Madame Satã negro e pobre
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MADAME SATÃ
NEGRO E POBRE
Documento de um mundo às margens do Brasil oficial, um universo à parte, com leis, códigos e rituais próprios. Satã, defensor de negros, pobres e prostitutas, teria sido responsável por mais de cem assassinatos e 3 mil brigas. É parte da história da malandragem carioca e do presídio da Ilha Grande.
Por: Miguel Ângelo*
“Apesar das belezas do lugar, a imprensa, a opinião pública e os próprios detentos costumavam referir-se à Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro, com o sugestivo apelido de Caldeirão do inferno”. É dessa forma que Myrian Sepúlveda dos Santos, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), inicia o artigo intitulado Caldeirão do inferno. Segundo ela, ao longo de cem anos, as colônias correcionais, prisões e penitenciárias lá existentes sempre estiveram associadas às condições desumanas a que eram submetidos os infernos. Para a autora, além do que relatam documentos, livros e filmes, a história das prisões da Ilha Grande também se constrói a partir das biografias dos criminosos. Entre eles, Madame Satã, famoso malandro da Lapa dos anos 1930, cujo verdadeiro nome era João Francisco dos Santos.
Malandro homossexual, reza a lenda que seria responsável por mais de cem assassinatos e 3 mil brigas. Consta ainda ter sido responsável pelo seu marketing pessoal, ao entrar para a história da malandragem com a imagem “de gay muito macho, bom de briga e fera na navalha, ao narrar como batia em policiais violentos”, escreveu Cléber Eduardo, para a revista Época, em comentário sobre o filme Madame Satã (*2002), dirigido por Karim Ainouz, cujo personagem central foi estrelado pelo ator Lázaro Ramos. Segundo a nota emitida pelos produtores do filme, João viveu em um mundo às margens do Brasil oficial, um universo à parte, com suas leis próprias, códigos e rituais, um universo em que ele foi rei e rainha, santo, santa e satanás.
Uma história de preconceitos e estigmas. Madame Satã era pobre, negro, analfabeto, tinha 17 irmãos e, para completar o ranço que o empurraria para a marginalidade era irônico, transformista e tinha o sonho de brilhar nos palcos. De qualquer forma, tornou-se um personagem emblemático da vida noturna e marginal da boêmia carioca. Há notícias de que, quando criança, teria sido trocado por uma égua. Viveu de bicos em Recife, até mudar-se para o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, onde trabalhou como entregador de marmitas, cozinheiro e segurança de casas noturnas, onde entre outras funções, protegias as prostitutas contra agressões, roubos, calotes, estupros.
Em 1942, desfilou no bloco de rua Caçador de Veados, se apresentou com a fantasia Madame Satã, inspirada em filme homônimo de Cecil B. DeMille.
Mentiroso, inventava histórias sobre ele próprio, não raro, valentias, vantagens
Sua ficha policial era vasta, seja por brigas e outros supostos crimes, alguns por tomar partido em defesa de negros, homossexuais, mendigos, prostitutas, travestis. Aumentou sua fama ao tentar entrar no clube High Life, freqüentado apenas pela elite branca carioca. Sua vasta ficha é rica em episódios decorrentes do enfrentamento com policiais e desacato à autoridade. Com sua rara habilidade de capoeirista, lutou por diversas vezes contra mais de um policial. Mentiroso, inventava histórias sobre ele próprio, não raro, valentias, vantagens. Nasceu em 1900, passou 27 anos preso e morreu em 1976.
Preso várias vezes, ficou confinado no presídio da Ilha Grande, até que, após a sua última saída, faleceu e entrou para a história como uma referência na cultura marginal urbana do século XX.
Por volta de 1932, Satã passou a viver com uma prostituta de nome Laurita. Ano que São Paulo pegou em armas pela convocação de uma Assembleia Constituinte Durante o governo de Getúlio Vargas e que coincidia com uma era de samba, Francisco Alves, Noel Rosa, Ismael Silva, Lamartine Babo e Carmen Miranda brilhavam. Esse era o pano de fundo e que serve de cenário par ao filme Madame Satã, que não é uma biografia, obra que recebeu vários prêmios no Brasil e três outros no exterior (Cuba, Argentina e Estados Unidos). Apesar disso, teria sido uma obra feita para chocar, segundo críticos, ao ponto de, durante uma exibição, uma demorada cena de sexo homossexual teria sido determinante para que jurados abandonassem a sala de projeção.
Publicado na Revista Artigo 5º
Ano I – Edição 4 – Setembro/Outubro 2008
Associação Cultural Artigo 5º
Delegados de Polícia Federal pela Democracia