Grande Othelo: sem carrão, piscina e big casa mas feliz

Grande Othelo: sem carrão, piscina e big casa mas feliz
(Rubens Araújo*)


27 mar. / 1988 - Sebastião Bernardes de Sousa Prata, ou melhor, Grande Othelo, 72 anos. Sessenta de carreira. Já fez mais de 100 filmes, e dezenas de papéis na televisão sem contar as centenas de atuações no teatro, “escola de todo ator”, como ele mesmo costuma dizer.
Não há que não tenha ouvido falar em Othelo. Não há quem não reconheça sua figura frágil, pequena, parecendo sempre o moleque Tião, personagem que fez em 1943, no filme de estréia da Atlântida,a Hollywood brasileira.

Othelo fez de tudo no palco, desde parceiro de Josephine Baker, cantando “Boneca de Pixe”, no famoso Cassino da Urca, até um “alemão de Santa Catarina”. Popularizou-se ao lado de Oscarito em várias chanchadas. A geração mais nova ficou fascinada com sua interpretação em dois grandes filmes brasileiros. “O Assalto ao trem pagador” e “Macunaíma”. Foi ator em “É Tudo Verdade”, obra inacabada de Orson Welles e gravou um disco com composições de Noel ao lado da atriz Marília Pêra. Na novela Mandala faz o papel de um artista que retorna aos palcos. O papel é autobiográfico, uma justa homenagem da emissora àquele que é considerado o maior ator vivo brasileiro. Grande Othelo esteve em Brasília para participar da noite de autógrafos do livro “Grande Othelo em Preto e Branco”, mais uma homenagem, desta vez dos fotógrafos Marly Serafin e Mário Franco. Deu uma entrevista exclusiva (e apressada) ao Correio Braziliense. Com vocês, o mestre Othelo:

Parece que resolveram fazer todas as homenagens possíveis para você. O que acha disso tudo, e principalmente, do livro “Grande Othelo em Preto e Branco”?
Grande Othelo — O ano passado eu fui homenageado pela Câmara. Agora foi o Ministério da Cultura, quer dizer, não foi bem o ministério: os fotógrafos Marly Serafin e Mário Franco resolveram fazer um livro com depoimentos de amigos meus. Mas, não é um depoimento completo. Ficou faltando muita gente. Mas, essa gente que ficou faltando foi de propósito, porque é gente que participou da minha vida mesmo. Quando eu escrever as minhas memórias, porque eu vou escrever, essa gente participará do livro.
Que pessoas que faltaram?
Grande Othelo — Eu ainda tenho que pensar, sentar, imaginar. Tenho que consultar amigos meus. Porque, você sabe, num correr de uma vida de 72 anos, passa muita gente que às vezes esquecemos num momento de entusiasmo.
Mas, qual é o primeiro nome que lhe vem à cabeça e que fará parte importante de seu livro de memórias?
Grande Othelo — O primeiro nome é Abigail Parecis. Foi ela que me levou de Uberlândia para São Paulo no início de minha carreira. Na realidade penso em dois primeiros nomes: um é Abigail, a outra é Dona Maria Simão, que era apelidada em família de “Pequena”, e até hoje gosta de ser chamada assim.
Onde você iniciou sua carreira?
Grande Othelo — Foi num circo chamado Serrano, depois fui para a companhia de teatro de Abigail Parecis, em Uberlândia. Só depois é que fui para São Paulo, onde comecei a trabalhar profissionalmente no Cine Teatro Avenida, que não existe mais. Eu fazia um monólogo e cantava uma cançoneta italiana.
Que recordações você tem do circo, onde tudo começou?
Grande Othelo — No circo, meu primeiro trabalho se chamou “Tesouro da Serra Morena”, ou “Os Bandidos da Serra Morena”. Eu estava vestido de mulher, com travesseiro no bumbum, e lá pelas tantas, os bandidos atacavam, havia um tiroteio, o travesseiro caía, e todo mundo caía na gargalhada.
Você fez sucesso absoltuo em seu primeiro papel...
Grande Othelo — ...E a segunda vez que entrei em cena foi num teatro lá de Uberlândia, fazendo o filho de um alemão de Santa Catarina. Foi lá que eu disse minha primeira frase em cena: “Mim estar alemons de Santas Catarinas”...
Estranho, você um negro encarnar um personagem alemão...
Grande Othelo — É estranho no Brasil, porque o Brasil é uma terra onde entra todo mundo, de maneira que os alemães entraram também. E eu para fazer gracinha, tive que imitar alemão. Isso é doloroso. O artista brasileiro para fazer sucesso tinha que imitar o artista estrangeiro. É uma coisa que deploro tremendamente...
Mas, continua sendo assim?
Othelo — Continua.
No seu caso, você não precisou imitar artistas estrangeiros por muito tempo para fazer sucesso.
Grande Othelo — Para começo de conversa, eu, para fazer sucesso, tive que imitar Stan Getz, tive que trabalhar com Josephine Baker, tive que cantar em inglês. Tudo isso para poder mostrar mais tarde alguma coisa em português. O ator brasileiro continua completamente desprestigiado. Acontece isso porque nossa cultura está em formação, como o Brasil esta também em formação. Tudo o que acontece agora tem que ser pensado em termos da estabilização do Brasil.
E o que o artista brasileiro poderia fazer para se livrar das amarras e ser mais valorizado?
Grande Othelo — O ator tem feito peças de autores brasileiros. Tem passado o idioma das ruas para a televisão, do mesmo modo que passa as gírias da televisão para as ruas. Agora em "Mandala", tem um texto falado pelo bicheiro que o Nuno Leal Maia faz: “Você pensa que isso é melzinho na chupeta”. Quer dizer, a vida não está melzinho na chupeta hoje, não.
A sua vida como ator sempre foi muito difícil...
Grande Othelo — A vida sempre foi difícil para o ator que resolve realmente ser ator.
Ou seja, quem é ator picareta consegue se dar bem na vida.
Grande Othelo — Não é quem é picareta. É quem não tem o dom de ser ator, porque o ator nasce, ele não se faz. Quem tem a sorte de cair numa multinacional, e ser “explorado” por ela, faz sucesso. Isso porque a multinacional, a multimídia, o marketing faz com que ele faça sucesso.
— Você disse uma vez que precisou gastar dinheiro de seu bolso para ajudar algumas pessoas com quem você trabalhou...
Grande Othelo — Eu não disse isso, não. Já trabalhei em cooperativa, mas nunca foi preciso colocar dinheiro do meu bolso em qualquer trabalho, porque, além do mais, nunca tive dinheiro para empatar nisso. Meu dinheiro é para comer manhã, me vestir amanhã, para manter uma aparência mais ou menos digna.
Existe alguma mágoa com relação a isso?
Grande Othelo — Absolutamente. Não há mágoa alguma porque os papéis que eu faço, são aqueles que eu quero fazer. As entrevistas que faço, são aquelas que eu quero dar. Então, eu sou uma pessoa um pouco fora do sistema, porque o sistema aperta a gente de todos os modos. E eu não gosto do sistema. Sou uma pessoa que consegue uma abertura dentro do sistema.
Nada a ver com marginalização?
Grande Othelo — Não, não é marginalização. É a liberdade. É ser livre. Eu me considero livre há muito tempo e não agora com essa comemoração dos 100 anos...
O pagamento por essa sua opção de ser livre foi...
Grande Othelo — O pagamento por minha opção é viver do jeito que eu vivo agora, sem ter carrões, sem ter telões, sem ter computadores, sem ter uma big casa com piscina. É o preço que eu pago por ser livre.
— Mas parece que você também nunca quis tudo isso.
Grande Othelo — Nunca me atraiu. O que me atraiu sempre foi uma vidinha simples. Eu sou mineiro, e gosto de viver mineiramente. Não sou de muita complicação. Eu até estou falando demais para você.
E o ator negro, Grande Othelo?
Grande Othelo — Não é ator negro. Há o ator. O ator interpreta os próprios sentimentos. Se são os sentimentos de uma pessoa que é descendente de africanos, esse sentimento se manifesta dentro de um pensamento e ótica de africanos. Se é descendente de portugueses, se manifesta dentro da ótica de um descendente de português. Se é italiano acontece do mesmo modo. Não há ator francês, italiano ou negro. Há o ator.
Mas você já falou que é barra ser ator. Não seria mais barra ainda ser ator e negro num país racista com o nosso?
Grande Othelo — É barra ser ator em qualquer lugar do mundo.
O Brasil então, não é diferente?
Grande Othelo — Não tem diferença absolutamente. Já vi em Portugal os atores reclamando de vida que levavam, como também na Inglaterra vi atores reclamando.
Você disse que considera a chanchada, da qual você foi um dos atores mais atuantes, como o verdadeiro cinema nacional. E o cinema hoje?
Grande Othelo — Cinema nacional não. É o verdadeiro cinema brasileiro, de postura brasileira, de técnica e enquadramento brasileiros, de histórias do dia a dia do Brasil. O cinema hoje é um tanto cópia do cinema americano. O Cinema Novo, então, foi muito um estereótipo do cinema francês.
E quem hoje, no cinema nacional, faz um trabalho brasileiro?
Grande Othelo — Tem por exemplo o David Neves que vai fazer agora um filme que é absolutamente carioca, chamado “Jardim de Alá” (Othelo vai participar do filme). Tem Roberto Moura da Corisco Filmes, que faz uma história dos anos 80 com um tema brasileiríssimo.
Onde fica Nélson Pereira dos Santos nessa história?
Grande Othelo — Nelson Pereira dos Santos é hours-concours. Ele par ao Brasil ficou no lugar de seu aluno, Glauber Rocha. E tudo o que Nelson fizer é válido e é brasileiro.
Você tinha um projeto de fazer na televisão um personagem, Pancho Mariarti, que seria um contador de causos da América Latina: o que é feito desse projeto?
Grande Othelo — O personagem chamaria-se Pancho Cucaracha. O projeto não deu em nada porque eu levei par um produtor, e ele não atingiu o alcance da minha idéia.
E qual era o alcance de sua idéia?
Grande Othelo — A minha idéia era fazer a união cada vez maior da América Latina.

*Correio Braziliense, 27 mar. / 1988. Editoria de Cultura.
**Em 1993, foi homenageado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, quando, na abertura, foi aplaudido de pé pelo público que lotou a Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional Claudio Santoro. Na semana seguinte, Grande Othelo viajou para a França, mas, faleceu 15 minutos depois de desembarcar no aeroporto de Paris, devido um ataque cardíaco às vésperas de seus 78 anos, a caminho do Festival dos Três Continentes, em Nantes, onde seria homenageado.

"Grande Otelo é um dos maiores atores do mundo". (Orson Welles)

O terno rosa-choque
(Folha de S. Paulo)

25 dez. / 1994 - "Grande Othelo me chamava de Papi. Certa vez, nos encontramos em Londres para a exibição do filme 'Macunaíma'. Ele não tinha roupa para a recepção, fomos comprar. Grande Othelo escolheu um terno rosa-choque, que vestia nos grandes momentos. Toda vez dizia: 'Foi Papi quem me deu' Não fui. Quem deu foi a embaixada brasileira". (Jorge Amado).

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