Bad
movie ou saudades do Maciel
(Glauber Rocha*)
"Consciências
compradas" é um filme que não será visto
no Brasil. Seu autor, Timothy Anger, fez duas ou três projeções,
queimou as cópias e destruiu o negativo.
Vi a última cópia
no estúdio de Andy
Warhol, em Nova York, e conversei alguns minutos com
Anger. Warhol queria fotografá-lo nu mas Anger, que não
é parente de K. Anger, famoso cineasta underground, recusou
polidamente. É um rapaz altíssimo, nem gordo nem
magro, cabelo castanho e fala sete ou nove línguas. Conversamos
em espanhol e Anger discorreu sobre Jean Vigo antes de começar
a projeção.
O filme era em 16 mm mas tinha partes
em cinemascope. Um outro projetor, com as bobinas scope, disparava
nos momentos indicados por Anger. A montagem em scope é
realista, longa, na base de cenas fixas que duram dez minutos;
a montagem em 16 mm é cheia de fusões, efeitos visuais,
choques de atração, tela dividida, som aleatório
e alguma seqüências em campo/contracampo, faladíssimas,
num jeito que lembra "The Maltese falcon" (Relíquia
macabra, 1941), de John Huston.
O filme dura sete horas e custou
trinta e seis mil dólares. A precisão de Anger,
informando detalhes sobre a produção, especifica
dia, lugar e hora de cada filmagem, o tempo gasto, o preço
diário da produção, suas relações
com a equipe e seus planos de distribuição e publicidade.
Como o filme foi produzido em cooperativa,
Anger tinha nome, endereço, idade de cada acionista anotado
num caderno e calculava quando cada um deveria receber se o projeto
de explorar o filme nos Estados Unidos e no resto do mundo funcionasse.
Explicou no terceiro intervalo da projeção quanto
tempo tinha gasto filmando e depois não falou até
o final. Não pediu a opinião de ninguém,
pegou as bobinas, meteu em duas malas de couro e foi embora.
Uma semana depois Jonas Mekas me
disse que Anger tinha queimado as cópias de "Consciências
compradas" e destruído o negativo.
Ninguém sabia onde ele morava
e o crítico Elliot Stein o procurou em vão pelo
Village.
A primeira meia hora de "Consciências
compradas", em 16 mm, é uma evocação
do cinema russo nos anos vinte mas sem a menor referência
política. Anger não demonstra interesse pela revolução
de Lênin e filma um ator moreno gordo declamando poemas
líricos de Maiakovski com
voz de falsete prolongando o fim do verso até perder o
fôlego. Enquanto o ator recitava vemos "sobre-impressões"
azuis de cartazes da época, mas os títulos estão
riscados. Em seguida, se me lembro bem, tem umas cenas de Eisenstein
almoçando com Chaplin em Hollywood, filmadas por um cinegrafista
anônimo. O ator que recitava Maiakovski reaparece olhando
fotografias de "O Encouraçado Potemkin" (Bronenozets
Potiomkin, 1925) e por aí Anger se entrega a uma série
de jogos que diferem muito de tudo quanto eu tinha visto antes.
A técnica de "imagem
puxa imagem" parece gratuita mas logo descobrimos um extremo
rigor secreto que tudo controla independente da própria
razão do cineasta. As citações a Dovjenko
surgem através de longuíssimas fusões e abruptamente
Anger dispara a primeira bobina em scope que excede as margens
da tela pequena e lança os restos da imagem sobre a parede.
É um plano fixo. A imagem é desfocada e é
difícil distinguir entre aranha ou cangote de mulher. Ouve-se
a voz de Anger, rouca, que fala de sua velhice, detalhando fatos,
seu reencontro com a mãe, um sonho que teve com o pai,
o filho que morreu congelado no Alaska.
Depois de duas horas de projeção
descobri que o filme não tinha música. Apenas vozes
e ruídos. Uma intriga surge na terceira hora de projeção,
na projeção scope, filmada e montada dum jeito que
lembra indiretamente "Ano passado em Mariebd" (L'Année
Dernière à Marienbad, 1961), e, curiosamente,
com som de batucada que Anger me disse haver transcrito de um
disco de Ataulfo Alves.
A intriga fala dum grupo de pessoas
de idade e sexo diferentes. Elas comem, andam e se queixam amargamente
de alguma coisa que não conseguem identificar. Mas não
lembra nem Bergman nem Resnais. O tempo destes personagens, a
técnica de interpretação (Anger explica que
são todos músicos ciganos que ele conheceu no Arizona)
nada sugere. Os resultados desta angústia são obtidos
com a projeção da décima quinta bobina em
16 mm, em preto e branco, que mostra gatos comendo queijo e legendas
em grego. Ouve-se depois a voz de Anger explicando, com gaguejos,
que não tinha a menor pretensão de filmar ou comentar
uma tragédia.
Desde que cheguei tento escrever
alguma coisa sobre Consciências compradas msd não
me recordo muito bem do filme. Tenho impressão ótima
da figura de Anger e sei que ele falou duas ou três vezes
com Adrienne Mencia que o fascismo crescente dentro de cada pessoa
é pior do que o fascismo que nos é imposto. Adrienn
(que dirige a Cinemateca do Museu de Arte Moderna de Nova York)
me contou isto depois que Elliot Stein telefonou dizendo que Anger
tinha sumido de vez e que deixara apenas um bilhete para Robert
Kramer, o autor de "The Edge" (1968) e "Ice"
(1970), um cineasta americano marginalizado da turma underground
do Village porque faz filmes políticos e é considerado
um radical materialista.
Elliot Stein conseguiu o bilhete
facilmente pois Robert Kramer não deu muita importância
ao fato e nem entendera o gesto de Anger, considerado por ele
um chato experimentalista.
O bilhete, segundo traduziu Adrienne
do inglês para o italiano, dizia que um filme é sempre
um bad movie.
Consciências compradas, pelo
que pude sacar naquela noite, não era um bad movie. Mas
posso entender a jogada de Anger. Lembro-me que ele se confessou
metodicamente culpado de usar meios de expressão para se
comunicar com outras pessoas que poderiam acreditar nele.
Disse que a posição
do espectador é servil pois está sempre submetido
a uma comunicação que fala do Autor e não
Dele.
*Texto originalmente publicado no livro "O Século
do Cinema", Glauber Rocha. Editora Alhambra, 1985.
(Glauber também é
genial escrevendo uma vez que produziu mais linhas que fotogramas;
este texto é o antídoto contra as consciências
compradas ou explica porque o brasileiro paga pra trabalhar ao
invés de "gastar" este tempo instruindo-se)...