Jonas Mekas: Cronista do Underground de NY
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Cronista do Underground de NY emerge de mostra em SP
(Tiago Mata Machado*)
Pra mim Andy Warhol e a Factory nos anos 60 eram como Sigmund Freud. Andy era Freud. Ele era o analista, havia aquele imenso divã na Factory, e lá estava Andy, ele não dizia nada, você podia projetar qualquer coisa nele, pôr qualquer coisa, podia desabafar, jogar tudo em cima dele, e ele não ia te repelir. Andy era pai, mãe, irmão, tudo. Então é por isso que aquelas pessoas se sentiam tão bem perto dele - elas podiam estar naqueles filmes, podiam dizer e fazer qualquer coisa que quisessem porque nã seriam reprovadas, aí estava a geniaidade dele. Andy admirava todas as estrelas: portanto, pra agradar todas aquelas pobres almas desesperadas que apareciam na Factory, ele as chamava de superstars.
(Jonas Mekas)
Se Maya Deren foi, para a história do cinema experimental americano, a mãe e musa inspiradora; se Kenneth Anger foi o mito; Andy Warhol, o papa; Jack Smith, o iconoclasta (demoníaco); Stan Brakhage, o arquiteto; Jonas Mekas coube o papel de polemista e agitador.
Mekas, autor dos dois filmes que abrem hoje a mostra de cinema e vídeo experimentais promovida pelo Itaú Cultural, era, na Nova York do final dos anos 40, um imigrante lituano foragido da guerra que começava a substituir pelo cinema de vanguarda o seu interesse pela poesia romântica.
Alguns anos mais tarde, depois de fundar com o irmão e parceiro Adolfas a revista "Film Culture" e se tornar um colunista influente do "Village Voice", Mekas já polemizava com a velha-guarda do cinema experimental americano, alfinetando tanto a geração abstracionista dos anos 50 quanto a vertente simbolista capitaneada por Maya Deren.
Impertinente, o jovem Mekas sugeria à velha-guarda que amadurecesse mais os seus temas em favor de uma abordagem mais profunda das questões contemporâneas. Animado pela aparição de obras inquietantes como "The Flaming Creatures" (Jack Smith) e "Blonde Cobra" (Bob Fleischer), o crítico defendia a inovação da cena vanguardista por uma nova geração, vertente que denominou a do "cinema baudelairiano" e na qual presumivelmente se incluía.
Alguns anos mais tarde, porém, tanto a velha quanto a jovem guarda do cinema experimental tomavam as páginas da "Film Culture". Deren, que cogitara processar Mekas, era convidada pelo crítico a substituí-lo no "Village Voice", enquanto este se preparava para rodar o seu "Guns of the trees".
Figurinha fácil da cena underground nova-iorquina, criador de cooperativas de cineastas independentes e depois fundador de uma importante cinemateca, Mekas consagrou-se como agitador cultural, mas a sua obra de cineasta não fica devendo. Embora não constem entre os mais importantes (como "The Brig") e autorais (a exemplo do primoroso "Walden") trabalhos do cineasta, os filmes em exibição no Cine Vídeo Itaú apresentam Mekas, tanto o agitador cultural quanto o poeta, no ambiente que lhe é mais favorável, entre "amizades & interseções" na cena underground.
No primeiro filme, a vida e (pop) arte de Andy Warhol ganham, na escritura descontínua e esboçada de Mekas, nas imagens tremidas, fragmentadas e inapreensíveis de sua super-8, uma estética (hoje apropriada pelo videoclipe) que lhe é propícia.
"Cenas da vida de Andy Warhol amizades & interseções", lançado em 1990, abrange um período que vai (e volta) de 1966 a 1981, traz o registro da primeira aparição pública da banda Velvet Underground, cobre algumas das exposições mais importantes de Warhol e algumas das festas mais badaladas da época, tudo a 16 quadros por segundo.
"Isto não é um documentário", ressalta Mekas num intertítulo (procedimento caro aos seus filmes-diários), "são apenas memórias", completa mais à frente. A proposição vale ainda mais para "Feliz Aniversário para John", (EUA, 1996) que registra alguns encontros com John Lennon, do concorrido aniversário do ex-beatle em 1972 à sua morte em dezembro de 1980, de "He´s got the whole world in his hand", canção entoada na festa de aniversário, ao silêncio de luto do enterro.
Mekas, que ora filma Lennon tocando violão com o poeta beat Allen Ginsberg, ora o flagra jogando basquete com Miles Davis, surge freqüentemente em cena, roubado de sua câmera, como mais um personagem típico do 'underground', surpreendido em sua pose discreta de cronista (ideal) da geração.
O resto da mostra, atração das quintas-feiras deste mês no Itaú Cultural, contempla desde a geração abstrata dos anos 50 até as performances videográficas do coreano Nam June Paik, duas delas concebidas na época do grupo Fluxus, do "cinema de corpo" de Shirley Clarke às formas moleculares de Jordan Belson. Destaque para a célebre série realizxada nos anos 60, em 8mm, por Satn Brakhage, "Songs".
*ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL 'FOLHA DE S. PAULO' - 1 ago. / 2002.