Na Era do Miserê (Sandro Alves Silveira)
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Na Era do Miserê
por: Sandro Alves Silveira
Um hábito comum é mendigar um gole de cerveja, sobejo de lata, muita coisa na lata. Saudades dos tempos dos filmes enlatados. Tempos em que ainda havia a crença no exercício do Rock como revolução, como atitude para mudança do mundo.
"Êh, anos oitenta, Charrete que perdeu o condutor. Êh, anos oitenta, Melancolia e promessas de amor" cantava Raul Seixas em 1980; era o início do fim, o núcleo da transição. Não era mais Modernidade, estávamos nas portas da Modernidade Tardia. Diante das portas desse novo tempo, como o Senhor K diante da porta da justiça em "O processo", de Kafka. Modernidade Tardia, Happy Hour de todos os tempos:
"Se você vendeu sua alma ao acaso, que por descaso tava ali de bobeira. E em troca recebeu os pedaços, cacos de vida de uma vida inteira". Era a voz de Raul dando a explicação final sobre o nosso tempo: "Se você correu, correu tanto, e não chegou a lugar nenhum, baby, ôh baby, bem vindo ao século XXI." Era o final dos anos 1980 e Raul faleceu logo depois de compor e cantar esse poema, essa bomba concisa de reflexão sobre a fragmentação, a desorientação, a falta de essência e outras mazelas da Modernidade Tardia. Ele viveu para ver o lixo nascer forte; Glauber e Lennon foram polpados, morreram às portas da década de 1980.
Ao longo dos anos 90 foi possível ver que os tempos tinham mudado. Nada soava mais como nos anos 1960/70. Os anos 1980 foram o fosso que separou o castelo encantado da dura realidade do lixo do Miserê. Cada vez ouvia-se menos palavras como rebeldia, revolução, ideologia, utopia, transgressão e outras tantas que entraram em franco processo de desuso.
Anos 1990, novas e mais fortes e complexas formas de violência na mídia e nas ruas. Os microcomputadores e a Rede Mundial de Computadores. Tudo chegou aos nossos lares e corações em plenos anos 1990. O fim dessa década era o ponto de vista perfeito para quem quisesse ver como os anos 1980 foram o espaço entre o fim da Modernidade e o início da Modernidade Tardia, na qual acontece o Capitalismo Tardio.
Nessa segunda década do século XXI, na qual abismamos boquiabertos sem saber como atuar -- como pensar e agir -- as insurreições populares pululam mundo afora. Tanto no velho continente, quanto na África o povo vai pro pau.
Primaveras sem canções. O Rock não embala mais revoluções. A força da Indústria Cultural dos tempos do Pós-Mídia arrancaram do coração dos artistas as chances de fazer a revolução pela arte. Mas foi só uma batalha, a guerra continua.
Hoje, quando ouvimos a maioria das bandinhas de Rock não sentimos mais vontade de lutar, transgredir, tirar a roupa, fumar maconha e tomar todas, não. O lixo cultural não é mais reciclado pelos lixões da Indústria Cultural, os meninos cantam umas letras que não sacodem nada na pasmaceira das nossas vidas. Mas o ritmo ainda é o Rock and Roll. Vamos de My Space em My Sapce que uma hora encontramos alguma coisa boa.
Vivemos em um circo que tem a lona feita de discursos sobre camada de ozônio e aquecimento global, vivemos nesse circo onde, ainda, como nos anos 1960/70, não existe autoestima descente nos brasileiros. Existem, isso sim, ainda aquelas frases lugar comum, condicionadas, de piloto automático, do tipo "Só no Brasil mesmo". Não, o problema não é o Brasil, o problema é o mundo, o ser humano.
A serragem do chão do circo são regras novas sobre a fala: politicamente, etnicamente e etcteramente correto. Os palhaços? "Saí do palco e fui prá plateia" (S. Sampaio). Os equilibristas? Algumas poucas bandas que ainda tentam sacudir (Shake) as migalhas decompostas do que foi a irreverência e a contestação por meio desse ritmo que fala ao corpo ao mesmo tempo em que as letras das canções falam à mente.
O velho pipoqueiro levou tantos pipocos que, aos poucos, foi passando de esqueleto para peneira. O apresentador fala calmamente: Acabou a cerveja de graça, agora é só pão e circo na Era do Miserê. Como porcos aleijados e desorientados, os vermes azaradores da boca livre da cerveja deixam o circo. Chegam algumas crianças e préadolescentes. O Rock toca, toca os corações ingênuos dos meninos. Pão, Circo e salsicha para o hot dog. Tempos de dogmans. Ou como diria Valdir Soares, tempos de hot dogmans (Valdir, 1982). O tempo não para, exclamou um poeta dos 80. Antes, tempos antes, o poeta dos 60/70 exclamava: "Há muito espaço por ai, ocupe, se vire!" (Torquato Neto). Shake, rapaziada, shake!
Sandro Alves Silveira