Glauber Rocha: Último Antropofágo Brasileiro!
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Flashbackz*
texto: Mário Pacheco
Danilo sabe disto. Chamou Rosselini pra entrevistar Allende. Quem entrevistou Fidel foi Chris Marker. Rosselini sentiu que Allende faria o discurso a partir de Morus. Foi à Rua Thomas Morus, onde mora Allende. Allende é um Churchill kruscheviano. Poucos políticos reúnem tanto. E não é uma excrescência latina. É um Juscelino que leu Marx e Moreau. Allende poderia ser morto pela CIA, pois é muito mais perigoso do que Fidel numa época em que as guerrilhas concorrem com a Guerra da Informação. (Glauber Rocha)
Abril de 1973, num giro pela América do Sul, o cineasta Glauber Rocha, aprende um pouco de política latino-americana. Na Argentina literalmente desfruta os buenos aires e testemunha a vitória da esquerda peronista. Eufórico comenta que lá na Plaza de Mayo em frente da Casa Rosada só se fala em socialismo-nacional.
No pequenino Uruguai, em Punta del Este, no Hotel Espanha, Glauber curte os melhores momentos de sua vida exilada, reencontrando a família.
Na passiva estância El Milagro, em Maldonado, ainda no Uruguai, Glauber faz contato político com Jango, o presidente brasileiro deposto e seu ex-ministro Darcy Ribeiro. Glauber sobrevoa as Cordilheiras dos Andes no Peru.
Um ano depois desses encontros políticos Glauber extrai os elementos de convicção para apoiar a abertura política iniciada pelo presidente Geisel. Em março de 1974, ele afirma que Golbery e Darcy são os gênios da raça. O general consegue que se expeça um passaporte para Glauber, Quando o Itamaraty recebe a incumbência de avisar a Glauber, em Paris, anota: - Foi a decisão tomada - e certa, acho.
No fim de abril, Glauber passa uma semana em Portugal, para ver a Revolução dos Cravos e filma o ponto culminante das manifestações, o desfile do 1º de maio. Glauber sonha com aquele mesmo desfecho para a ditadura brasileira que acaba de entronizar seu quarto ditador, o general Ernesto Geisel. Glauber acredita que o general Geisel está trabalhando no Brasil por um regime militar nacionalista e esquerdizante, nos moldes da experiência do Peru (entre 1968 e 1975), onde um governo fardado tinha feito a reforma agrária.
A eminente volta de Glauber Rocha ao Brasil é sigilosamente negociada pelos jornalistas Zuenir Ventura e Elio Gaspari, o ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso e o general Golbery do Couto e Silva, atual chefe da Casa Civil de Geisel.
Califórnia, 22 de junho de 1976, Glauber abandona o sossegado e velho quarto do confortável hotel Garden Courts Apartments, situado no nº 7021 da Hollywood Boulevard, antigo ponto de encontro de celebridades da tela na época do apogeu dos grandes estúdios.
No dia seguinte, uma quarta-feira, depois de cinco anos de ausência, regressa do exílio. Vestindo um casaco de tweed, logo deixa patente que abandonou as contradições marxistas como a lei cubana de necessidade, uma explicação para a miséria da ilha de Fidel e rompido com a tirania comunista da Tchecoslovaquia.
Em solo pátrio passa a defender os esforços para o aperfeiçoamento democrático do presidente Ernesto Geisel, a luz dentro do processo histórico, a propalada abertura: lenta, gradual e segura, o único conceito de avanço político naquele momento.
Além de acreditar no projeto de abertura política de Geisel, Glauber Rocha admite também exercer influência na abertura; enquanto as patrulhas ideológicas substituem o debate das idéias e o acusam de adesista, de ter aderido à ditadura, ele diz uma coisa estupefata: — Na verdade eu ponho frases na boca deles, atribuo significados a estes personagens e depois eles tem de agir conforme o script.
O fascínio de Glauber em conhecer os mecanismos do poder dá-lhe o grande mérito de sacar, que Fernando Henrique Cardoso é a ponta de lança do Pentágono no Brasil, assim como denuncia que o Cebrap em São Paulo é financiado pela Fundação Rockefeller e está a serviço da Cia. funcionando como plano neo-camelô das ciências sociais. Não é por acaso que repicam-se heustórias de Glauber de manhã cedo, enrolado num cobertor como mendigo, caminhando sem rumo pela praia de Ipanema, falando sozinho ou comendo sem pagar nos restaurantes e chamadas de capa Nem Mao, nem Stálin, nem Glauber e leads com o título de "Pobre Glauber! Pobre Glauber!", em semanários esquerdistas em campanha para eliminar o cineasta da vida nacional.
Glauber o profeta da Abertura ainda prevê a sucessão de Geisel por Figueiredo, quatro anos depois a vitória de François Mitterrand na França e até Sarney.
Traços e posições particulares deste homem que parecia volúvel ao sabor de declarações e profecias passíveis de estrondos.
A cidade mais bonita
Brasília é a cidade mais bonita do mundo e a grande Verdade Vos Ilumina. Penso que é necessário fazer as coisas. Isto é o que pensava Kubitschek quando dizia: ‘É preciso fazer Brasília’. Os economistas diziam que Brasília significaria o colapso econômico do Brasil. É verdade que a desvalorização da moeda foi tão grande que isso provocou uma crise econômica. Mas Brasília foi a revolução cultural do Brasil; com sua construção, o Brasil pôde se livrar do seu complexo diante do colonialismo. O despertar político e a consciência do subdesenvolvimento datam da construção de Brasília. Isso é bastante contraditório, porque Brasília era uma espécie de Eldorado, a possibilidade que os brasileiros tinham de criar eles mesmos alguma coisa. (...)
Aqui, por exemplo, em Brasília, neste palco fantástico no coração do planalto brasileiro, forte irradiação, luz do Terceiro Mundo, numa metáfora que não se realiza na história, mas preenche um sentimento de grandeza, a visão do paraíso, essa pirâmide, esta pirâmide que é a geometria dramática do estado social, no vértice o poder, embaixo, as bases e depois os labirintos intrincados das mediações... (...)
Passei uma semana em Brasília e fiquei impressionado com o baixo nível dos discursos. Glauber Rocha
1º de abril de 1977, no dia em que o presidente Geisel fechou o Congresso, Glauber telefonou para Caetano Veloso que lhe passou o telefone de Rogério Duarte em Brasília. Perseguido no eixo Rio-São Paulo, taxado de louco, refém das proliferantes patrulhas ideológicas e em profunda crise existencial, Glauber Rocha atende à pedido do amigo e corre para Brasília.
Quando chega. Brasília vive a crise dos pacotes das reformas políticas, o Congresso Nacional está fechado, a nação traumatizada. O MDB conseguiu rejeitar, no Congresso Nacional, um projeto de reforma judiciária apresentado pelo governo tendo este fechado o Legislativo, aprovado a reforma por decreto e editado o chamado "Pacote de Abril", um conjunto de esdrúxulas medidas eleitorais, instituindo a figura do senador biônico, a ser eleito, não pelo povo, mas por um "Colégio Eleitoral", que tinha a maiora de seus membros oriundos do partido governamental - a ARENA. Deste modo, a abertura de Geisel pôde ser levada até o final de seu governo, com a revogação, em janeiro de 1979, do AI-5.
Rogério Duarte, que trabalha no jornal Correio Braziliense o recebe no aeroporto levando uma presença. Não precisava. Quando Glauber desce do avião, Rogério Duarte percebe que ele exala profunda marola. — Devia ter fumado muito durante o vôo. No vôo, o cineasta substituía o fumo do Hollywood.
Glauber Rocha, com complexo de perseguição e sentimento de culpa pela morte da irmã, Anecyr Rocha, viera a Brasília para duas coisas, ter proteção e incitar o general Golbery a passar por cima da Rede Globo para apurar a e prender os supostos criminosos da morte de sua irmã. com quem se desentendera horas antes de sua queda no fosso do elevador.
Chega aqui feito um molambo, com medo e indignado. Passa por uma terrível fase de consumo de droga, com dificuldades de articular as palavras. É assistido pelos amigos até que consiga falar direito, para então saber o que quer e botá-lo em contato com as pessoas. Através do general Golbery é marcada uma audiência com Armando Ribeiro Falcão, ministro da Justiça que o recebe. Glauber comparece e torrencia a sua versão, que é absurda mas que ele acredita e enriquece com dados criativos, o cunhado, fã de Hitchcock, teria empurrado a irmã para o fosso do elevador. — É "Um corpo que cai" (de Hitchcock) com "A marca da maldade" (de Orson Welles). Teorizou Glauber. Armando Falcão, o ministro político e ministro da segurança interna do governo Geisel fica horrorizado mas não dá instruções para que a Polícia Federal faça uma averiguação sumária e enrola Glauber que não conforma-se e acha que Armando Falcão faz parte da conspiração de silêncio.
Essa importante e produtiva temporada em Brasília é menos conhecida do que suas passagens por Hollywood, Europa, Ásia e Terceiro Mundo.
Na sua segunda passagem por Brasília em janeiro de 1978, Glauber filma "A Idade da Terra". De outubro de 1978 a fevereiro do ano seguinte, Glauber não gasta e ainda ganha dinheiro, por meio de permuta mora na suite presidencial do Hotel Eron, onde têm as mulheres que quer nas camas que escolhe e as melhores amizades.
Em setembro de 1979, na quarta e sua última vez na Capital, Glauber enterra o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro...
Para Glauber, Brasília é o Eldorado, aquilo que os espanhóis e outros visionários perseguiam, a lendária cidade do futuro democrático mundial. Aqui ninguém o ameaça, o cobra ou questiona: — Está usando droga ou não? Isso não interessa à ninguém a força do poder e o carisma de Glauber passam por cima disso tudo.
Em cartaz!
— Como eu poderia pedir a cabeça do Glauber se eu nem tinha o número do telefone do jornal?
Jaguar em nov. / 2001.
Glauber Rocha escreve no jornal Correio Braziliense artigos políticos coalhados com ypsilone, uma brincadeira lingüística com o vanguardismo dos anos 20, num estilo tropicalista e na direção da língua tupi, seus artigos “para chamar a atenção de um povo que não lê” escandalizaram o país não pelo fato de ser publicado os artigos apenas, foi que ele foi manchete do jornal. A esquerda radical e reacionária propaga o rótulo de “fascista” e desde então várias pessoas ligam para a redação do jornal para saber o motivo de dar espaço para aquele fascista. No Correio Braziliense, Glauber faz um suplemento inteiro na Semana Santa, um espaço que ele não tinha em jornal nenhum do país. Uma coisa louca do ponto de vista de um jornal conservador. Fernando Lemos e Oliveira Bastos perderam a conta dos telefonemas que recebiam de cineastas e intelectuais, os alertando contra a insanidade de dar espaço aos delírios do cineasta.
— Ele está louco, está alucinado, tem que ser internado. Dizia Jaguar e ouvia um sonoro:
— Vá à merda. Respondido por um dos editores.
Em outro telefonema do gabinete de Ney Braga, o então ministro da Educação e Cultura. Chama Glauber de grande intelectual e como resposta é encostado na parede: — Vou poder fazer o meu filme ou não? Me diga, senão eu saio do Brasil agora e vou para a Bolívia. Um emocionado Ney Braga promete que tomará providências e Glauber apresenta um novo orçamento, de 6 milhões de cruzeiros.
Na primeira página do Correio Braziliense, Glauber produz o impacto que o editor-chefe quer e o impacto é tão violento que Glauber passa a ser apontado como um inimigo das esquerdas. Mas ele tem consciência de que veio para o sacrifício e retruca: — Estudo a história do Brasil e tenho uma vasta informação sobre a cultura e a política brasileiras. Os filmes que faço são produzidos pela realidade econômica, política e cultural do Brasil, e então posso me dar o direito de emitir opiniões sobre eventuais contradições políticas do país. Fiz certas declarações antes de o general Geisel tomar posse e algumas coisas que falei mais ou menos se delinearam no quadro político brasileiro. Não aderi ao governo, porque não disputo o poder nem me interessa satisfazer a centros de poder, sejam eles do governo, de partidos ou de grupos econômicos. Eu posso então emitir opiniões independentes de conceitos vigentes.
Substituindo as letras c, i e s por xs, ys, zs e ks, Glauber mexe com a representação dos fonemas brasileiros e com o processo cultural do país. Faz do jornalismo uma trincheira. Escreve artigos enormes e polêmicos, aproveita a proximidade do poder para dar recados ou fazer elogios incômodos à leitores ortodoxos.
Os editores do Correio Braziliense não fazem qualquer restrição ao que ele escreve. As contribuições do jornal e o cineasta começam em 7 de abril de 1977, quando é publicado o artigo Paixão segundo Glauber, e três dias depois, no domingo de Páscoa, vem encartado o suplemento místico, Alvorada freneticamente concluído por Fernando Lemos, Glauber, Rogério Duarte e TT Catalão em clima de velório e tragédia grega, onde “os bárbaros plantam os seus mortos”.
Enterrar o Festival
Terminado o filme "A Idade da Terra", Glauber vem a Brasília para divulgar o semanário carioca "Enfim", para o qual ele escreve e conversar com o general Golbery.
Glauber, instala-se no Eron Hotel e por casualidade, quase conversa com o presidente Figueiredo, durante a inauguração da exposição do pintor Waldomiro de Deus. Glauber ia chegando no saguão do hotel, quando o presidente e sua comitiva abandonavam o Salão Ouro do Eron.
No dia seguinte, sexta-feira, 21 de setembro de 1979, Glauber Rocha bastante agitado com crise estomacal acompanhado por sua mulher, Paula Gaetan, consegue sua internação no Hospital das Forças Armadas, quer fazer um exame pois desconfia que está com câncer. Glauber nunca confiou nos médicos e quase sempre os levou à loucura com sua tendência em incorporar sintomas de diferentes doenças e apelando para tratamentos alternativos ou de vanguarda.
Deitado por horas na banheira do HFA, Glauber fala alto em tupi-guarani e faz discursos antimilitares. Quando o pneumologista solicita uma nova radiografia do tórax para outra avaliação. Um desesperado Glauber Rocha repete insistentemente que vai morrer...
Fernando Lemos tem que pedir ajuda a Eduardo Mascarenhas, amigo e analista de Glauber, para convencer os psiquiatras do HFA, que não querem soltá-lo. O argumento de Mascarenhas: — Ele está liberado para expressar livremente, o seu inconsciente o tempo todo.
Terça-feira, 25 de setembro, tarde típica do cerrado, 38 graus. O XII Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, segue o seu clima de mundanismo normal, e se depender dos concorrentes não entrará para a historia. O evento havia sido transferido de julho para setembro, com a explicação oficial do diretor da Fundação Cultural, Ruy Pereira da Silva, de que não há hospedagem para todos os artistas e convidados, em julho. A apatia e frieza são totais, apesar das sessões da mostra competitiva serem abertas ao grande público.
Institucionaliza-se o Hotel Nacional, como o único capaz de receber os artistas, tendo o mesmo tornado-se um verdadeiro quartel-general de estrelas nacionais que aquela altura, quase deserto, sequer dava sinais de que ali estavam hospedado os convidados.
O quegê está reunido na piscina. Glauber Rocha que acabara de receber alta do Hospital das Forças Armadas, chega de supetão, com os cabelos desalinhados, calça pra lá da cintura, sacola de papel na mão e sandálias gastas, ele não havia sido sequer convidado pelo festival e instigantemente surpreende quando resolve quebrar o marasmo: — Vocês querem uma entrevista? E Glauber começa a metralhar, à pleno pulmões, berra para o grupo de artistas que conversam e tomam uísque à beira da piscina do Hotel Nacional e ouvem tudo: — Este é primeiro escândalo do Festival. Eu vim à Brasília para fazer este escândalo. O Festival morreu aqui, hoje. Este Festival desmoraliza toda a cultura brasileira. Os maiores cineastas não estão aqui. Os cineastas têm que ir hoje e pedir a demissão do senhor Ruy Pereira, se eles tiverem vergonha na cara. Ele censura muito mais que a censura. Foi ele que censurou os filmes independentes. Estamos em um governo de Abertura. Estou revoltado diante de tudo isso. O diretor da Embrafilme não deveria permitir isso. Estes filmes curtas-metragens são muito ruins. É a canalha intelectual. O júri do Festival é um júri policial que não entende nada de cinema, dirigido por agentes da CIA. É uma vergonha. A Fundação é formada por uma canalha intelectual. É uma vergonha. Estes cineastas prostituídos que tomam dinheiro da Embrafilme para filmar a bunda da Sônia Braga. ("Dama da Lotação"). Esses cineastas são traidores do cinema brasileiro. Mas o Festival morreu aqui. É um mangue!
É a primeira voz que levanta-se em público, contra o festival que agoniza. Está decretada a falência do festival, que segundo Glauber, virara um prostíbulo da pornochanchada. A seu ver, os cineastas desfrutam das benesses do Hotel Nacional e lançam mão do dinheiro público para filmar o traseiro da Sônia Braga.
E nisto, o antropólogo e documentarista francês Jean Rouch se aproxima. Rouch havia hospedado Glauber durante seu exílio na França. Cumprimentam-se em francês, mas, de repente, Glauber com o dedo em riste na direção de Rouch, grita: — Você é um espião francês. Tu est un espion! Eu vou te entregar para o serviço de informações. Vous êtes um agent du Quai d´Orsay.
— Vous êtes um colonizateur! Está espionando o nordeste brasileiro.
Jean Rouch ri amarelo, sem entender nada. Glauber mistura francês e baianês.
— Não ria! Eu te conheço. Você sempre espiona os povos do Terceiro Mundo. Você só pode aparecer em um festival como este de pornochanchada. — Cinique! Cinique! Um festival de corrupção, de prostituição. O Brasil de Figueiredo não aceita espiões.
Condenada a desorganização do festival e afirmado que o mesmo está infiltrado de agentes externos, o tumulto está armado, o cineasta é contido por seguranças do hotel, que tentam impedi-lo de berrar com um outro estrangeiro que entra para defender o compatriota, a aglomeração adensa-se e acaba no meio do saguão. Um dos diretores do Hotel Nacional tenta serenar os ânimos: — Eu peço ao senhor um pouco de calma. E Glauber: — Senhor zorra nenhuma. Aqui quem está falando é Glauber Rocha, o maior cineasta do mundo, muito melhor do que Godard e Eisenstein.
O diretor do hotel tenta intervir e Glauber responde: — Não há confusão nenhuma. Estou apenas dando uma entrevista coletiva aos meus amigos jornalistas. Eu fui jornalista mais de dez anos na Bahia.
O segurança do Hotel Nacional, acompanha Glauber, que pergunta já no meio do hotel:
O senhor é segurança? E o segurança:
— Sou!
— Então comece a interrogar aquele espião francês ali. Senão eu saio do Brasil agora. Estão boicotando a Abertura de Figueiredo. Estou revoltado diante de tudo isto.
Já do lado de fora Glauber consegue mais audiência para o seu comício e diz que pedirá aos ministros da Educação e da Justiça, intervenção na crise da cultura do país e arrasa com o júri do festival dizendo que ele é policial e composto por incompetentes que não entendem nada de cinema e repete: — Eu vim ao Brasil para enterrar o festival.
No dia 27 no primeiro parágrafo de um artigo de meia página no Correio Braziliense ele adverte:
A cultura brazyleyra está com kanzer. Toritoma Maligno. Carcinoma Embriogênico.
Melonena pulverizantyz. Metástase: os efeitos destrutivos possuíram órgãos, membros e almas dos artistas, dos burocratas que se ocupam de produzir, realizar e distribuir cultura no Brazyl. A televisão está contaminada pelos enlatados promocionais do FBI e da CIA (órgãos de segurança yankz).
E nesse mesmo dia Glauber provoca outro rebuliço no Aeroporto de Brasília, paga uma passagem para o Rio de Janeiro, via TransBrasil, com um cheque simples, o gerente da empresa tem de comparecer ao balcão e endossar pessoalmente o cheque de Glauber que pôde assim viajar.
Glauber segue para o Rio de Janeiro, sem saber do diagnóstico de um possível tumor maligno pulmonar, uma vez que não realizou a segunda radiografia e entra num processo de automedicação e dieta. Tem problemas de pulmão e fuma muito, uma tosse que não acaba. Os médicos decidem que deve parar de fumar e logicamente ele não para... Acha que tem um foco de sinusite e bico-de-papagaio.
Phrometeu
II
A ser torturado por um abutre / Alimentado pelo sangue biliar de Prometeu
O abutre rejuvenesce e fica amigo de sua vítima / Que imortalizado pela dor gera o amor
E no prazer de dar sublima o não ser / Projetado da matéria feliz porque viu um nada lacunar entre o ser e o passado / O fulgor do fogo primário feminino
Na memória do amor assumido / Sou ela fogo masculino no ventre da terra prometida.
Glauber Rocha in Alvorada
Em janeiro de 1978, psicologicamente estimulado, Glauber Rocha volta aos círculos da Capital do Brasil onde há misticismo, mitos, deuses e diabos. Além de capital-cenário, Brasília é um elemento vivo e transfigurado na epopéia glaubíca.
Perambula/gargalha pela redação do Correio Braziliense, fala/pensa filosofia/poesia, política/economia, usa o pátio do jornal como cenário, roda cenas de grande plasticidade de "A Idade da Terra". Glauber, também visita o Vale do Amanhecer e vai à Casa de Tia Neiva em companhia de Paula Gaetan e Quim Andrade, no cômodo onde estão, Glauber ouve um galope e comenta com Tia Neiva: “o próximo presidente virá montado a cavalo”... No terreiro do Raul de Xangô, no Núcleo Bandeirante, ele também filma. O cineasta investe tempo e dinheiro nesse projeto, que corresponde a uma coisa bíblica e religiosa. A iluminação só pintou mesmo em Brasília.
Para as filmagens de "A Idade da Terra", Glauber e sua equipe hospedam-se no Brasília Palace Hotel, o melhor hotel da capital, localizado à beira do Lago Paranoá, exemplo da arquitetura moderna e que será destruído por um incêndio a 4 de agosto.
A 19 de janeiro de 1978, Eryk Aruak Rocha, filho de Glauber, com Paula Gaetan, nasce em Brasília, em plena filmagem. Glauber só verá o filho no dia seguinte, trabalha até de madrugada.
O trajeto das locações das filmagens é decido pela manhã no Palace Hotel mas Glauber nunca segue o roteiro das cenas, é o rei do improviso, simplesmente saí de carro e decide na hora, junto aos gritos descontrolados e com toda a impaciência que cabe-lhe no peito.
Um dia às 7 da manhã, Glauber está no Teatro Nacional em obras com os operários dando acabamentos e montando os arabescos, ele liga para Fernando Lemos.
— Vem prá cá.
— Entre aí. Diz Glauber a Fernando Lemos que já entra em cena, gravando o roteiro, que Glauber criou na hora. Depois, Fernando Lemos, Maurício do Valle e Antônio Pitanga saem de carro, Glauber no outro carro, filma. O Teatro Nacional é a pirâmide, túmulo dos sonhos do Brasil.
Nos arredores da Torre de tevê, onde uma das cenas está sendo filmada, Ary Pará-raios surpreende-se com a equipe montada para a filmagem e com a ordem de Glauber: — Entre aí e comece a falar. O ator/jornalista retruca: — Falar o que? — Fale o que quiser. Dispara o diretor. Pressionado, Pará-raios recita os Lusíadas, de Camões, e, em seguida, frases em Latim.
E Glauber Rocha grita: — Vai andando, que a câmera vai atrás...
O método de improvisação de Glauber é levado ao extremo, por ele mesmo, sem concessões, o tempo todo a voz da direção é ouvida, o som definitivo é o som-guia, é o delírio total de uma grande aventura poética coletiva onde muitos sabiam que haviam embarcado.
Noutra manhã os atores João Antônio, Dimer Monteiro e Gloria La Boca, (“Glauber, apaixonou-se pela sua atuação”) banham-se na piscina, Glauber Rocha pede uma garrafa de água. Espera 10 minutos. Ela não vem. Ele despede, acompanhado de uma fileira extensa de palavrões, a pessoa responsável por matar sua sede. Na manhã seguinte, ela é recontratada. As filmagens atrasam por um dia quase inteiro por causa do incidente.
Os motoristas de entidades do governo que emprestaram seus carros à produção são proibidos por Glauber de sentarem para comer na mesma mesa da equipe. Eles seriam, como tantos intelectuais espancados por Glauber, agentes da CIA.
Glauber aponta a câmera para os atores, pede que comecem a gravar a cena e em seguida ordena: — Parem, parem! — As nuvens estão cobrindo o sol. E novamente interrompe as filmagens para falar do assunto e ninguém é despedido. Mas xinga o primeiro que cruze-lhe o caminho. No Teatro Galpãozinho, os atores brasilienses durante dois dias sentiram o ônus de trabalhar com um famoso cineasta em crise e presenciaram atos e discussões sem sacralidade alguma. Um espetáculo com diálogos deprimentes:
— Você é uma jumenta, uma prostituta, uma incompetente. Glauber grita com Tizuka Yamasaki, diretora de produção e responsável pela privacidade do cineasta. Tizuka Yamasaki, não responde, ela olha e alega em voz baixa que agüenta tudo porque, afinal de contas, está aprendendo muito com ele.
Apesar de querido pela equipe que dirige, Glauber Rocha joga duro quando falhas acontecem. Numa cena gravada na Esplanada dos Ministérios, um técnico quebra lente caríssima. O cineasta enlouquece. Obriga a equipe a voltar ao Brasília Palace e de meio-dia às seis da tarde têm de ouvir um sermão glauberiano. Glauber estoura orçamentos, briga com os amigos, enlouquece a equipe de filmagem, os produtores, e deixa técnicos à beira do colapso e atores como Antônio Pitanga, que faz o Deus negro, e Jece Valadão, o Cristo índio, desorientados com suas idéias. Tarcísio Meira, exige os diálogos por escrito. Muitos atores também tiram Glauber do sério.
A forma livre, íntima, inventiva, inspirada e surpreendente de Glauber trabalhar no set suscitava um polemismo maravilhoso.
Foi uma de minhas experiências mais gratificantes e construtivas. O Glauber era carinhoso, instigante, inteligente e polêmico. Os atores eram um instrumento do trabalho dele, que era um diretor-autor, mas nunca um ditador. Lamento não ter estado com ele mais vezes. Tarcísio Meira.
"Ator que não sabia improvisar não podia trabalhar com Glauber". Norma Benguell.
Idade da Terra: poema solto em verso livre
Nem pé nem cabeça radical façanha artística espetacular marginal perdulário desconcertante incompreendido cinemascope câmara na mão caótico profético convulso agressivo inacabado ambicioso ficção épico maravilhoso sinopse órfico ópera carnavalesca meteoro boicotado filminho inesquecível paranóico delirante
Pérolas do rosário de epítetos com adjetivos críticos, extasiados e reveladores invariavelmente associados à "A idade da terra".
Glauber Rocha coloca os pés em Havana às 3 horas da tarde, quatro horas depois, os agentes da G2, a polícia cubana atravessam o salão contíguo aos aposentos do hotel. E, ele ouve a batida seca duramente acelerada acompanhada da ordem: — Abra a porta, señor Rocha. Temos uma acusação séria contra su persona. Os homens da G2, vieram à suíte 1525, com a informação de que Glauber Rocha e Marcos Medeiros eram maconheiros. De acordo com o agente cubano, a informação havia sido passada por um informante cujo codinome era Inácio e o apelido Gaberia.
De novembro de 1971 a dezembro de 1972, Glauber Rocha vive em Cuba. Mesmo, “clandestinamente” hospedado no Hotel Habana Libre, ele custa 950 dólares ao governo cubano. No 1º de maio de 1972, o cineasta chora durante o discurso de Fidel Castro.
Enquanto realiza seu filme "História do Brasil". Na mesma suíte com regalias diplomáticas, ao ler "Os Lusíadas", de Camões, durante uma viagem lisérgica de dez horas, surge a idéia de usar a palavra “terra” para compor uma trilogia com seus filmes "Deus e o diabo na terra do sol" e "Terra em transe".
No ano seguinte, Glauber Rocha já anuncia o projeto ambicioso de "A Idade da Terra", cujo roteiro teve tantas versões batidas à máquina e correspondeu à fases tão diferentes da vida de seu autor que o original final usado nas filmagens possuía em torno de 400 páginas acompanhadas de observações, “a esquadra de Dom Sebastião invade outro país”. Uma ficção baseada nos ditadores da América Latina. Glauber Rocha inventara cidades, o roteiro épico é maravilhoso e incrível com chefes muçulmanos, negros e Roberto Carlos cantando poemas de Anchieta em defesa da Virgem dos índios e do Brasil.
No início de 1976, Glauber Rocha despreza os dois primeiros roteiros e viaja para Moscou, onde não conhece ninguém. Do hotel, liga para a Mosfilm, a empresa estatal de cinema, comunicando que havia chegado. Durante seis dias é visitado por Natasha, uma funcionária especialista em Machado de Assis, que mostra-lhe as praças, os museus e monumentos da cidade. Pedem-lhe referências e ele dá: Luiz Carlos Prestes, secretário geral do Partido Comunista Brasileiro, deve ter ouvido falar de mim. Não apenas ouvira como comparece a uma seção especial de "Deus e o diabo na terra do sol" e "O dragão da maldade contra o santo guerreiro", numa salas vips da Mosfilm. Prestes vai embora, elogiando, e Glauber Rocha volta ao hotel, esperando. Quando o chamam de volta, querem, naturalmente, um roteiro. O cineasta inventa um roteiro falado, de uma hora, traduzido por Natasha, e tenta derreter o gelo dos tecnocratas soviéticos com uma comparação: — Acontece comigo o mesmo que aconteceu com Eisenstein no México! Há uma nova exibição de Deus e o diabo na terra do sol. De volta ao estúdio, não há como escapar: o roteiro ou nada!. E avisam, delicadamente, que o inverno está chegando.
De Moscou, Glauber vai para Hollywood, com escala em Paris.
Na América, hospeda-se no Magic Palace of the Stars, apesar do nome paródico, o hotel é um moquiço de quinta categoria, perto da linha do trem, conjugado ao lado do Chinese Theatre, no coração de Hollywood.
No exílio californiano Glauber Rocha circula com cineastas iankz. O brasileiro acha Francis Ford Coppola parecido com Antônio das Mortes, e juntos passam horas escutando Villa-Lobos enquanto conversam sobre filmes.
Martin Scorsese o apresenta ao presidente da United Artists, Michael Medavoy, que o recebe com um elogio de puro nonsense:
— Vi "Terra em transe". É fantástico! Parece um filme de Antônioni. Robert de Niro, presente à cena, testemunha o interesse de Michael Medavoy, que logo bate na mesma tecla:
— Manda o roteiro que eu produzo o seu filme. Glauber Rocha passeia com a namorada, Connie, enquanto escreve mais um script. Acabou num jantar na casa de Milos Forman e este o recebeu de braços abertos e veneno ferino: — Quem diria, Glauber Rocha em Hollywood! Você ficou louco Você é um comunista, o que está fazendo aqui?
Terminada a brincadeira, chama Glauber Rocha a um canto e sussurra: — Isto aqui é o paraíso dos diretores socialistas!
Michael Medavoy, frustrado com o roteiro que Glauber Rocha manda-lhe, é polido e sincero: — Seu filme é a favor da revolução socialista e contra o imperialismo americano. Isso nós não podemos admitir.
No entanto, pondera, se Glauber Rocha estiver interessado em outro tipo de trabalho, faroeste, coisas assim, voltariam a conversar.
Numa reunião na United Artists, Glauber Rocha cita Bertold Brecht, esculhamba todo mundo, não faz filme nenhum e ainda ironiza: — Vocês não financiariam no Brasil com o dinheiro que têm retido lá?
Recusado por Allende, por Cuba-Icaic, pelo México, pela Mosfilm, United Artists, Franco Cristaldi, por Coppola e Serge Silbermann , nada feito. Os produtores não financiam os filmes de Glauber Rocha e não aprovam um roteiro que intuí o fenômeno da globalização e mostra a falência do Brasil onde tudo está à venda, onde qualquer pessoa com um punhado de dólares na mão compra qualquer coisa. É um roteiro profético do Brasil onde as nossas caras riquezas estão à venda por qualquer preço.
No Brasil, Roberto Farias custa muito, a liberar o dinheiro que Glauber Rocha precisa, o cineasta passa catorze meses esperando que a Embrafilme repasse-lhe as verbas.
É necessária uma conspiração que envolve os ex-ministros, João Paulo dos Reis Velloso e Petrônio Portella; os jornalistas, Oliveira Bastos e Fernando Lemos; os políticos, Roberto Campos, José Sarney, Golbery e Humberto Barreto que empurram o filme goela abaixo da cúpula da Embrafilme, que comanda a política cinematográfica e não reconhece muito Glauber Rocha apesar dele ser superconhecido no exterior, e solicitado para vários festivais, ao lado de Nelson Pereira dos Santos que também é muito reconhecido.
A Embrafilme repassa a Glauber Rocha 10% do que ele havia pedido para fazer o filme. O cineasta já contratou a equipe, e não pode parar, o jeito é arrancar seqüências inteiras do roteiro pela falta do dinheiro e "A idade da terra" vira quase uma sinopse de um épico. Na versão montada por Glauber Rocha o filme tem quatro horas e meia de projeção. A Embrafilme assisti, e pede que baixe para três horas e meia. Glauber muito contra a vontade corta o filme, uma hora, mostra novamente à Embrafilme que só distribuirá o filme se cortar mais uma hora, com 160 minutos. Então ele volta pra moviola e mutila a sua obra porque um bando de burocratas acha o filme longo.
Ao desmontar seqüencialmente "A Idade da Terra", Glauber cria uma nova expressão cinematográfica; o filme passa a poder ser visto de qualquer pedaço que se quiser.
Para lançar o filme depois dos cortes, outra guerra. Golbery de novo em ação. A Embrafilme não quer gastar um tostão com "A Idade da Terra".
— Não vamos dar nada para esse louco.
A Embrafilme inverte os papéis e deixa de perceber que "A Idade da Terra", é contraditório e que não vincula-se a qualquer receituário-ideário oficial.
"A Idade da Terra" dialoga com os filmes da Belair, combina scope e câmara na mão fora da altura do olho, fotograma abstrato e fotogramas inaproveitáveis aproveitados, véus e ab-cena. O infracenso da linguagem: a câmera giratória filma a própria equipe que filma, o atrás da câmera. Jogo de foco e som direto com todas as interferências. Circumcena e claquetes, o diretor dirige o indirigível. Para-cena e dia-cena, cena-ucrônica. Tudo isso, toda essa escolha, todas essas figuras, todo esse procedimento, toda essa concepção de produção e expressão.
Eu já estava mais ligado aos rituais primitivos, quer dizer, ao teatro do irracional que é o teatro popular, mas já não no sentido de documento histórico, político, ou etnográfico, mas no sentido órfico, quer dizer, no sentido de pegar naquela matéria e transformá-la numa matéria audiovisual. Essa matéria estrutura um discurso que não se define, porque já não existe aquela crença - é um problema filosófico - na racionalidade da história, ou seja, numa dramaturgia que leve a resultados catárticos, como se arte fosse uma metáfora que com a revolução tudo se resolvesse. (...) A Idade da Terra reflete essa luta entre a história e a fantasia solta, deixando ver o que é que a fornalha do inconsciente produz em contato com aquela matéria cultural, como é que aquilo se pode transformar e como é que o cinema pode captar aquilo. Está mais próximo de um poema solto, um poema em verso livre. (...) Eu acho que a fé, a crença é uma coisa fundamental na criatividade artística. Eu acho que n’A Idade da Terra coloco um problema de crença porque, de certa forma, o filme investe o mito cristão, mas não o mito do Cristo católico, europeizado ou civilizado, investe numa espécie de cristandade, mas uma cristandade descristificada. O meu Cristo não morre, não vai crucificado. Acho inclusive que no meu filme não há sofrimento como nos outros filmes. Aí, acho que há uma crença num humanismo, numa espécie de humanismo revolucionário, qualquer coisa que... Glauber Rocha a João Lopes, in O século do cinema.
Desfilando e desdobrando-se pela tela em ópera carnavalesca e em cortejos místicos sem fim "A idade da terra", em clima de delírio e profecia, resgata o universo simbólico/ritual brasileiro costurando-o com a linha da metáfora.
Do Brasil-Colônia (capital Salvador) ao Brasil-Império (capital Rio de Janeiro) desaguando no Brasil República (capital Brasília), as consecutivas capitais do Brasil, tornam-se a cloaca do universo numa tentativa desesperada e extrema de universalização dos mitos religiosos num estilo descontínuo, fragmentário e caótico.
Num estilo descontínuo "A idade da terra" nos revela as imagens dilaceradas da cabeça de Glauber Rocha. É um testamento precoce arremessado nas telas antes de sua morte, um filme em que o público chega a rasgar as cadeiras e poucos o assistem até o fim e inclusive o cineasta sabia quem dormiu nas poltronas do Belas Artes.
— Quando ele estava terminando de fazer o filme ele não tinha mais dinheiro. Eu tinha uma casa, que ele me ajudou a comprar com o dinheiro que ele ganhou com "Cabeças cortadas". Aí eu vendi a casa para ele terminar o filme, que não estava nem finalizado quando ele recebeu o convite para o Festival de Veneza. Dona Lúcia Rocha.
Norma Benguell, teve o prazer, dentro do caos de perseguições políticas, de dar a Glauber Rocha a alegria de ganhar o prêmio de “melhor atriz coadjuvante da Radio Uno e Menção Honrosa em Veneza com o trabalho que ela fez.
Foi admirável que, praticamente morrendo, Glauber soube renovar suas concepções, renunciar às ostentações de vanguarda, para privilegiar antes de mais nada o prazer do público. Pena que ele faleceu sem poder fixar numa película essa sua nova visão hedonista do cinema. Sylvie Pierre.
Batalha dos Leões
Perto de ti a vida é um paraíso/ é o mundo a derramar felicidades/ a tristeza transformada em riso/ Perto de ti a vida não tem mágoas/ é um jardim repletíssimo de flores/ Longe de ti meu coração palpita/ minha alma chora entristecida e louca/ chego a ouvir a minha voz aflita/ E o sorriso esqueceu a minha boca
Versos que dona Lúcia Rocha fez para o filho no aeroporto no dia em que este embarcou para o exílio final.
Glauber têm muitos admiradores e espera que os críticos reconheçam o valor do filme para que ele se recupere, porque ele é supersensível com tendência a não aceitar críticas.
Contra o embotamento da sensibilidade, os complôs dos empresários europeus e a esclerose da inteligência crítica, Glauber Rocha leva à Europa, "A Idade da Terra" para a XXXVII Mostra de Cinema de Veneza, da qual fora convidado à participar, já estava acordado que o filme seria premiado ao fim foi boicotado. "Atlantic City" de Louis Malle e "Glória", de John Cassavetes dividem o prêmio. Quando o filme passa a crítica italiana o malha igual à brasileira. Glauber Rocha não estava fazendo o filme para ganhar. Mas aí o francês Louis Malle o provoca.
— Glauber, cabeça fria. Festival é assim mesmo. Nem todos podem ganhar.
Glauber Rocha, responde: — Você é um cineasta de segunda categoria. Não tem condições de me derrotar. Você é medíocre, faço cinema do futuro e você uns filmezinhos comerciais. E continua: — Malle, você sabe que não é nada disso. O que se passou aqui foi algo muito diferente. Você ganhou o Leão de Ouro porque as cartas estavam marcadas. Você venceu porque o seu filme foi produzido e teve a promoção da Gaumont, uma multinacional imperialista.
Malle ironicamente, volta ao diálogo: — E o seu filme foi produzido por quem?
Pela Embrafilme, uma empresa estatal de meu país. Responde Glauber Rocha.
Malle irônico: — E o Brasil não tem um regime fascista? Ou você é daqueles que acha que — Figueiredo é democrata?
Glauber Rocha berrando: — Fascistas são vocês, que manipulam as multinacionais do cinema, que impõem toda sorte de mediocridade ao mercado do Terceiro Mundo.
— Fascista é você, Malle, e não o presidente Figueiredo, que está redemocratizando o Brasil. Devido ao ataque Malle fica paralisado e Glauber Rocha avança...
Diante da fúria do leão das 7 cabeças, Malle abandona o saguão do Hotel Excelsior, Glauber Rocha de dedo em riste ainda repete:
— Fascistas! Fascista!
Malle perde a cabeça e volta correndo. Aproxima-se de Glauber Rocha, como se fosse agredi-lo. Glauber arma a guarda e grita: — Quebro a sua cara, fascista.
Depois de apartados, Glauber ainda bate:
— Oh Malle, você Nouvelle vague, sempre foi servil à sub-Hollywood, por isso fique sabendo que você merece é um leão de merda, e não o leão de ouro.
O valente Rocha não aceita o resultado do prêmio e, com a coragem inata, investe contra os críticos, jornalistas e o próprio vencedor, o comportado "Atlantic City". Ninguém mete o dedo na cara dele. Quando chega na rua, que está cheia de pessoas, todos gritam Glauber! Glauber! Aplaudindo-o. Glauber Rocha agita e não paga o hotel, manda Carlo Lizzani, organizador da mostra pagar. Denuncia que o júri está vendido a Hollywood. Segundo Glauber Rocha a direção do festival, favorece o cinema comercial — É uma vergonha, o júri foi pago pelos Gaumont, Columbia e pela RAI-Radiotelevisione Italiana. É um festival comercial e não um festival cultural.
O jornal editado pelo festival comunica, por meio de uma nota, que não publicará mais nada relativo ao seu filme até que ele retrate-se, devido às suas declarações “inadmissíveis e injuriosas”.
Por causa do escândalo A Idade da Terra não será apresentado no II Festival de Cinema Ibérico e Latino-Americano de Biarritz.
Ao ser criticado, um Glauber Rocha enojado investe violentamente contra os 18 jornais italianos que tinha lido pela manhã, unânimes em considerar sua mais recente obra uma lamentável e precoce revelação do crepúsculo de seu talento e da grande confusão mental em que vive e trabalha desde que voltou ao Brasil.
Glauber Rocha parte para uma agressão generalizada, mais veemente e contundente no caso de três críticos - Grazzini, do Corriere Della Sera: — Uma montagem paranóica e uma recitação de obsessivos, um acúmulo de sons e cores que não transmitem nem emissões nem idéias. (...) Acolhido como um filho pródigo pelos militares e como um traidor pelas esquerdas, por seus velhos companheiros de rua. Savioli, do L’Unita, e Micciché, do L’Avanti. — Além de estúpidos, decadentes, corruptos, vendidos ao capital americano, intolerantes, escravos, imperialistas como os demais. Teriam a agravante de agir como burocratas de Partidos. Glauber Rocha não perde a oportunidade para declarar, numa conferência de imprensa:
— A cultura européia está acabada, o Cristo é do Terceiro Mundo, o futuro é o Brasil, quem pensa que este seja um país fascista erra grosseiramente. E retira-se, furioso, da entrevista. Antônioni, discorda do discurso, mas identifica em cada plano do filme um acontecimento, saí em defesa pública, afirma que "A Idade da Terra" será um filme compreendido depois do ano 2.000. Antônioni faz talvez a melhor definição de trabalho: — Os filmes vencedores são produções corretas e comuns. Logo serão esquecidos. Mas "A Idade da Terra" é um filme que não se esquece nunca, que deixa sua marca em nós para sempre.
Alberto Moravia vibrou durante a sessão. Margareth von Trotta, no júri, apoia Glauber discretamente. Le Monde, Humanité, Libération e o próprio Cahiers du Cinemá publicam críticas favoráveis. Naquela altura do campeonato, o procedimento desses intelectuais franceses representa um alívio na humilhação e mágoa que corroíam Glauber e alteravam seus planos eventuais de estabelecer-se na Itália.
— Chamaram ele de ‘o grande’, ‘o gênio’, ‘o sábio’. Parecia uma Torre de Babel todo mundo falando uma língua. Todo mundo tinha aplaudido o filme. Lúcia Rocha.
Estávamos ambos hospedados no Hotel Excelsior. O filme de Glauber não foi bem recebido pelos críticos. As pessoas não entendiam que, de repente, o filme era uma espécie de homenagem ao regime militar. Não me lembro dos detalhes. Glauber era em geral amado pelos críticos do mundo inteiro. Ele teve uma entrevista coletiva em que ficou muito nervoso e começou a atacar cineastas como eu e John Cassavetes e acabamos por dividir o leão de ouro. Glauber disse que eu tinha ido a Hollywood e tornara-me um verdadeiro capitalista. É claro que não fiquei contente com aquilo. (...) Soube depois na França que a imprensa brasileira fez um grande barulho sobre isso, mas no resto do mundo a imprensa levou em conta o contexto. Um dia depois, mais ou menos, eu estava voltando ao meu quarto, tarde da noite, e vi Glauber andando pelo corredor, embalando um bebê e cantando para ele. Olhei para Glauber e ele para mim e tivemos uma pequena conversa. Foi a última vez que o vi. Na manhã seguinte voltei a Paris e ele morreu pouco depois. Minha última imagem de Glauber foi bela. (Louis Malle em entrevista a Amir Labaki, Caderno MAIS, Folha de São Paulo, 21 jan. / 1996.)
textos: Mário Pacheco