Ary Pára-raios Editor de Cultura do Correio Braziliense, 1985
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Fundação
A que começa
Ary Pára-raios – Editor de cultura
O dia-a-dia na Fundação Cultural do DF já se transforma. Os gabinetes não estão inalcançáveis e o pessoal da casa arregaça as mangas mesmo nos domingos e feriados. Luís Humberto tira a poeira das gavetas e das cabeças que não rolaram. Estabelece-se um novo compromisso, o povo já pode se chegar. Nós, artistas e jornalistas, podemos, finalmente, sair do exílio para atuação imediata. E temos a obrigação de destituir o conselho fantasma que regeu nossos eventos artísticos e nossa vida cultural nos últimos anos. Para tomar posse e enfrentar a omissão que geriu a Fundação até a semana passada. É hora de levar os fundadores culturais pra rua – coisa que já começa acontecer – e tirar nossa arte dos gabinetes de programação para attachés e coronéis. E, se vamos curtir a Orquestra Sinfônica, isso não significa que tenhamos que esquecer os bumbas, os pastoris, as folias de reis, as cavalhadas, os palhaços, os divinos, as quadrilhas, os repentes, os desafios, as duplas caipiras, os reisados, os fandangos, a viola, o maculelê, a capoeira, os ternos de reis, os cordões, as catiras, os bois de mamão, as caninhas-verdes, as procissões, os lundus, os cateretês e milhares de outras manifestações populares que a autocracia cultural reprimiu por aqui, com a devida omissão e conivência de todo os que trabalhavam na Fundação Cultural – a do Sr. Mathias – que acaba de falecer.
Correio Braziliense, abr. / 1985
Egum, no dizer africano Alma (Ary Pára-raios*)
É comum que as religiões ensinem, nas suas catequeses doutrinações, que existe uma outra vida superior, além da morte. E, por isso, se incumbem tanto na preparação de seus sacerdotes quanto no esclarecimento de seus fiéis ou seguidores. Isso vem ocorrendo desde os povos pré-históricos, oceânicos e primitivos, incluindo-se, inevitavelmente, os negros africanos que com seus gestos, cantigas, tambores, jejuns e transes conheceram a fragilidade da vida e a perpetuação da morte. Esse aprendizado tanatológico - teoria da morte - acreditamos que, sem dúvida, influiu no comportamento religioso dos povos iorubas, gêges, negos, bantus e outras nações, quando se tornaram mais leais e obedientes aos mortos do que, provavelmente, aos vivos. Ainda hoje, repete-se a mesma história, como uma transferência cármica, pois presenciamos nas tendas e terreiros de Candomblé ou Umbanda a postura mística do homem moderno que também curva-se ou reverência as entidadess incorporadas nos médiuns ou “cavalos”, com humildade e confiança, numa demonstração evidente de que acreditam muito mais nos mortos do que nele próprio, o homem, vivo, encarnado na Terra.
O negro, dentro dessa sabedoria, distinguiu que o Universo era formado de duas metades: Orun, o mundo dos deuses, e Ayê, o mundo dos homens. E nesse transe, trajetória mágica, conhecimento empírico-sagrado, desvendou segredos e mistérios que o levou a ver que a vida não era só a encarnação terrestre - o corpo humano, mas, também, o perispírito: organismo homogêneo que desempenha funções da vida psíquica ou da vida separada do corpo. Que toda criatura humana goza de uma dupla materialidade e que a morte física só atinge a primeira matéria, o corpo humano. A outra é o ‘egum’ que após a morte tem que se reintegrar no ‘Iporí’ que é a sua origem, seu destino, sua vida eterna, o espírito, ser imperecível que habita o Orun, reino dos deuses e dos homens que souberam cumprir sua missão no vale de provas e expiações, mas que, também, é belo e pródigo de amor e graças: Ilú-Ayê - a Terra!
Correio Braziliense, dez. / 1985