocês humanos
definem como sendo “empatia”.
”-Ok, ok ,ok X. Você tem razão. Desculpe-me
novamente.” Dash sentia-se um perdedor.
”-Anime-se! Eu tenho a solução para o seu
problema imediato.” Continuou X como se nada tivesse acontecido.
”-Dash o que você precisa é de um bom café
da manhã!”
X tinha razão e Dash sabia disto.