Carta-testamento
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Carta-testamento
Sintra, 11 de março de 1981.
Querido Oliveira
Somente agora pude escrever-lhe, pois muitas atribuições não me permitiram notícias concretas. Estou agora mais tranqüilo - tratando-me de uma doença do coração, Pericardite - que quase me levou pra cova. Tive a sorte de encontrar um bom médico e preciso de dois meses de repouso. Aproveito este período para botar a vida em ordem.
O Celso Amorim, que tem sido um bom amigo, arrumou-me aqui um contrato para escrever um roteiro para o Instituto Português de Cinema, que me permitirá viver até o fim de maio - e ficar curado. Depois de maio, - tudo é obscuro, pois não tenho certeza se o IPC produzirá o filme. Tanto no Brasil como aqui - continuo pobre, dependendo do dia-a-dia para viver. Este longo exílio começado em 1971, continua. São dez anos de intensa atividade cultural deficitária.
No Brasil - como você bem sabe - tenho poucos amigos. A idade da terra produziu vinganças terríveis - é o preço pago por ter apoiado o Geisel em 1974. Esta atitude política deixou-me ódios implacáveis. Os meios cinematográficos se vingaram e se vingam. Assim, eu que construi 50 por cento do cinema brasileiro, continuo exilado e pobre, embora pensem que eu seja rico.
Pedi aqui um empréstimo ao Banco do Brasil - que me permitiria abrir uma empresa de comunicações, mas me foi negado. Este empréstimo - eu pedi também ao Aluizio Magalhães, e ao diretor da Sac (Secretaria de Assuntos Culturais do Mec) mas até hoje (já passaram três meses) não obtive repostas.
Gostaria de saber se você tem acesso ao Celso Langoni - pois pretendia pedir o empréstimo a ele, mas não o conheço. Imagine que tenho cinco roteiros prontos e dez livros para publicar. Mas não encontro editores no Brasil e não tenho capital para produzir os filmes. O valor deste material literário e cinematográficopoderia me render muito - se eu conseguisse capital para industrializá-lo. Tenho pavor de voltar ao Brasil pobre e dependente ainda da Embrafilme. Seria a morte. Em suma, um “caso dostoievskyano”.
Sei que você tem problemas - mas lhe peço ajuda em extremis. Não tenho casa no Brasil, tenho seis filhos, a saúde cambaleia. Tudo isso aos 42 anos. O empréstimo que preciso é de dez milhões de cruzeiros. Sei que o Delfim concedeu pela Caixa Econômica, empréstimo desta monta (monta: MONTA: perdoe-me o (?) ecianismo...) ao José Celso Martinez pra reconstruir o Teatro Oficina*.
Se eu conseguisse pelo Banco do Brasil ou pela Caixa ou qualquer banco privado ou estatal - um empréstimo de dez milhões - eu poderia voltar ao Brasil e fundar uma empresa de comunicações - e assim editaria meus livros em co-produção com o editor e poderia produzir meus filmes em situação independente. Fora dessa possibilidade - estou fudido. Tenho vontade de lhe mandar alguns arquivos mas não tenho condições de escrever nada, devido à saúde e ao desânimo.
Será que o Sarney ou Passarinho ou mesmo Ludwig não poderiam me ajudar? Além das OBRAS inéditas, sou proprietário de 6 filmes (Barravento, Deus e o diabo na terra do sol, Terra em transe, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, O leão das 7 cabeças, Claro) que relançados no Mercado e lançados na TV poderiam render mais de 20 milhões, considerando que estes filmes ainda são inéditos nos Estados Unidos, Rússia, China e outros mercados.
A idade da terra não me rende nada porque é de propriedade da Embrafilme e daí só tenho cinco por cento dos direitos autorais. Se eu posso abrir uma empresa no Brasil, terei chances de relançar os filmes e vendê-los na tevê e nos mercados ainda virgens.
Tanto os dez livros inéditos (romances, peças, ensaios) quanto os roteiros inéditos e os filmes serviriam de garantia ao empréstimo. Afinal, 11 milhões, é pouco dinheiro. O Banco do Brasil financia agricultores improdutivos e a Funarte joga dinheiro grosso pela janela, como o Serviço Nacional do Teatro, o Instituto Nacional do Livro - etc - financiando articultores incompetentes.
Preciso libertar-me desta miséria injusta que pode me conduzir ao marginalismo, à dependência e à morte. Caso esse empréstimo seja possível eu poderia voltar no mês de maio e instalar a empresa em Brasília pois o Rio é uma cidade perigosa, onde sofri várias ameaças, antes de viajar o ano passado.
Você é a única pessoa no Brasil a quem posso pedir este favor. Se for possível, responda-me. Meu endereço é Hotel Central, Sintra, Portugal. Meu telefone é 292.2090, Sintra. Posso ser localizado também através da embaixada em Lisboa pelo Dr. Carlos Garcia, que é o Adido Cultural. Está é a minha única chance de voltar. Não sendo possível, ficarei pela Europa até conseguir me libertar.
Envio-lhe alguns recortes do que tem saído por aqui.
Abraços fraternais / Glauber Rocha.
(Telegrafe acusando o recebimento da carta)
*Infelizmente, Glauber morreu com uma má informação. Nós não recebemos os 11 milhões do Delfim, como ele diz. No mais, nossa situação é como a dele, só que estamos vivos e ele morto. Muitos pensam (como Glauber) que o Oficina tem dinheiro. Mas não. Nossa situação é cada dia mais sufocante. Há dias de não termos dinheiro nem para comer. O telefone do teatro está cortado há dois meses. José Celso Martinez Corrêa, in Correio Braziliense, 28 ago. / 1981.