Um
Concerto de Gilberto Gil
(Sérgio Sant’anna*)
Roupa simples, barba feita, cabelo
quase curto, Gilberto Gil entra no palco com os músicos,
sem espalhafato. 1972: uma nova era, uma nova imagem. O local
é o velho teatro Francisco Nunes, já que o Palácio
das Artes parece ter sido reservado exclusivamente aos acontecimentos
do século dezenove. A acústica do Chico Nunes é
reconhecidamente ruim, mas o equipamento e os músicos que
vieram com Gil superam tudo. É o que o público –
ocupando apenas metade do teatro (a super-star é Caetano)
– logo fica sabendo, quando Gil, Lanny (guitarra), Moreno
(bateria), Antônio Perna (piano) e Bruce Henry (baixo) atacam
com tudo que sabem. E como sabem.
Logo depois, Gil fica sozinho e
conversa com o público. Falando pouco, explicando só
o necessário. Cara limpa (careta), gestos comedidos, estamos
já muito longe dos tempos do tropicalismo. O novo Gilberto
Gil, muito diferente do que a adoração-adulação
(racismo?) baianas fariam supor. O vice-deus (!) quis apenas dar
um concerto de música. Talvez o melhor concerto que a cidade
já assistiu.
Cantando sozinho, com seu violão,
Gil é agora um músico em plena maturidade. Seus
sucessos antigos, recriados. PROCISSÃO, cujos tempos já
vão longe e ninguém poderia esperar uma ressurreição
de tal ordem. AQUELE ABRAÇO, tão sumida que já
parecia sugada até as tripas. Mas não. Como um músico
de jazz. Gil vai atravessando uma fase em que pode desenvolver-improvisar-recriar
uma música te o infinito. Gil saindo da faixa do puro consumo
e desse jeito não vai caber nem em disco.
E vem as músicas novas: ORIENTE,
EXPRESSO 2222, O SONHO ACABOU, antes mal gravadas num pequeno
disco que saiu com a “Bondinho”. E só então
dá pra perceber o recado inteiro de Gilberto Gil. Principalmente
o recado musical (O BOM JOGADOR NÃO ENGANA A GERAL).
Andanças por Londres, sem
ser absorvido, como os primeiros tempos de Caetano e Gil por lá
quase fizeram supor. Andanças por Londres que acabaram
por provocar um retorno à Bahia, embora os tresloucados
queiram fazer agora, da Bahia, Londres e Meca, o que terminará
mandando os bons baianos de novo a Londres, para redescobrir a
Bahia. Processos intricados e sutis da existência.
E uma nova polêmica vai surgindo
(é sempre estimulante uma polêmica). Reações
justas contra a santificação dos baianos, mas que
podem também levar a um burro preconceito contra eles.
Os revolucionários de ontem são os reacionários
de hoje. De qualquer modo, desculpa-se sempre o povo, que tem
necessidade de criar seus mitos (egos-auxiliares), para depois
muito justamente malha-los. Porque a super-estrela sempre acabas
por se tornar, voluntariamente ou não, um ditador de consciências.
Mas o que não se desculpa são aqueles aparentemente
mais esclarecidos e que fazem agora um jogo maroto. Destruindo,
tirando o corpo fora daquilo que eles próprios foram cúmplices,
com a finalidade de vender jornais da moda.
O que é preciso, para assistir
qualquer espetáculo, é desarmar-se dos moralismos,
preconceitos e imagens residuais e simplesmente ligar-se. Quem
fez isso, no concerto de Gilberto Gil foi embora pra casa melhor
do que entrou no teatro.
Desarmados, pois, é que assistimos,
na segunda parte do espetáculo, um momento quase carismático
quando Gil cantou sozinho ORIENTE (verbo orientar) par um público
que não quer mais ser macaco de festival. E o que aconteceu
foi gente inventando silêncio do silêncio, se afundando
nas velhas e rangedoras cadeiras do velho teatro. Enquanto Gil
desenvolvia uma verdadeira aula de utilização de
microfone. Profissionalismo, no seu melhor sentido. SE ORIENTE,
RAPAZ.
E quando voltam os músicos,
o público já está amaciado para o que vai
acontecer. Que é o seguinte: o guitarrista Lanny tirando
um som impossível de seu instrumento. Sem mise-em-scène.
O inglês Bruce Henry, no baixo, casando perfeito com Gil.
E com mise-em-scène: riso, suor e quase lágrimas.
A bateria de Tuti Moreno sempre ali, o apoio exato. E o pianista
Antônio Perna, sem trocadilho, tocando de pé seu
piano, rindo de prazer, orgasmo. Um espetáculo poxa, em
que os músicos não estão com cara de “já
ta ficando tarde e eu quero ir embora pra casa”.
É o que aconteceu, durante
quase três horas. Som, do melhor, enchendo o vácuo
entre as paredes e fugindo até lá fora. Som confiante
e sem medo dos conceitos e preconceitos. O que é velho
sendo subitamente novo, CHICLETE COM BANANA, Jackson do Pandeiro,
mais uma redescoberta na revisão do passado da música
brasileira. O CANTO DA ERMA, etc.
E o novo daqui e lá de fora:
UP ON THE SKIES (Jimi Hendrix), I CAN’T FIND MY WAY HOME
(Steve Winwood), a CULTURA E A CIVILIZAÇÃO, ORIENTE,
EXPRESSO 2222. (Gilberto Gil). E já com as portas do teatro
abertas, pra entrar a turma que ficou lá fora no sereno,
BACK TO BAHIA. Um p/ dum rock, tradicional-radical, pra não
se perder as memórias e referências. Rock-Cely Campello.
Gilberto Gil sabendo que tudo o que acontece é acontecimento,
sem juízo de valor. E considerado, embora sem sujeição.
Gilberto Gil – 1972. Uma indicação das coisas
que ainda estão por vir.
Gil
na Geléia Geral
(Carlos Ávila*)
gilberto
gil em concerto
teatro-hangar francisco nunes
1/2/3 abril
novo
show : novo som
gil volta de um giro pelo exterior
de uma maneira mias completa
mais total
dentro
do novo universo musical de gil
há lugar reservado para tudo:
rock baião jazz samba e tudo o mais
principalmente “free music”
vinda gil
existe “um cantar não discursivo
como se a palavra se eletrificasse”
observação precisa de hélio oiticica
em artigo pra extinta flor do mal
além do mais gil aprendeu e apreendeu
juntamente com caetano
a poesia concreta
através de augusto de campos
(lembram-se de batmacumba?)
no
show gil tem um repertório : 31 músicas
escolhe umas quinze e canta
cada dia é diferente
não há marcação
tanto pode aparecer gil cantando aquele abraço
como i can’t find my way home
é o acaso
novo necessário
num lance de dados
num toque de dedos nas cordas da guitarra
ou do violão
o
sonho acaba
a gente sai do sereno
segue a procissão domingo no parque
comendo chicletes com banana
e tomando maracujá
e depois se pega e entra e senta e anda
no expresso 2222
que parte par a oriente
imaginado de sargeant pepper’s
“o
gil é um cara músico pra burro, dos cantores
- e eu já tive muita experiência com muito cantor
e compositor – estou pra ver um cara
igual ao gil, como músico, ele sente
a coisa, e quando a música é dele então,
nem se fala”.
(rogério duprat, papo com a. de campos, 1971)
aplicando
a classificação de ezra pound
(inventores, mestres, diluidores etc.) na música
brasileira atual vamos encontrar gil no início
na linha de frente : os inventores :
“homens que descobriram um novo processo ou cuja
obra nos dá o primeiro exemplo conhecido
de um processo”.
o
show de gil foi acima de tudo
um show de música espontânea e instantânea
*
MINAS GERAIS (Suplemento Literário) 15 abr. / 1972.