Necrólogio
de um gênio
(Rogério Sganzerla*)
O
Terceiro Mundo está de luto. O “homem da metralhadora giratória”,
de tão bons e importantes momentos de nosso cinema, expirou no
mês tradicionalmente trágico e fatídico para nossa vida nacional.
Com ele, expira um dos capítulos mais inspirados (e agitados)
do audiovisual brasileiro. Homem-chave da cultura, político e
agitador cultural dos mais precoces, o autor de “Deus e o diabo
na Terra do Sol”, realizado no sertão de Cocorobó em 1963, nos
deixa arrasados, em completo desamparo físico e espiritual. Sem
dúvida, o Brasil perde um de seus mais ilustres brasileiros. Justamente
aquele que melhor representou-o lá fora, desde o impacto de “Barravento”,
em Karlovy-Vary – 1963, à aclamação de “Deus e o Diabo” e “Terra
em Transe”, em Cannes – 1964 e 1967 que juntamente com “Idade
da Terra” – incompreendido no Brasil e no mundo no ano passado
– compõe sua trilogia sobre a relação do novo homem com a terra
que o alimenta e o consome, dialeticamente um marco da cultura
equatorial do Terceiro mundo. Trata-se de uma tragédia para a
própria evolução da linguagem cinematográfica, assim como fora
o desenlace de sua irmã Aneci Rocha, em 1977, no mesmo bairro
de Botafogo. Muita falta fará sua voz, que revolucionou nossa
ética estética e a razão de ser de uma arte industrial tão desprotegida
pelas autoridades desde que foram feitas as primeiras projeções
de imagens animadas numa sala da rua Ouvidor, no final do século
passado.
Herói e mártir da cultura nacional,
por assim dizer, Glauber, como todo gênio (a palavra cabe-lhe
como um côvado sagrado), com todos seus excessos e virtudes, viveu
intensamente os altos e baixos períodos (ou marés... navegando
pelo audiovisual como o peixe mais raro do lago maldito do subdesenvolvimento;
nascido como Castro Alves, sob o signo crístico de Peixe, místico
e misterioso como propõe seu nome em alemão: “enviado de Deus”...
eis um mensageiro altaneiro de uma nova ordem, referindo-se ao
novo homem, clamando por uma nova humanidade). Poeta condoreiro
e reformador social, cantou a alegria e a tristeza dos tristes
trópicos, de beatos e romeiros, cangaceiros e jagunços, do pescador
ao conquistador. Pela sua própria conformação étnica e localização
geográfica (nascido em Conquista, no ano em que mataram Lampião),
Glauber assemelhava-se a um cangaceiro. Marcante como sua forma
de andar, falar e tocar as pessoas, foi beneficiado pela inteligência
– algo que vale a pena ser vivido -, que é uma questão de delicadeza
e vice-versa, como lhe afirmei na última vez que estive com ele
frente ao laboratório, também em Botafogo, onde nasceu (e morreu:
hoje desalojado) – o novo cinema brasileiro que tanto sucesso
fez na Europa... Exaltação e depressão fazem parte mesmo da história
do país de dores (e doutores) anônimos. Com Glauber, seguramente
acaba uma época de ouro do cinema; direta ou indiretamente, devemos-lhe
tudo nas últimas duas décadas. Foi-se embora o concertista-mor,
artífice de brilhantes óperas-cinematográficas, arranjador, encenador
e coreógrafo do estranho balé do subdesenvolvimento. Que a nova
geração ainda não teve chance de assistir na tela grande ou pequena.
Sobretudo aqueles concertos feitos com poucos recursos materiais
e “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”, com extrema criatividade
na sua juventude na Bahia. No final de sua fulgurante carreira,
pobre, só e esquecido em Sintra, contraiu a moléstia do romantismo:
em seu peito inflado por nacionalismo contundente abrigou-se a
doença que consumiu Castro Alves (seu correspondente direto),
Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Noel e muitos outros verdadeiros
parâmetros de uma nova ordem, insuspeitada até então por outros
brasileiros. A noção de martírio cultural serve para definir a
importância desse homem sem profissão (cineasta) em um país ocupado,
sem memória ou respeito para com seus maiores criadores, infelizmente
infelicitados ou impedidos de exercer seu ofício ou circular sua
produção. Além de comunicador e polemista, perdemos um escritor,
tabu incompreendido ou usado pelo conformismo, que praticamente
morreu de fome (inflexível na sua posição estética), enquanto
o cinema que ele construiu consome-se na acumulação de bens segundo
um modelo novo-rico, sem compreendê-lo ou ampara-lo devidamente
naquele exílio na rota de Sintra, que um dia levou Eça de Queiroz,
de quem era admirador, às veredas literárias com seu primeiro
romance. Glauber, depauperação pela fome, continua desterrado
em seu próprio país, como a maioria dos brasileiros, enquanto
o “National Film Board” inicia uma retrospectiva de seus filmes
em Londres. Assim, ele agonizante e proscrito embarca como “outsider”
famoso na Europa, mas esquecido por seu público, para morrer como
herói no Brasil.
Injusto às vezes, mas procurando
justiça, agressivo mas delicado, intolerante mas propenso ao diálogo
(ao contrário do cinema que um dia foi novo) serviu-o como um
recruta do absurdo, cidadão do conhecimento unificado, imperador
das artes. É fundamental a relação entre S(ua) M(ajestade) Eisenstein-Glauber,
sendo aquele, pelo menos para mim, o maior cineasta de todos os
tempos. Glauber, gostávamos muito de você, mesmo quando abusava
de sua autoridade... e você não sabia disso... Você que fez nosso
cinema de valor, cujo aniversário coincide com o de Castro Alves,
poeta condoreiro como você cujo(s) destino trágico coincide com
o grande Camões, sabe talvez que “para o Santo não existe acidente”,
salvo para a burguesia e “um tiro disparado sem querer”, como
no caso de Alves, significa culpabilidade por parte de falsos
amigos ou pessoas que não estiveram à altura. A altura, inclusive,
de sua generosidade, talento e erudição; o trágico desenlace (chegou
envenenado pela medicina alopática) confirma a oposição registrada
com tanta propriedade (a tese ecumênica de “Idade da Terra” é
perfeita) como realidade política do próximo século: a terra dividida
(ainda mais...) entre os pobres e ricos. Você que nasceu e morreu
pobre, contribuiu para enriquecer infinitamente nosso cinema,
no bom e no mau sentido, continua incompreendido, injustiçado,
sacrificado como sua maravilhosa irmã Aneci, que você chamava
de “cangaceira”, e o próprio Capitão Galdino, vítima de “assassinato
cultural”. Sangue derramado em vão ou não (a Cinemateca Brasileira
pretende homenageá-lo com a exibição de todos seus filmes, guardados
com maior carinho, com todo amor – como me diz ao telefone a inconsolável
Lígia Fagundes Telles – “pois só assim o cinema vence a morte”),
trata-se de um martírio que não deve ser capitalizado pela eterna
minoria milionária de desalmados da tela. Glauber morreu paupérrimo,
como exemplo para um anticinema que só pensa em dinheiro hoje,
neste país de contrastes insuportáveis.
Cinema, como a vida, é luz e sombra,
duplo etéreo e projeção das cavernas de Platão. Deve velar pelo
outro lado do homem. Assim, Glauber que fez o novo cinema, parece
finda-lo numa tumba junto à pranteada Aneci, com a dignidade dos
gênios, nobres, gregos, selvagens, desprotegidos excepcionais
e de fibra cristãos-novos, sem a mínima mancha de comercialismo...
Identificados pelo martírio, ungidos pela transação ecumênica,
beatificados pela paz do Espírito Santo de luz-pomba-olho... Pêsames
a Paloma e irmãos. Sobretudo, condolências à dona Lúcia, personagem
shakespereana por excelência.... Nunca mais veremos Glauber, a
não ser nos seus filmes – momentos raros de afirmação da nacionalidade.
Ou então na vida eterna: vai “victis” até a Via Láctea. Adeus,
Glauber, vá se encontrar com Camões, Castro Alves, Aleijadinho,
Tiradentes e Villa-Lobos.
Luto no Terceiro Mundo.
*ORIGINALMENTE
PUBLICADO NA "FOLHA DE SÃO PAULO" EM 24 DE AGOSTO
DE 1981.