1970-71: O LIVING THEATER NO BRASIL

Living Theater na Fazenda Capuava
(J. Toledo)

TRECHO

Naquela mesma época, Julian Beck (1923-1985) e Judith Malina (1926- ) estavam em São Paulo organizando uma espécie de filial tropicalizada do Living Theater, aliciando gente e promovendo palestras bizarras. Parte do grupo andou pela fazenda também, mas, com um pessoal meio estranho e soturno. De teatro mesmo, nada! No fim, à guisa de happening, todos se drogaram, mijaram na piscina e entupiram as privadas da casa.

Soube-se que mais tarde, ao participar do Festival de Inverno, acabaram tristemente nas masmorras de Belo Horizonte, depois de uma escandalosa estada em Ouro Preto, onde fumaram de tudo, sempre pregando, de forma utópica, o amor livre e vida tribal descompromissada com padrões éticos e sociais do establishment burguês...

Pelo seu próprio ideário revolucionário, as propostas agradaram a Flávio, mas, ainda que fosse um inveterado sentinela liberal das liberdades individuais, naquela tarde ele ficou furioso como nunca fora visto e passou então a ostentar uma certa vigilância, a fazer uma minuciosa triagem de seus convidados. Liberalismos em excesso, somente aqueles que não afetassem a integridade física de seu santuário... Mas aquilo não obstou que ele se manifestasse contrário à violência sofrida pelo grupo lá em Minas...

*Transcrito do livro "FLÁVIO DE CARVALHO O COMEDOR DE EMOÇÕES", autor J. TOLEDO. Editora Brasiliense/Editora UNICAMP. 1994.

Até as cores eram patrulhadas!
(Oscar Araripe)

A contracultura já me pegou no berço. Filho de pai médico e mãe descendente de heróis e heroínas (os Alencar Araripe, da Confederação do Equador, movimento libertário pela independência republicana), morei minha infância no subúrbio proletário do Encantado, no Rio, entre pipas e navalhas, piões e trilhos de trem, campos de futebol e morros e rios já devastados. Depois, subitamente, me vi no Arpoador do fim dos anos cinqüenta e fui garoto de Ipanema antes da Garota.

Aí entrei pra Faculdade Nacional de Direito onde fui secretário do CACO, já no início da Ditadura Militar, meu diretório foi cassado e não podíamos entrar na Faculdade. Perseguido, nunca me deixei ser pego. Convidado para a luta armada, descobri a pessoa e militei na AP. Aí virei jornalista do Jornal do Brasil, do Correio da Manhã, e etc...

Morei em Roma. Era amigo do Rei, do Chico, do Vinícius, da Beth Carvalho, do Ungaretti, do Araújo Neto, do Paulinho Tapajós, do Toquinho, do Eduardo Souto, da Marieta. Amei Melina Mercouri. Também morei um tempinho em Amsterdã, Paris e Londres, em pleno 68.

Publiquei três livros. Um sobre a China. Antes tinha ganho uma bolsa de estudos de verão em Harvard, em 66 e 68. Na China vi a Revolução Cultural e nos Estados Unidos o nascimento do psicodelismo, dos movimentos dos direitos humanos e da campanha contra a guerra do Vietnan.

No campus de Harvard conheci Timothy Leary - eles sentavam na grama em roda, em frente ao Fogg Museum, e ficavam ali viajando, conversando. Qualquer um podia se aproximar, tomar e sentar ou sentar e tomar e conversar, sempre concentrado ou rindo. Destaco que para mim, que queria derrubar a Ditadura, aquilo era algo estratosférico, que metia medo, mas atraía. Um dia vi o grupo de Leary e Alpert dançando os primeiros movimentos do twist numa festa de jovens sobre os túmulos dos heróis americanos na Igreja de Harvard. A descontração deles face à minha contração era algo notável. Leary me disse que o LSD podia ajudar a derrubar a ditadura brasileira. Alí devia ter coisa, certamente, mas não via meus companheiros de militância tomando o ácido, já que até as cores das nossas camisas eram patrulhadas na época! Mas a vida me empurrou para o teatro. Um dia, em Brasília, representávamos “Um Bonde Chamado Desejo”, no Teatro Nacional, e lá pelas tantas tinha uma fala que chamava o truculento Kovalski de Gorila. Era a terceiro dia após o AI-5, de modo que o Ministro Gama e Silva resolveu proibir eu e Maria Fernando de representar. Fomos reclamar pessoalmente, ocasião em que após uma discussão, tive a honra de chamar o ministro de "fascista". Este incidente provocou a inusitada Greve do Teatro. Bem, por falar nisso, havia um teatro (Julian Beaumou) em Harvard, do lado do cemitério. Aí eu namorei uma jovem atriz e juntos visitamos Judith Malina e Julian Beck em New York. Bem, Judith é uma mãe. É a mãe do grupo. A mãe geral! A ultima vez que estive com ela, em Ouro Preto, em 1992, em minha casa sobre a Casa dos Contos, na Rua da Fazendinha, onde morei e pintei por três anos, ela fez uns trinta “fininhos”, muito finos mesmos, e após dar a primeira golfada passava um por um para toda a sua trupe em roda dela. Imagino o prazer contraculturalístico que tiveram, pois fazia trinta anos que tinha sido presos em Ouro Preto por uma armação de maconha e aquela era a primeira vez que voltavam à cidade. O teatro do Living Theater, se é que se pode dizer assim, melhorou muito, pois foi caminhando em direção à vida e ao jornalismo de denúncia. Assisti duas representação maravilhosas em Ouro Preto - uma no átrio da Igreja do Rosário e outra no Palácio dos Governadores, esta última realmente inovadora, um teatro-jornal com arte.

Bem, a contracultura não só continua em mim como está aí. Pois o artista vive no céu do inferno e na pureza da lama. E o mundo virou o que a contracultura quis impedir. Na verdade tem andado muito contrafacetada, mentirosa, muito paragonlé, muita trança, muito tropicalismo, muito baby, muito oba-oba, muito paulistismo, baianismo, carioquismo, muito esoterismo, oportunismo, dinheiro, autodestruição, enfim, muita fraqueza humana. Mas está aí. Espalhadíssima. A contracultura hoje é a pessoa. Uma pessoa, hoje, realmente pessoa, vale por mil bombas atômicas. E de uma coisa eu tenho certeza : o mundo seria bem melhor durante a revolução cultural, já que ela, como a contracultura, deve ser permanente.


O Living Theater no Brasil

Zéca Ligiéro* -Trad.: Valéria de Castro Sant'Ana

A primeira vez que eu ouvi falar sobre o Living Theater foi em 1970. Eu era um estudante de direção do antigo Conservatório de Teatro no Rio de Janeiro (hoje Escola de Teatro da UNI-RIO) e estava interessado em teatro experimental e de vanguarda. Era uma época difícil para os artistas brasileiros porque a ditadura era muito severa - muitos artistas estavam presos, vários teatros estavam fechados. O Living Theater chegou ao Brasil e sua presença deu uma importante dimensão internacional à nossa luta contra o sistema militar repressivo.

Mas o Living Theater estava trabalhando principalmente em São Paulo e eu não soube deles, até que eles fossem presos. Naquela ocasião a imprensa brasileira deu uma grande cobertura a prisão porque um pouco de "marijuana" foi encontrada na casa ocupada pelo Living Theater em Ouro Preto, Minas Gerais.

A natureza de sua atividade política, entretanto, não era inteiramente compreendida pelo público e pelas autoridades brasileiras. As razões de sua prisão foram sensacionalizadas pela imprensa brasileira, dando a ela um tratamento de novela - o típico gosto brasileiro. As manchetes destacavam: "Julian Beck se tornou avô enquanto estava na cadeia", referindo-se ao nascimento de sua neta nos Estados Unidos; "A Mãe de Julian Beck vem ao Brasil para ver seu filho", e o encontro foi descrito como muito dramático; "As atrizes do Living Theater fazem yoga com outras prisioneiras na prisão feminina", referindo-se ao trabalho delas na prisão; "Eu libertei meu filho", declarou o pai de Ilian Troya depois de ver seu filho aprisionado por ter se juntado ao grupo alguns meses antes. Paradoxalmente, o jornal mais conservador, O Estado de Minas, começou a publicar os diários de cela de Malina pela primeira vez.

Finalmente, o General Médici, nosso ditador naquela época, expulsou do país o Living Theater porque eles denegriram o bom nome do Brasil na imprensa estrangeira. Mas o que o Living Theater disse sobre as razões da expulsão permaneceu desconhecido para a maioria da população brasileira.

Quinze anos mais tarde eu encontrei Ilyan Troya ainda trabalhando com o Living Theater, e morando em Nova York no mesmo apartamento de Malina (Julian havia morrido há dois anos). Um par de meses depois, junto com outros atores brasileiros, eu trabalhei numa produção de vídeo da TV Brazil que seria exibida pela TV Educativa no Rio de Janeiro em 22 de maio de 1986. Discutindo as experiências do Living Theater com enfoque especial na turnê brasileira, o vídeo foi chamado simplesmente: "The Living Theatre".

Naquela entrevista, Judith Malina e Troya mostraram um material abundante sobre seu trabalho e suas práticas. Os dois pontos que mais me interessavam foram o Projeto "Favela" e o subsequente encarceramento do grupo. O Projeto "Favela" foi desenvolvido como criação coletiva com estudantes e encenado na comunidade da favela de morros da periferia da capital paulista. Eu tinha curiosidade sobre como o grupo funcionava, porque no Brasil nós não tínhamos informações sobre isso. O outro ponto, o Living Theater na cadeia, me interessava por causa de seu conteúdo político e com tremendo impacto em ambas as imprensas, internacional e brasileira, naquela época.

O Projeto "Favela"

O interesse de Beck e Malina no Brasil começou quando eles estavam em Paris. O convite de vir ao Brasil veio do Teatro Oficina de São Paulo e abriu novas perspectivas para ambos os grupos. Ainda em Paris, eles se prepararam para sua experiência brasileira. Eles leram "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freire, que seria muito importante para as pesquisas deles, e começaram a estudar o português falado Brasil. Além disso, eles assistiram alguns dos mais importantes filmes do Cinema Novo e se encontraram com o diretor brasileiro Glauber Rocha. Judith Malina explicou as razões de sua turnê brasileira:

Na época, quando nós estávamos trabalhando como uma pequena organização de apoio ativo em Paris, Zé Celso veio até nós e nos contou sobre a situação do Oficina e todas as pressões que caíram sobre eles. E muito pouca coisa era possível na época; talvez nada pudesse ser feito. Eles foram brutalizados, suas vidas estavam em perigo, os atores estavam na prisão, teatros estavam fechados e, sendo um homem aventureiro, Zé Celso disse: "Se o Living Theater pudesse vir, poderia ser muito importante para nós". E, então, tendo muito poucos pertencentes, nós fizemos as malas e fomos para o Brasil. (Entrevista - TV Brazil - Fev. 1986)

No Brasil, o Living Theater iniciou um trabalho progressivo com o Teatro Oficina e Los Lobos, um grupo de teatro experimental da Argentina; entretanto, a apresentação nunca foi concluída porque não era possível unir três ideologias e linguagens de palco diferentes em uma única peça. Cada grupo tinha uma convicção muito forte e visões diversas sobre as funções do teatro. O Living Theater era guiado pelos conceitos anarquistas da ação revolucionária, enquanto o Oficina tinha orientação marxista e era um dos mais famosos no Brasil na época, assim como o Los Lobos em seu país, só que este último concentrava-se num preparo físico e formal do ator sem precedentes na América, neste sentido, ainda mais radical que o próprio Living Theater. O processo de colaboração do Living Theater com os artistas latino-americanos naquela ocasião, embora bastante desejado, era muito difícil porque a nossa luta contra a opressão do capitalismo internacional nos deu um forte desejo de auto-suficiência em nossa produção. Nós estávamos discutindo assuntos como a importância da arte engajada e a busca por uma linguagem tipicamente brasileira. Dois movimentos foram consolidados no final dos anos 60, a Bossa Nova e o Cinema Novo, ambos tendo "nova" ou "novo" em seus nomes. Ambos estavam procurando uma "nova" arte que incluísse nosso país e seus problemas sócio-econômicos. O Living Theater, embora afinado ideologicamente com a nossa luta, tinha um processo de trabalho e uma estética bastante peculiar e teve que trabalhar sozinho, buscando sua própria alternativa em face da realidade brasileira.

O próximo passo significativo foi uma mudança no contexto teatral. Eles decidiram representar do lado de fora do espaço habitual do teatro. O Living Theater queria ser parte da batalha do povo brasileiro e, conseqüentemente, trouxe o seu trabalho para as ruas. Se eles insistissem em trabalhar no palco como uma companhia profissional, eles teriam de se submeter às regras militares - sujeitar o texto e a performance à censura militar e restringir suas performances apenas à classe média, que era o único público do teatro. Nas ruas eles tinham uma chance maior de expressar suas mensagens e ter um contato direto com o povo brasileiro.

O encontro com os habitantes da favela do Buraco Quente na periferia de São Paulo, uma das comunidades mais pobre do Brasil (parcialmente destruída em 1998 por um incêndio catastrófico), marcou uma mudança definitiva nos trabalhos do Living Theater. O impacto da primeira visita do Living Theater àquele lugar foi descrito por Malina:

Os Mais Pobres

"O Buraco Quente e o Buraco Frio. No vale entre duas ruas duas comunidades de madeira do tipo mais primitivo. O cenário é o de total desolação/desespero, pobreza sem esperança. A coisa toda agora foi trabalhada progressivamente durante meses. O trabalho começou em Croissy - Sun - Seixe no último inverno. Então, ele realmente já começou há quase um ano; e, a este ponto, a dezoito dias dele, o espetáculo Favela não está nem mesmo pela metade ...

Mas ele permanece sobre uma base firme.

Como se minha vida inteira estivesse a este ponto: o teatro está na rua". (A Vida do Teatro - 1972)

Em dezembro de 1970, o Living Theater começou a preparar a performance com alguns estudantes da Escola Dramática na Universidade de São Paulo. A peça tornou-se muito mais clara quando ela foi desenvolvida em oito cenas: (1) A procissão dos olhos vendados; (2) Questão: O que o povo quer? (3) Seis histórias sobre: dinheiro, morte, amor, propriedade e o Estado; (4) A favela fala e a abertura dos olhos; (5) Transe, o contrato social e servidão; (6) Libertação; (7) Bolo; (8) Encontro.

O contato com as pessoas e o local da favela deu ao grupo mais conhecimento sobre os próximos passos a dar em seu trabalho. Eles ficaram familiarizados com a vida da comunidade, seus problemas, seus sentimentos e suas esperanças. Eles entrevistaram alguns habitantes da favela fazendo perguntas abertas como: "Conte-me um pouco sobre você e sua vida, fale-me um pouco sobre sua comunidade aqui, quais são suas esperanças para o futuro e com e o que você sonha". Alguns dos tapes foram colocados no ar com alto-falantes durante a quarta parte da performance.

Beck e Malina trabalharam em levar as histórias para o palco em um estilo relacionado ao trabalho do grupo em 1951, quando eles fizeram "Aqueles que dizem sim e aqueles que dizem não", de Brecht. "Um certo estilo didático, narrativo, com um diálogo e uma encenação poéticos", comentou Malina em seu diário. Ela também criou muitos desenhos interessantes ilustrando o desenvolvimento de suas idéias - trabalhando como uma cartunista, buscando uma visão sintética.

O trabalho progressivo tornou-se intensivo: longos ensaios, questões, novas pesquisas e discussões. Em 21 de dezembro a performance estava quase pronta; entretanto, lá fora os problemas começaram a interferir diretamente no trabalho, porque a universidade estava impedida de dar performances nos morros, onde os eventos políticos eram proibidos pelos militares. Finalmente, os estudantes participaram como indivíduos, não como elementos da Universidade. A despeito de toda a paranóia, em 23 de dezembro, o Living Theater entrou na favela tocando a sua música.

"As crianças nos seguem, descalças e felizes.
Nossa canção, e a nós também, é alegre, embora as palavras sejam tristes
Nós avançamos excitados porque
é nosso primeiro teatro de rua,
é a entrada para o outro lado do mundo
Nós fomos avisados dos perigos
é a "noite de abertura" no sol do meio-dia."
(Diário de Malina - 23 de Dezembro)

No início do show o público era composto principalmente de crianças e mulheres porque era um dia de trabalho. Ele aumentou ao longo do evento, que durou cerca de duas horas. Os adultos ficaram atrás das crianças, que cercaram a ação. Era um sinal de real envolvimento nela. Na primeira parte, como escreveu Malina, eles sorriam, ouvindo cuidadosamente e permanecendo interessados nas histórias. Houve dois momentos especiais, como Malina descreveu:

"Mas quando chegou o rei com o filho de pés descalços eles estavam acesos.
Nós também estávamos. Era um grande momento.
José Bento saltou de dentro da caixa cheio de fervor e gritou, atacando o rei: "Eu exijo um par de sapatos."
Nossos olhos passaram ao redor do círculo de crianças descalças com seus pés pretos no barro fresco.
E mesmo as crianças de seis anos sentiram de repente, "Isto é uma brincadeira a respeito dos meus pés".

As crianças reconheceram que suas próprias vidas estavam sendo representadas pelos atores e os objetivos do Living Theater foram alcançados. A vida estava dentro do ritual da representação; arte e realidade estavam integrados na performance.

A segunda passagem descrita por Malina aconteceu da segunda à última ação, quando os atores estavam presos em cordas apelando para os moradores da favela:

Assim, Paulo perguntou se as pessoas nos desamarrariam.

E aí seguiu-se uma pausa durante a qual as decisões foram tomadas. E, então, eu vi uma mulher e um homem virem da direção das pessoas, primeiro timidamente, e logo, encorajados pela confiança delas, moverem-se bravamente e começarem a remover as correntes. E duas crianças desamarrando Julian e uma mulher descalça soltando as cordas em volta de Jimmy. E então, um homem veio em minha direção e ele me desamarrou, curvou-se e sussurrou: "Amanhã o povo vai libertar todo o mundo".

"Meu libertador, um homem no final de seus quarenta anos com uma pele enrugada, pés descalços e usando uma camisa branca, sorriu quando eu iniciei o som do coral e imediatamente juntou-se a ele. E quando eu estava livre eu levantei suas mãos com a minha e um círculo estava se formando e nós nos juntamos a ele e fizemos um som de absoluta satisfação quando o bolo foi trazido." (Diário de Malina - 1970)

Nesta performance não foi o ator que libertou o público, como no modelo clássico. Aqui é o próprio público que precisa agir com o objetivo de ser livre e criar liberdade.

No Projeto "Favela" os atores e o público encontraram um "final feliz" comendo um bolo trazido pelo grupo para comemorar o espírito comunal do Natal. Entretanto, o próximo trabalho do Living Theater, uma criação coletiva com estudantes secundaristas, seria brutalmente interrompido pela força de repressão brasileira.

Performance de uma Prisão
O Living Theatre foi para Minas Gerais, o mais conservador estado brasileiro, e começou a trabalhar com expressão corporal, o que era considerado "imoral" e "revolucionário". O Bispado Católico chamou a polícia para agir contra o Living Theater, acusando seus membros de molestarem crianças sexualmente.

A Polícia Federal invadiu a casa onde as pessoas do Living Theater estavam vivendo, procurando por terroristas. É claro que eles não encontraram armas, mas acharam uma pequena quantidade de "marijuana", o que foi suficiente para incriminar o grupo. Eles levaram presos alguns dos membros do Living Theater. A polícia Federal retornou à casa do Living Theater e escondeu mais "marijuana" e conduziu uma nova batida com a cobertura da imprensa. Os livros, jornais, fotos do Living Theater foram confiscados como material imoral e subversivo. Alguns dias mais tarde os líderes do grupo, Julian Beck e Judith Malina, foram levados presos.

Os brasileiros não poderiam libertar o Living Theater como o público tinha feito na performance da favela. Na prisão o grupo apelou para a ajuda internacional. O Living Theater sentiu a opressão do regime político brasileiro naquela época. Os membros do grupo foram divididos e enviados a três prisões diferentes para esperar pelo julgamento.

Declaração do Dia da Bastilha

O Living Theater veio ao Brasil porque ele foi convidado pelos artistas brasileiros a ajudar na luta pela liberação em uma terra na qual eles descreveram a situação como 'desesperadora'. Nós concordamos porque acreditamos que é hora dos artistas começarem a levar o conhecimento e o poder de sua atividade aos infelizes da Terra.

Aqui no Brasil nós tentamos, através da mais alta expressão de nossa arte, aumentar a consciência entre os mais pobres dos pobres, entre os trabalhadores das fábricas, mineradores e suas crianças.

A prática de nossa arte nestas áreas esquecidas fez recair sobre nós a ira das forças de repressão e nós somos agora acusados de subversão, além de posse e tráfico de drogas. Nós não estamos sofrendo no sentido que 70 milhões de pessoas neste país, que são diariamente torturadas pela fome, estão sofrendo; mas nós somos prisioneiros na luta de vida e morte pela consciência livre no planeta.

Nós apelamos a nossos amigos, nossos aliados por qualquer ajuda que eles possam reunir, de maneira que possamos continuar a desenvolver e praticar nossa arte a serviço daqueles que são os prisioneiros da pobreza.


Julian Beck / Judith Malina
The Living Theater
Celas de Detenção, DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social)
Belo Horizonte, Brasil
Dia da Bastilha, 1971 (Le Monde, 1971)

O apelo foi publicado pela imprensa internacional e deu a eles enorme notoriedade por todo o Brasil. Como prisioneiros eles representaram um sério problema para o regime ditatorial, porque eles revelaram ao mundo a gravidade da situação dentro das prisões políticas brasileiras, o DOPS.

O caso legal de Beck se tornou um importante assunto, tanto na imprensa internacional quanto brasileira. O cônsul americano interviu. Finalmente, um veredicto foi declarado e o Living Theater expulso do Brasil por denegrir a imagem nacional no exterior, de acordo com o presidente Médici.

Depois da expulsão o Living Theatre continuou a desenvolver seu trabalho nos Estados Unidos. A primeira apresentação na série de performances de rua, criadas no Brasil, continuaram a influenciar outras peças do Living Theater - algumas das canções e histórias eram transformadas e incluídas em outras performances. Contudo, as mais poderosas em suas performances posteriores eram as cenas de tortura baseadas em suas experiências nas prisões brasileiras representadas em sua criação de 1973: "Sete Meditações Sobre o Sado-Masoquismo Político".

O aspecto mais evidente da jornada do Living Theater no Brasil foi o desenvolvimento de seus conceitos teatrais e a profunda organização de sua compreensão. Foi uma dura lição, mas uma inspiradora também. De volta aos Estados Unidos, eles continuaram a lutar pela liberdade das pessoas na América Latina.

Em minha retrospectiva do Living Theater no Brasil eu considero a performance da Favela uma experiência interessante do teatro de guerrilha envolvendo elementos sintéticos e mensagens determinadas. Era uma performance ambientalista que incluía a participação do público em diferentes níveis - como observador, como performer e como material novato para os eventos. Devido à maneira que o grupo agia dentro de uma comunidade e aprendia sobre seus problemas específicos, ele criava uma peça dirigida àqueles problemas e, finalmente, representava-a para a comunidade; é difícil imaginar qualquer destas performances sendo transplantadas para um outro ambiente. Assim, estas performances devem ser vistas como eventos circulares com início e fim em si mesmas.

Em 17 de outubro de 1988 o Living Theater mostrou o seu Retrospectacle (Retroespetáculo) no palco do teatro da Universidade Cooper Union em Nova York. O grupo que se apresentou aquela noite foi composto inteiramente dos membros da Companhia Living Theater de várias fases de sua história. A canção O Que é a Vida ("What is Life?") que abriu a performance da favela foi tocada e cantada. Mas o cenário usado para descrever a experiência brasileira do Living Theater foi a cena de tortura da peça Sete Meditações ("Seven Meditations") Aquela cena se tornou um símbolo de uma época em que o Living viveu no Brasil, bem como o Living Theater tornou-se para nós, povo brasileiro, um símbolo da arte revolucionária.

* Diretor teatral, professor adjunto do Departamento de Direção e do Mestrado em Teatro na UNI-RIO. Doutor em Estudos da Performance pela New York University.

 

Living promove catarse de rua em Campinas
(Marco Henrique Veloso*)

Para quem não conhecia ou já tinha se esquecido, o Living Theater não decepcionou em sua passagem pelo Festival Internacional de Teatro de Campinas. O grupo, atualmente comandado pela atriz Judith Malina, apresentou na manhã de sábado o resultado do 'worshop' realizado durante a última semana. O Living Theater revolucionou o teatro da década de 60, com seus espetáculos públicos de espírito anarquista.

Às 10h16 de sábado, o ator Ilion Troya, 43, brasileiro de Rio Claro, que há quase 20 anos trabalha como o Living, deu início ao espetáculo 'Três atos públicos', que durou pouco mais de uma hora e meia e que envolveu mais de 300 pessoas. Com megafone na mão, Ilion anunciou a hora e a primeira parte de 'Três atos públicos'.

O grupo de 70 atores partiu em caminhada do largo da Catedral, dirigindo-se rumo ao largo do Rosário. O nome 'Passeata da alienação da vida cotidiana' diz bem o que se passou. Parecendo um grupo de turistas esquizofrênicos, o elenco deixou perplexa a população que vinha pela rua de comércio. A cena e o sol eram de rachar.

No largo do Rosário o grupo se concentrou com gritos e expressões de dor. Curiosos perguntaram pelo que se passava. A palavra teatro não significa muito nessas horas. Ilion Troya anunciou a hora e o primeiro ato público. Encarando a platéia de perto cada ator lançou uma pergunta, alguns dramatizando, outros sem qualquer afetação: "não me é permitido passear sem a minha carteira de identidade?", "eu não posso viver sem dinheiro?", "não me é permitido beijar o teu rosto?".

Às 10h31, Ilion Troya encerrou o primeiro ato e declarou o início da segunda passeata. Na 'Passeata da violência assassina' eles se agrediram de todos os modos.

Na praça diante do Palácio da Justiça, Ilion anunciou o segundo ato público: 'A casa do Estado'. Deitaram-se diante do prédio como "reverência ao Estado". Um por um anunciou a razão de se prostrar.

Após, Ilion e o ator Sérgio Maberti deram início ao 'Sacrifício do sangue'. Cada ator deu um corte no dedo, mostrou o sangue e fez a sua declaração: "Esse é o sangue dos estudantes chineses", "das crianças que morreram durante a gestação", "das prostitutas e dos meninos abandonados", por exemplo. Pessoas que assistiam também participaram.

Às 11h15, depois da 'Passeata erótica', teve início o terceiro ato 'A casa do amor'. Um garoto de rua perguntou a Ilion o que estava acontecendo. Ele respondeu que era teatro para quem não tem dinheiro para pagar uma entrada e perguntou se não era uma boa. Após cenas de amor e paixão, os atores amarraram-se uns aos outros com cordas ("Cena do amor que escraviza').

Passado um tempo, o público os libertou e o objetivo do grupo foi atingido. Em seguida, com a participação de mais de 300 pessoas, um grande círculo foi feito em torno da praça. Um 'oh' contínuo foi entoado e um grupo de pombas retornou ao largo. O The Living Theater havia demonstrado que a moderna catarse não tem endereço.

Ilion Troya disse que ficou bastante surpreso com a participação do público. "As pessoas se comportaram como público. Na Europa, eles agridem, os carros não param, enquanto aqui muita gente que passava se juntou ao grupo", declarou. Ele crê que dessa experiência fica a confirmação de que é possível se fazer arte para a rua sem ser folclore e o desmentido de que o teatro correto precisa de um lugar e um aparato técnico para acontecer.

*Folha de S. Paulo. 9 abr. / 1990.

 

Decreto de Collor dá visto para Judith Malina

A fundadora do Living Theater, Judith Malina, chegou ontem de manhã ao Brasil para participar de 'workshops' do Festival Internacional do Teatro em Campinas. Sua entrada foi autorizada por um decreto do presidente Fernando Collor, da última terça-feira, que revoga um outro decreto, de 27 de agosto de 1971, referente à expulsão de Judith do território nacional. Os 'workshops' acontecem no sábado, dentro da programação do festival.

*Folha de S. Paulo. 5 abr. 1990.

 

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