A revista de arte outsider que enxerga todos como artistas
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A revista de arte outsider que enxerga todos como artistas
The Huffington Post | De Priscilla Frank
Fonte: http://www.brasilpost.com.br/2016/02/03/-arte-outsider-artistas_n_9149272.html
Publicado: 3 fev. / 2016
“Sempre me interessei pela arte estranha”, explicou ao Huffington Post John Maizels, hoje editor da revista Raw Vision. “Eu viajava e colecionava coisas. Não sabia realmente que isso tinha nome, até que descobri Jean Dubuffet.”
A história soa vagamente familiar. Passei o mês de janeiro, até a Outsider Art Fair (Feira de Arte Outsider), ouvindo os relatos de alguns dos nomes mais influentes nesse campo em franco crescimento.
Considerando que “arte outsider” não era um termo muito usado até 1972, antes dessa época não havia nada que ligasse uma escultura de montagem criada na zona rural do Alabama com um desenho meticuloso traçado num hospital psiquiátrico suíço. Nada a não ser uma certa atração magnética.
“Ninguém tinha conhecimento da arte outsider. Era quase um gênero secreto”, explicou Maizels.
Na década de 1940 o artista e teórico Dubuffet cunhou o termo “arte bruta” para descrever os trabalhos criados pelos chamados artistas primitivos, cujo trabalho não era influenciado pela cultura – eles eram em sua maioria crianças e pessoas com doenças mentais. A definição de Dubuffet era longe de perfeita, na medida em que idealizava uma ingenuidade muitas vezes inexistente.
Mas ela começou a chamar a atenção para o valor da arte que não chegava aos museus, mas era rabiscada sobre guardanapos ou guardada em sótãos. Enquanto isso, no mundo da arte majoritária dos anos 1980, via-se algo que Maizels descreveu como “um cenário mortal”.
“A arte era totalmente dominada pelo conceitualismo”, ele disse. “Naquela época você podia entrar numa galeria e encontrar textos emoldurados nas paredes – nem sequer eram desenhos. As pessoas simplesmente idealizavam ideias inteligentes e mandavam outras pessoas executá-las.”
Esse fluxo de inteligência fria formava um contraste marcante com os trabalhos vibrantes, pessoais, pulsantes produzidos fora do cenário artístico convencional. “De repente, a arte passou a estar fora do mundo da arte. Eram pessoas que realmente sujavam as mãos com tinta. Isso era algo que já tinha virado raridade!”
Fascinado com os trabalhos que chegavam das margens, sem formação artística nem contextualização, Maizels decidiu criar uma publicação para organizar as muitas partes díspares da arte outsider. Como os artistas outsiders geralmente trabalham para eles próprios, raramente com o objetivo de expor ou vender seu trabalho, boa parte do trabalho deles não tinha sido vista, estudada ou vendida. Em 1989, Maizels lançou a primeira edição da Raw Vision, uma publicação dedicada à arte outsider. Ele recorda que o primeiro número teve apenas mil exemplares.
“Foi um trabalho de divulgação”, ele comentou. “Estávamos tentando difundir a notícia da arte outsider.”
Um aspecto crucial da visão que Maizels tinha para a revista era a acessibilidade. Do mesmo modo como as instituições de arte convencionais tendiam a parecer elitistas e pouco acolhedoras, as revistas que circulavam em torno delas, idem. “Naqueles tempos eu podia comprar uma revista de arte – para começo de conversa, não havia imagens nela – e mal ler nada dela. Nossa proposta foi sermos o contrário. Muitas imagens e textos que se podia ler de verdade.”
Quando Dubuffet cunhou a expressão Arte Bruta, ele definiu o gênero como trabalhos “produzidos por pessoas intocadas pela cultura artística, em que a imitação exerce pouco ou nenhum papel (contrariamente às atividades de intelectuais). Esses artistas extraem tudo de suas próprias profundezas, não das convenções da arte clássica ou que está na moda.”
Em 1972, Roger Cardinal descreveu o artista outsider como sendo uma pessoa “possuída por um impulso expressivo” e que “externa esse impulso de maneira não monitorada, desafiando a contextualização da história artística convencional”. A definição tinha se afrouxado um pouco desde os tempos de Dubuffet, levando em conta que os artistas não precisavam sofrer de doenças mentais para sentirem uma compulsão criativa inescapável.
“A definição vem se ampliando ao longo dos anos”, disse Maizels. “Hoje ‘arte outsider’ quer dizer qualquer coisa um pouco fora do comum. Não estou dizendo que essa definição esteja errada, mas qualquer coisa que fuja um pouco do mainstream pode ser arte outsider.” Maizels não está muito preocupado com a terminologia que designa quem é outsider ou não. “Cada ser humano, sem exceções, é artista em algum momento”, ele conclui.
MUSEUS
BIBLIOGRAFIA
Queimando as imagens loucas atiradas em todas as direções pela explosão (detalhe).
O recluso Henry Darger, que ficou órfão ainda na infância, passou seus primeiros anos numa instituição em Chicago e boa parte de sua vida como carregador em um hospital, vivendo sozinho num quarto alugado barato. Totalmente isolado, explorava seu mundo interior febrilmente, escrevendo e desenhando.
A História das Garotas Vivian nos Chamados Reinos do Irreal, da Tempestade de Guerra Glandeco-Angeliniana, Causada pela Rebelião das Crianças Escravas, é um épico em 15 volumes sobre uma guerra entre um grupo de crianças inocentes e um bando de donos de crianças escravas. As histórias foram ilustradas usando uma técnica de imagens recortadas de revistas e catálogos, dispostas em enormes paisagens panorâmicas e pintadas em aquarelas delicadas. Algumas chegam a ter 10 metros de largura e muitas são pintadas dos dois lados do papel.
Os temas vão desde cenas idílicas de infância em interiores eduardianos e paisagens floridas e tranquilas até cenas de terror e carnificina em que meninas são mostradas sendo torturadas e massacradas. Darger se incluía na narrativa no papel do protetor das crianças.
Seu legado de milhares de páginas de textos datilografados, encadernados manualmente em volumes enormes, e de centenas de pinturas, foi descoberto pelo dono do imóvel em que ele vivia, pouco após sua morte.
O que de fato preocupa a Maizels em relação ao futuro da arte outsider é a possibilidade de artistas outsiders, com frequência indivíduos vulneráveis que mantêm distância do mercado de arte e sua mecânica rudimentar, serem explorados pelos atores do mainstream. Nas palavras de Maizels: “O grande perigo é que a arte outsider seja consumida pela arte contemporânea”.
A arte outsider já está ganhando valor no mercado, abrindo caminho para museus e inspirando o trabalho de artistas formados. “Os artistas não têm como não se deixarem influenciar por ela”, comentou Maizels. “Só espero que eles reconheçam essa influência.”
No momento em que a arte outsider se aproxima cada vez mais do mainstream, Maizels quer oferecer um “mapa” prático. Esta semana ele está levando seu Outsider Art Sourcebook à Feira de Arte Outsider, com uma linha do tempo do campo da arte outsider, que vem evoluindo rapidamente. Juntamente com o livro, Maizels está apresentando o trabalho dos miniaturistas outsiders Pradeep Kumar e Ben Wilson.
Kumar, que trabalha como bancário no Punjab National Bank, na Índia, esculpe personagens interessantes em palitos de dentes, lembrando as “bonequinhas tira-pesares” da Guatemala. Numa entrevista anterior ao HuffPost, Kumar explicou: “Por ser surdo e parcialmente mudo, eu sempre me sentava na última fileira na sala de aula e não entendia o que a professora estava ensinando. Para passar o tempo na sala de aula, comecei a fazer essa arte.”
Já Ben Wilson enfeita chicletes mascados encontrados na rua com abstrações coloridas à moda de Keith Haring. “Ele andava por Londres e pintava flores nos outdoors”, Maizels explicou. “Vivia sendo preso por pintar na propriedade dos outros. Então começou a pintar sobre chicletes na calçada. Quando é detido, ele explica que não está destruindo propriedade alheia, que é apenas chiclete mascado. Por isso há áreas em Londres onde você pode olhar as calçadas e vê-las cobertas de minipinturas feitas sobre chiclete.”
São trabalhos como esses – imaginativos ao extremo, cheios de paixão, de custo baixo, facilmente disponíveis ao artista e a quem vê as obras, que encarnam realmente o espírito da arte outsider. Apesar de seu status atual de gênero que está às margens do mundo da arte, a arte outsider é, em certo sentido, o gênero artístico mais mainstream de todos. Ela não requer qualquer conhecimento prévio de teoria da arte, história da arte ou qualquer outra coisa.
Nas palavras de Maizels, todo o mundo é artista em algum momento. Mas a capacidade de conservar esse impulso vivo é tão rara quanto ouro em pó. No coração da arte outsider, essa tensão entre o universal e o espetacular continua a crescer sem parar. “Todas as crianças são artistas. Criar arte é algo importantíssimo e natural para todas as pessoas. Algumas pessoas simplesmente não deixam isso para trás, como a maioria de nós faz.”
MUSEUS
BIBLIOGRAFIA
Cruz do Inferno nº 2312, 1982
O reverendo Howard Finster foi um pregador obsessivamente evangélico que usava a arte para transmitir mensagens de espiritualidade ao público. Dizia que tinha sido instruído pelo Senhor a converter os dois acres de área pantanosa em torno de sua pequena oficina na Geórgia em um “Jardim do Paraíso”, um ambiente de inspiração religiosa feito do “lixo das outras pessoas”.
Em 1976, inspirado por outra experiência visionária em que um rosto apareceu em seu dedo e lhe mandou “pintar arte sacra”, ele abandonou qualquer outro tipo de trabalho e passou a criar pinturas usando tinta de esmalte sobre madeira, lona e metal. Combinando imagens e palavras para ilustrar textos bíblicos, cada pintura é um sermão, ilustrando a mensagem do Senhor.
A arte de Finster foi ganhando complexidade com o tempo; suas imagens gráficas planas adquiriram elementos mais detalhados, além dos textos evangélicos que eram sua característica. Seus temas também foram se diversificando: suas pinturas posteriores contêm referências a OVNIs e visitantes extraterrestres, Elvis Presley, guerra e política, além de incontáveis evocações bíblicas.
Finster trabalhava em ritmo veloz, produzindo milhares de trabalhos que eram cuidadosamente enumerados –dos mais complexos objetos pintados a figurinhas chatas de madeira que ele produzia em grande escala com a ajuda de sua família.
MUSEUS
BIBLIOGRAFIA
Grupo de deuses, meados dos anos 1970
Nek Chand Saini passou a infância e juventude na região que hoje é o Paquistão, mas em 1947, com a Partilha da Índia, foi obrigado a fugir com o resto de sua família hindu. Homem profundamente espiritualizado, Chand era fascinado pelo significado místico das pedras.
Em 1958, quando trabalhava como inspetor de estradas na nova cidade de Chandigarh que estava sendo construída por Le Corbusier, ele começou a colecionar pedras de rio de tamanhos e formatos diferentes, além de materiais de lixo industrial. Trabalhou em segredo durante 18 anos para criar o que viria a tornar-se o Jardim de Pedra (ver pág. 235), que ocupava uma área de 13 acres quando foi inaugurado, em 1976.
Chand ficou conhecido pelo magnífico Jardim de Pedra, onde instalou mais de 2.000 esculturas, e centros de coleta foram criados para ele em Chandigarh para receber materiais. Usando materiais reciclados como assentos de bicicleta descartados, garfos e molduras de armações, ele formava uma massa com um misto de cimento e areia.
Então as figuras eram recobertas de uma camada final de cimento puro, finamente polido, combinado com materiais pegos do lixo, como pulseiras de vidro quebradas, pedaços de louça e dejetos de ferro de fundições. Além de suas figuras de concreto, Chand criou figurinhas de argila e centenas de “bonecas de pano” gigantes feitas de pedaços de pano colorido descartado.
MUSEUS
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Mulher, 1982
Johann Hauser foi membro fundador do Haus der Künstler, em Gugging, Áustria, e um de seus artistas de maior sucesso. Ele começou a desenhar nos anos 1950, incentivado por seu psiquiatra, o Dr. Leo Navratil, e desenvolveu seu estilo próprio.
Fazia uso poderoso da forma e da cor, mas seus materiais preferidos eram os lápis de cor. Desenhando com grande intensidade, criava uma impressão de pintura. A pressão forte que aplicava deixava marcos e ocasionais rasgos no papel, mas em outros momentos seu trabalho era calmo e contido, limitando-se a um objeto ou forma.
Para Navratil, essa diferença era decorrente dos contrastes entre as fases maníaca e depressiva de Hauser, em que suas dramáticas mudanças de estado de ânimo eram transferidas para o papel. O tema favorito de Hauser era a figura feminina, sexualizada pela ênfase sobre sua feminilidade e traços físicos.
Esses desenhos intensos, com fortes contrastes de tom e traçado pesado, estão entre seus trabalhos mais marcantes. Quando estava sob o efeito de outros estados de ânimo, ele escolhia motivos visuais simples como aviões, foguetes e uma estrela azul, que tornou-se o emblema do Haus der Künstler.
Hauser só sabia escrever seu próprio nome, e sua assinatura tornou-se uma parte importante de suas composições.
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Pesca milagrosa do coturno de Thalie, c. 1954
Aloise Corbaz foi uma mulher culta e educada que trabalhou como tutora particular na corte do Kaiser Wilhelm II, na Alemanha, dando aula às filhas do pastor do rei. Antes disso, ela sonhava em tornar-se cantora. Ao desenvolver uma paixão cega pelo Kaiser, seu estado mental ficou cada vez mais instável.
Ela foi levada de volta à Suíça e internada em um sanatório em Lausanne, onde recebeu o diagnóstico de esquizofrenia paranoide. O diretor do hospital, Hans Steck, e sua sucessora, Jacqueline Porret-Forel, incentivaram Aloise a pintar e escrever.
Ela começou por ilustrar textos românticos, mas em pouco tempo desenvolveu um estilo próprio de desenhar, usando lápis de cor. Muitos de seus primeiros trabalhos foram feitos sobre folhas de papel dobradas ou cadernos de desenho e giram em torno de um casal romântico ou uma figura feminina isolada.
As cores escolhidas são tons quentes de rosa e vermelho, formando um contraste com os poços azuis vazios dos olhos das figuras. Seus trabalhos posteriores são menos complexos em sua composição, mas incluem imagens mais ousadas e uma gama de cores mais forte.
Dubuffet disse que Aloise não era louca, mas fingia ser. Para ela, Aloise tinha se curado por ter deixado de de opor resistência à sua doença. Ela a cultivou e utilizou; com o tempo, converteu a doença em uma razão instigante para viver.
MUSEUS
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Figuras sem título esculpidas em fósforos, 2010
Filho de uma professora do ensino médio, Pradeep Kumar crescer em Narwana, cidade pequena do Estado de Haryana, na Índia. Ele nasceu surdo e parcialmente mudo. Tendo percebido seu talento inato desde muito cedo, seu pai estava determinado a lhe dar uma educação.
Superando todos os obstáculos, Kumar foi enviado à escola, onde se saiu excepcionalmente bem. No momento, trabalha numa função administrativa no Punjab National Bank, em Narwana. Kumar desenvolveu sua habilidade artística sem qualquer tipo de estudo formal, desenhando e pintando sempre que se sentia isolado e criando complexos relevos figurativos com pedaços de lata.
Boa parte de seu trabalho bidimensional é feito de giz esculpido em figuras miniaturizadas cuidadosamente observadas. Kumar é famoso principalmente por suas figuras feitas de fósforos, que ele entalha com lâmina, acrescentando cores para acentuar os detalhes minúsculos.
Essas obras-primas em miniatura, que incluem aves e homens e mulheres trajando roupas elaboradas, lhe valeram muito respeito na Índia. Por sua contribuição para o mundo da arte e da cultura, Kumar já recebeu diversos prêmios e honrarias, incluindo o Prêmio Vermelho e Branco de Coragem, o Prêmio do Estado de Haryana e o Prêmio de Melhor Artista com Deficiências.
MUSEUS
BIBLIOGRAFIA
Carruagens dos Deuses: Rodas de Fogo, 2007-2008
Norbert Kox nasceu em Green Bay, Wisconsin. Enquanto era membro da notória gangue de motoqueiros “Outlaws”, ele começou a trabalhar customizando motos e carros. Em pouco tempo passou a pintar sobre outros objetos, criando obras de arte com materiais de sucata.
Deixar a gangue de motoqueiros foi uma luta emocional que ele só conseguiu superar quando mergulhou na religião. Kox não demorou a perceber que não acreditava nos ensinamentos convencionais do cristianismo, preferindo suas próprias interpretações.
Ele entrou para o Exército e começou a pintar, com a ajuda de manuais de instrução de arte. Entre 1975 e 1985, passou por um período de isolamento religioso, vivendo como eremita em sua capela pessoal ao ar livre, conhecida como “Gospel Road”. Retornando a Green Bay, continuou a produzir suas pinturas apocalípticas, mas espirituais, fazendo uso de imagens religiosas da América dos séculos 19 e 20, mas mudando seu contexto e significado para chamar a atenção ao cristianismo falsificado.
Suas visões religiosas da batalha entre o bem e o mal detalham textos sagrados e examinam a adoração de falsos ícones. Kox organiza suas composições a lápis e então emprega uma técnica complexa de criação de camadas, deitando camadas de óleos e aquarelas coloridos e então um verniz esmaltado final, conferindo uma qualidade translúcida às obras.
Este artigo foi originalmente publicado pelo HuffPost US e traduzido do inglês.