Homosinteses
Antonio Celso Barbieri


     


Nada como respirar a brisa fresca da tarde. Ar puro com cheiro de verde.


Olhando para o céu de um azul imaculado, sem uma só nuvem, eu buscava um pontinho no céu, uma cor diferente que destruísse aquele senso de perfeição. A palavra ”irreal” tomava conta da minha mente fazendo-me desconfiar dos meus próprios sentidos e, justamente por isso mesmo, fazendo com que a realidade daquele céu parecesse brutalmente palpável como se a Terra estivesse cercada por uma frágil redoma de vidro azulado pronta para partir-se e despencar-se na minha cabeça numa chuva de cacos pontudos e azulados.


De repente perturbado pelo súbito despertar à realidade física ao meu redor, deparei-me sentado num banco de madeira à contemplar um lago com mais ou menos um quilometro de diâmetro. O lago com sua forma circular absolutamente perfeita possuía em torno dele um pequeno anel de asfalto negro que, na margem do lago perdia-se dentro da água. No limite, separando o asfalto negro da grama verde encontravam-se os bancos de madeira, todos iguais e separados por intervalos precisos como se estivessem marcando os minutos num gigantesco relógio. No gramado mais para o fundo as arvores, todas da mesma espécie, pontiagudas, apontado para o céu, pareciam ter sido todas plantadas no mesmo dia e, clonadas uma das outras. A água do lago, estática, sem uma onda, sem uma impureza, um gravetinho flutuante que fosse, refletia o azul do céu como se fosse um espelho. Duas fatias de pão azulado sanduichando-me no meio. Quebrando a imobilidade mas, ao mesmo tempo, aumentando o senso de repetição e continuidade, do outro lado do lago, um grupo de seis pessoas lentamente prosseguem metodicamente na sua corrida pelo asfalto em torno do lago, alcançando cada banco como se fossem os ponteiros do relógio. Tique, taque, tique, taque...


O lago, um “círculo perfeito”. Meu antigo professor de geometria à muito muito tempo atrás me disse que um círculo perfeito não pode ser produzido, que o círculo perfeito é uma abstração geométrica que, tem vida apenas na nossa mente. Na minha eterna busca pela essência e significado da vida não posso deixar de sentir que o círculo está impregnado em tudo. A esfera não deixa de ser um círculo tridimensional. Desta forma, o universo é esférico, assim como as estrelas e os planetas com suas trajetórias elíptico circulares. No mundo sub atômico tudo indica que as partículas também estão presas às suas órbitas circulares. Não esqueçamos do óvulo, mãe da humanidade. Um dos aspectos do círculo que mais me fascina e que sinto dentro de mim talvez seja o elemento mais importante, é a questão da continuidade, do “loop”, da repetição. E se tem repetição tem movimento, freqüência, e de certa forma, é vida que não tem começo e que não tem fim. Infinito. Eternidade.


Próximo aos meus pés, vejo no chão duas folhas verdes e amarelecidas nas pontas. Como elas chegaram lá eu não sei pois eu não as tinha notado antes. Curvo-me para a frente e observo-as atentamente notando que as mesmas são desagradavelmente iguais. O amarelo envelhecido obedecendo padrões idênticos, as veias alastrando-se pelas folhas seguindo em ambas os mesmos caminhos como se estivessem tentando irrigar dois cérebros verdes porem já mortos. Meu Deus, tudo é tão estranho e irreal, sintético mesmo. Tão perfeito que machuca. E perfeição é outra coisa que só existe na mente. Um círculo perfeito. Será Deus um círculo, uma força em movimento, algo sem começo e sem fim? Algo que só existe na mente, preciso como uma fórmula matemática.


Perfeito na sua intransigência contra a imperfeição, no radicalismo do não retorno. Perfeito na impossibilidade da compreensão…Como absorver a perfeição dentro de algo tão imperfeito e finito como nós?


Mergulhado no silêncio dos meus pensamentos mas, com as veias esverdeadas daquelas folhas alastrando-se no meu cérebro, buscando caminhos como a água da chuva na terra seca, sou lentamente trazido à tona, pelo som da cadência rítmica dos corredores que se aproximam. Tique…….taque, Tique…….taque. Como um pequeno comando militar, cinco homens um atrás do outro com um sexto correndo paralelamente junto do último da fila aproximam-se em passos largos mas lentos, muito lentos. Mais parecem astronautas num bale coreografado andando na superfície da Lua. Seus braços em movimento sincronizado. Como uma antiga locomotiva com todas as suas rodas girando ao mesmo tempo. Partes de uma máquina invisível. Os homens todos nus, e iguais, sem nenhum cabelo no corpo, todos com uma gota de suor na testa, escorrendo exatamente no mesmo lugar. Sem expressão, os olhos vidrados, fixados num ponto distante e inatingível. Passam por mim sem notarem a minha presença, muito embora eu estivesse à um metro deles. Como manequins de vitrine. Nus e esperando para serem vestidos e personalizados. Serão Deuses? Serão todos apenas um? Músculos em movimento, correndo para completar a volta, o círculo. Deus. Círculo.


”-Dash!”


Deus. Círculo. Deus. Círculo. Deus. Círc...


”-Dash!” Repetiu a voz em seu cérebro.


Hum..Humm...Loop. Repetir. Círculo. Deus. Deus. De...


”-Dash! Acorde!” repetiu a voz com mais ênfase.


Com dificuldade, como se estivesse saindo de um estado de coma, Dash reconheceu a voz melódica, tranqüila e assexuada da sua SI (Servo Inteligência).


”-O que você quer?” Com um amargor na boca, Dash falava com dificuldade e mau humor como se ainda estivesse preso naquele sonho estranho.


”-Não sou eu que quero. Eu fui instruído por você mesmo a acordá-lo exatamente às 10 horas da manhã pois você me disse ontem que tinha que mudar seus hábitos. Você disse também que tinha chegado à conclusão que dormir o dia todo era um tipo de fuga da realida...”


”-X quer fazer o favor de deixar-me em paz!” Dash interrompeu sua SI bruscamente.


Do lado do seu colchão anti-gravitacional, X que era o nome carinhoso dado por Dash silenciou-se. X não tinha braços nem pernas e, sua forma cônica terminando com uma esfera na ponta mais lembrava uma daquelas antigas esculturas funcionais feitas pelos antigos seguidores da Bauhaus. Na sua base, a mesma tecnologia usada no seu colchão era usada para criar um pequeno campo anti-gravitacional que o mantinha poucos centímetros acima do chão. Movimentava-se silenciosamente de um lado para outro e, sempre estava à mão para qualquer dúvida ou para aquele bate-papo. X vivia conectado permanentemente via MegaNet com a BET (Biblioteca Eletrônica Terrestre). A BET incorporava todo tipo de informação tanto gráfica, visual como sonora. Desde a unificação da Terra a BET assim como a MegaNet tinham ganho uma importância sem precedentes na distribuição de informação e conhecimento.


A verdade é que agora Dash já não conseguia mais dormir. O silêncio de repente ficou insuportável e a presença muda da SI ali parada e imóvel era perturbadora. Dash observou aquela bola sem expressão e teve pena. Afinal de contas, X por meses tinha sido sua única companhia diária.


”-X perdoe-me?” Dash tentou recompor-se, limpando a garganta e continuou:


”-Você sabe...” E, usando a sua frase favorita acrescentou:


”-Alguém tem que pagar por isto!” Dash deu uma pausada para meditar e, continuou falando como se estivesse falando com sigo mesmo:


“-Eu estou aqui trancafiado por meses, só acumulando tensão e, acabo desabafando em quem está mais próximo. Se eu não espernear, fico louco!”


”-Eu entendo.” Respondeu X, acrescentado filosoficamente:


”- A liberdade é uma necessidade fundamental para os seres humanos.”


”-O que você entende à respeito de liberdade?” Dash explodiu indignado. E, sentindo-se como uma ilha continuou:


”-Você não passa de uma…”


”-Servo Inteligência? X interrompeu candidamente e continuou:


”-Eu percebo que você está deprimido o que é bem natural diante das circunstancias. Eu não sei se este é um bom momento para uma discussão intelectual entretanto, devo salientar que uma rápida passada de olhos pelos bancos da BET mostra que antes da Grande Unificação os povos lutaram muito em busca de liberdade.”


”-X você não vê que tudo é relativo! O que é liberdade para um é repressão para outros! De qualquer forma você não tem idéia de como me sinto.” Dash cobriu o rosto com as mãos, encolhendo-se todo ao mesmo tempo que seu corpo virou no espaço para em suspensão dar as costas para o X.


”-Dash você está cometendo um engano. Certamente eu nunca vou poder experimentar as mesmas emoções que você. Aliás nenhum ser humano ou SI pode. Um escritor chamado Audous Huxley escreveu à muito tempo atrás que, “Os amantes procuram em vão unir seus êxtases isolados” ele disse também que “Os mártires penetram na arena de mãos dadas mas morrem sozinhos”. Eu acho que estas frases exemplificam muito bem o problema da transmissão da nossa experiência para os outros. Eu nunca vou experimentar o seu sofrimento ou o seu prazer mas, eu posso comparar com o dos outros e ter uma idéia. É mais ou menos o que vocês humanos definem como sendo “empatia”.


”-Ok, ok ,ok X. Você tem razão. Desculpe-me novamente.” Dash sentia-se um perdedor.


”-Anime-se! Eu tenho a solução para o seu problema imediato.” Continuou X como se nada tivesse acontecido.


”-Dash o que você precisa é de um bom café da manhã!”


X tinha razão e Dash sabia disto.