A
dramática resistência estética em Paupéria
Ao refazermos a trilha labiríntica de
Torquato Neto em seu caminho, guiamo-nos por um fio condutor
que perfaz o conjunto da obra do poeta & artista performático
- o estilhaçamento e deslocamento de um "eu –sujeito"
fragmentado, seja na poesia & estética artística,
seja em sua vida íntima, social e política - o
"anjo torto de Paupéria".
"Quando eu recito ou quando eu escrevo,
uma palavra – um mundo poluído – explode
comigo & logo os estilhaços desse corpo arrebentado,
arrebentado, retalhado em lascas de corte & fogo & morte
(como napalm), espalham imprevisíveis significados ao
redor de mim: informação. Informação:
há palavras que estão no dicionário &
outras que eu posso inverter, inventar.
Todas elas juntas & à minha disposição,
aparentemente limpas, estão imundas & transformaram-se,
tanto tempo, num amontoado de ciladas. Uma palavra é
mais que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão
no mundo como está o mundo & portanto as palavras
explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada, um som
é um gesto, cuidado. Vida toda linguagem(... )No princípio
era o verbo, existimos a partir da linguagem, saca? Linguagem
em crise igual a cultura e / ou civilização em
crise – e não reflexo da derrocada. O apocalipse,
aqui, será apenas uma espécie de caos no interior
tenebroso da semântica. Salve-se quem puder..."(NETO,
Torquato. Os últimos dias de Paupéria. Org. Wally
Sailormoon e Ana Maria S. de Araújo Duarte - Ed: Eldorado,
Rio de Janeiro. Pág. 79. 1973.).
Alguns dados biográficos são
imprescindíveis para que compreendamos certas peculiaridades
de seu rumo:
"Ao nascer no dia 9 de novembro de 1944,
em Teresina, Piauí, Torquato Pereira de Araújo
Neto, filho do promotor público Heli Rocha Nunes e da
professora primária Maria Salomé da Cunha Araújo,
mostra desde cedo uma propensão à literatura.
Escritor precoce e compulsivo, já aos 9 anos escreve
a primeira poesia - o "menino-poeta" ensaiava assim
o seu destino:
"O meu nome é Torquato
O de meu pai é HELI
O de minha mamãe SALOMÉ
E o resto ainda vem por aí".
(KRUEL, K. Torquato Neto ou a carne seca é servida: Um
roteiro biográfico. Teresina: Mimeógrafos. Pág:
2.1992).
Ao passar nas provas do exame de admissão
ao ginásio, com 11 anos, pede à mãe um
presente - as obras completas de Shakespeare - isto assusta
Dona Salomé, pois achava tais tipos de leitura muito
ousados para crianças naquela idade.
Torquato contra argumentava: "... é
só ler com atenção que a gente compreende..."
(KRUEL, K. Torquato Neto ou a carne seca é servida: Um
roteiro biográfico. Teresina: Mimeógrafos. Pág.
2.1992).
Torquato Neto, ao completar 15 anos, deixa
Teresina. Vai para Salvador cursar o científico - desejava
ser diplomata. Ao sair de um sítio provinciano, jovem
- logo começa a sentir o "ar criativo" da cultura
baiana. Amplia as amizades, pois foi estudar na mesma escola
de Gilberto Gil, lá se aconchega dos irmãos Caetano
Veloso e Maria Bethânia. Neste clima de euforia artística,
Torquato descobre a obra dos poetas João Cabral de Melo
Neto e Carlos Drummond de Andrade:
"Quando saí de Teresina, os poetas
que eu conhecia eram aqueles dos textos da escola: Castro Alves,
Gonçalves Dias etc. A poesia moderna eu não conhecia
nada. Naquela época, no Piauí, nós não
tínhamos acesso a isso. Na Bahia eu tive contato imediato
com essas coisas, como Carlos Drummond de Andrade.
Drummond foi o cara que mais me interessou, logo de cara. Me
impressionou, sei lá. Aí eu fui lendo João
Cabral de Melo Neto, a secura do engenho, da Faca, coisa seca,
agreste de Cabral. Depois li outros poetas etc..." (KRUEL,
K. Torquato Neto ou a carne seca é servida: Um roteiro
biográfico. Teresina: Mimeógrafos. Pág:
5. 1992).
Interposto às diversidades de temas,
estilos e vozes que compõe a sua obra, compartilhada
à vida fragmentada pela angústia e o drama existencial
vivido em "Paupéria" - Torquato Neto alinha-se
à linhagem dos românticos malditos. A singularidade
de seus versos representa uma dramática tensão
entre o eu lírico e a cultura daquela época -
anos 60 e 70. Nos múltiplos tipos de atividades que participa
sempre desponta como um ser mutante, envolve-se com as coisas
e por elas também é envolvido.
No meado da década de 60 chega ao Rio
de Janeiro para cursar jornalismo. Não se forma, mas
exerce a profissão de jornalista em alguns periódicos
cariocas. Faz alguns "Frilas" no suplemento Plug,
do Correio da Manhã. Colabora no suplemento cultural
O Sol, do Jornal dos Sports, para meses depois trabalhar em
uma agência de notícias internacional, localizada
no aeroporto do Galeão, junto com o jornalista &
escritor Elio Gaspari. Logo a seguir, é convidado para
fazer uma coluna sobre produção cultural no jornal
Última Hora - a coluna Geléia Geral - no período
71/72, onde defende através de sua ótica rebelde
as manifestações artísticas da vanguarda.
Participa como mentor intelectual das edições
& manifestos artísticos: Presença e Navilouca.
O poeta registra sabores e dissabores na performática
vida que desenha para consigo, e com o mundo político-artístico-cultural
de um país que o entusiasma, ao mesmo tempo em que o
deprime. São os tempos de ferro – fogo & miséria
endêmica vividos pelo Brasil, que o poeta descontrói
& renomeia de "Paupéria" - a verve das
angústias de "uma geração em seus
últimos anos". Neste contexto, deixa sua marca criativa
na poesia, música, cinema, jornalismo e na produção
cultural. Destaca-se como poeta da palavra escrita e cantada.
Suas poesias-letras fazem-no "menestrel do tropicalismo".
Têm várias parcerias e uma "fama clandestina"
- boicotado por suas atitudes limites – sobrevive até
então, na medida do possível de biscates jornalísticos
- sempre através do impossível - mote de sua criação
e comportamento.
Suas palavras cantadas são: Louvação
e Geléia Geral (com Gil), Mamãe Coragem, Marginalia
II (com Caetano), Pra Dizer Adeus e Lua Nova (com Edu Lobo),
Let´s Play That (com Jards Macalé).
Faz parte do álbum que dá início
ao movimento tropicalista - com direito a participação
na fotografia de capa do disco Tropicália ou Panis et
Circensis, em que estão incluídas suas músicas
Mamãe Coragem e Geléia Geral (com Caetano e Gil).
Ao analisarmos o espólio de sua obra
é notório perceber como Torquato alterna uma ativa
militância - ora um intelectual de idéias revolucionárias
que ousava enfrentar a luta mais ferrenha contra o poder político
e os artífices do autoritarismo na linguagem - ora com
momentos de profundas crises existenciais - isto o fragiliza,
aumenta sua insegurança. O recrudescimento do regime
militar pós-68 (AI-5) acaba por determinar o fim do movimento
tropicalista - com as prisões e o exílio de Caetano
e Gil.
A situação de terror e repressão
contra artistas, políticos, intelectuais, líderes
sindicais e estudantis amplia-se assustadoramente, o que provoca
seu auto-exílio na Europa e Estados Unidos na companhia
do amigo, o artista plástico Hélio Oiticica, através
de sua exposição itinerante de arte – Tropicália
– nome do movimento cognato"... eu é que inventei.
Depois o Caetano, que eu nem conhecia, fez a música e
o nome ficou conhecido. De modo que eu inventei a Tropicália
e eles inventaram o Tropicalismo - Hélio Oiticica".(BRITO,
Jonard Muniz de. Vanguarda de um tigre de papel ?Revista Vozes
(separata). Rio de Janeiro, número 10 .Pág. 65.
Dezembro de 1973.)
Algum tempo depois, sua mulher Ana Maria vai
ao seu encontro. Moraram em Londres e Paris. Quando volta ao
Brasil, no início dos anos 70, liga-se ao eixo experimentalista,
que se estende da poesia marginal ao cinema "udigrudi"
de Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso,
além de conviver com semioticidade poética dos
concretistas Décio Pignatari e os irmãos Campos.
É considerado filósofo do movimento tropicalista,
ao lado de Gil, Caetano e Capinam. Todo o virtuosismo multidimensional
e experimental de sua produção literária
- na prática poética e estética - inclui
Torquato Neto no espírito rebelde & maldito, representativo
à resistência na poesia brasileira.
As vertentes contextuais de seus escritos em
"Os últimos dias de Paupéria" incrementam
o conteúdo da solitária edição deste
livro, organizado & publicado em 1973, após a morte
trágica do poeta – suicídio por inalação
de gás - em 1972, aos 28 anos. Toda a edição
da obra ficou a cargo de seu amigo Waly Sailormoon e Ana Maria
Silva de Araújo, viúva de Torquato. Houve uma
2ª edição ampliada, publicada em 1982, pelos
mesmos Waly e Ana. O livro tornou-se uma raridade no mercado,
seu "preço de compra" não pode ser dimensionado,
pois virou uma preciosidade literária restrita a colecionadores.
A poética de estilhaços comprova as "explosões"
estéticas na poesia. Ao utilizar as aglutinações
semânticas na palavra "Paupéria",
o poeta promove a junção de dois signos presentes
na desconstrução da linearidade lexical. Une em
um só signo a força explosiva da semântica
partida; presente no signo prefixo "pau", indicador
contextual à violência daquela época de
nossa história e o signo sufixo "éria"
"miséria", referente às condições
econômicas & sociais de um país estagnado pela
pobreza social, estética e cultural, estes signos interligados
pela consoante de ligação "P", fio condutor
do eixo parodístico da intertextualidade - referência
ao signo "Pompéia" - antiga cidade romana destruída
pela força de um vulcão. Cidade em que viviam
artistas, músicos, filósofos e "prazerosos
vagabundos", que em seus muros e paredes guardavam a força
da linguagem popular do "latim vulgar". "Um tesouro
lingüístico" para o estudo da origem da língua
não padrão de Roma. Todos estes elementos guiam-se
pela virada crítica e experimental propostas na linguagem
poético-estética do "anjo torto tropicalista",
implícita e explícita no sarcasmo & na ironia
de seus poemas, letras-musicais, filmes & argumentos jornalísticos
- uma procura constante de sempre se dimensionar no limite,
tanto no comportamento artístico, como no pessoal - nas
fronteiras do impossível, a beirar o abismo da linguagem
& da vida.
São estes universos de experiências em linguagem
verbal & não verbal que o conduzem a um texto limítrofe
entre "vida & morte", acrescido pelos conflitos
existenciais pertinentes à tensão dramática
do poeta; a crítica presente na "práxis aisthétós"
de suas manifestações artísticas.
A poesia de resistência ligada ao engajamento
político ideológico das esquerdas revolucionárias
- perfil contextual do poeta no limiar de sua vida poética
- é o "mote inicial" de sua palavra cantada.
Adere e assume os comandos da ruptura formal
& estética impostas pelo modelo experimentalista
que busca reforço nos modernistas de 22, principalmente
em Oswald de Andrade - com sua proposta desconstrutora - que
se propõe a destruir o mito do engajamento da arte, por
conseguinte do poder de uma ideologia de esquerda, ou não
- aí não era relevante à cor da bandeira
e sim algo mais apropriado – o descondicionamento do discurso
estético da linguagem ligado a qualquer tipo de poder.
A resistência tropicalista é feita por rupturas
formais através de seu modelo, que propõe uma
estética desconvencionada aos matizes de qualquer ideologia
política. As vestes semióticas, indumentárias
de uma expressão antropofágica – fragmentada
& estilhaçada - adquirem os estilhaços de
significados do caos, prazer, carnaval, anarquia, etc., formalizam
um "corpus textual despedaçado", desmistificado
& desmitificado das visões de esquerda ou direita,
do bem ou do mal. A forma, isto é, a estética,
assume a função transformadora e rompedora das
barreiras da linguagem autoritária do poder, comprovados
nos diálogos de discursos opostos, presentes nos versos
de sua letra–poesia, "Geléia Geral".
Sempre impaciente, o profeta do silêncio,
como o escorpião, esse ícone semiótico
destrói o tropicalismo, ao exterminá-lo com sua
própria malignidade: "Um escorpião encravado
/ na sua própria ferida / não escapa".(NETO,
Torquato. Os últimos dias de Paupéria. Org. Wally
Sailormoon e Ana Maria S. de Araújo Duarte – Ed:
Eldorado,Rio de Janeiro. Pág. 89. 1973.).
Torquato agarra-se aos rumos BARTHESIANOS:
"A linguagem é uma legislação,
a língua é seu código. Não vemos
o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda
língua é uma classificação, e que
toda classificação é opressiva (...) Arremata,
a linguagem e o fascismo. A língua, como desempenho de
toda a linguagem, não é nem reacionária,
nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois
o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar
a dizer".
(BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. Cultrix:
São Paulo. Pág: 12. 1978.).
É uma tentativa ampliada de sobrevivência
à violência causada pelo recrudescimento do regime
militar e as pressões do esquerdismo engajado. Seu niilismo
assiste ao desencanto da vida como um neo-romântico intempestivo.
O mundo das palavras torna-se o planeta do caos para o performático
poeta.
Antes, podia-se pensar em uma história enredada por uma
literatura com princípio, meio e fim – um processo
teleológico na linguagem literária - restava ali
apenas uma espécie cáustica no macabro mundo da
semântica textual. As palavras fragilizadas não
davam sentido poético ao produtor textual: "Agora
não se fala mais, toda palavra é uma cilada".
(NETO, Torquato. Os últimos dias de Paupéria.
Org. Wally Sailormoon e Ana Maria S. de Araújo Duarte
- Rio de Janeiro: Max Limonad. Pág. 97, 1973.).
Era no "espaço-poliédrico"
& cavernoso do hospício, a cela escura daquele mundo
- a loucura – a habitação daqueles que repudiavam
a instituição total da linguagem contaminada pelos
dos "falsos poetas e artistas", filhos do sistema.
Assim, "os lite-ratos marginais e subversivos" foram
caçados e internados nas prisões e hospícios:
"Os literatos foram todos para o hospício",
(NETO, Torquato. Os últimos dias de Paupéria.
Org. Wally Sailormoon e Ana Maria S. de Araújo Duarte
- Rio de Janeiro: Eldorado. Pág. 97, 1973.).
Começava-se a desintegrar o seu conceito de arte e texto.
Não havia mais uma estrutura acabada e harmônica.
Rompiam-se as noções textuais, cenários
da linguagem explícita, estilhaçava-se a linearidade,
algo além do fragmento modernista, era a poética
dos estilhaços, desaglutinações & aglutinações
no interior das palavras, apropriações extradiegéticas
reescritas com outros significados - a palavra poliédrica
e suas multifaces a estilhaçar significados, estas manifestações
acabaram por deslocar a forma de se entender o objeto artístico,
uma estética não em termos de leitura, mas de
prazer estético, com humor e ironia associados aos refugos
da identidade nacional dominante, tal como Chacrinha, miss Brasil,
etc. O importante seria o leitor curtir o texto. A semiótica
ocupa o espaço da semântica textualizada, estilhaça
a palavra em imagens, embora seja a representação
de uma curtição sofrida e silenciosa.
Vale ressaltar que Torquato, apesar de toda a força criativa,
sucumbe ao cruel contexto histórico-existencial que vive.
No próprio corpo maculado grafa o tema de sua poesia,
o drama do escorpião suicida.
Deve-se dizer que no conteúdo de sua
carta despedida da vida, garante a si a dádiva do poeta,
"o silêncio". Seu suicídio, no dia em
que completava seu 28º aniversário, pasmeia a todos,
até os que o rejeitavam. Torquato voltava de um jantar
com Ana. Ele tranca-se no banheiro e liga o gás, enquanto
ela dormia. No dia seguinte foi encontrado morto pela empregada.
Deixa um bilhete de despedida que dizia:
"... Parto silenciosamente. Tenho saudade,
como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia
de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto
durar. Pra mim, chega! Peço mais uma vez silêncio.
Thiago pode acordar...". (PIRES, Paulo Roberto. TORQUATÁLIA:
obra reunida de Torquato Neto, Rio de Janeiro: Rocco. Pág.
404, 2004).
10 de novembro de 1972 - O Brasil perdia um de seus maiores
e mais geniais poetas. Torquato Neto viveu com a mesma intensidade
dos seus versos e escritos, rompeu as fronteiras entre arte
e realidade, entre sujeito e objeto, sua obra é o reflexo
da crise de um sujeito – não a simplória
degradação, e sim a sua descentração
em meio à fragmentação da identidade cultural
da sociedade no capitalismo tardio".
"... Neste final de século fala-se
em crise de identidade do sujeito. O homem da sociedade moderna
tinha uma identidade bem definida e localizada no mundo social
e cultural. Mas uma mudança estrutural está fragmentando
e deslocando as identidades culturais de classe, sexualidade,
etnia, raça e nacionalidade. Se antes estas identidades
eram sólidas localizações, nas quais os
indivíduos se encaixavam socialmente, hoje elas se encontram
com fronteiras menos definidas que provocam no indivíduo
uma crise de identidade".(HALL, Stuart. A identidade cultural
na pós-modernidade-10. Ed – Rio de Janeiro: DPNA,
Contracapa, 2005.).
Nosferato
EM SUA MORDIDA
CRAVA SEUS DENTES
& SE ETERNIZA
"let's play that..."
A vida em liquidação Liquida
– líquida... gente