A língua e a chuteira
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A língua e a chuteira
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Narradores, repórteres, comentaristas, cronistas, atletas, treinadores, torcedores, ninguém está a salvo dos lugares-comuns, das frases feitas, das 'pérolas' futebolísticas. Comecemos, pois, por algo muito visto na última semana: a disputa de pênaltis.
Há quem diga que ela, a disputa em pênaltis, é “loteria”. O vencedor, porém, não fica milionário só por ganhar nessa “loteca”. Diz-se também que os penais são a verdade. “Chegou a hora da verdade”, falam. Ora, e os noventa mais trinta, acaso seriam duas horas de mentirinha?
Verdade ou mentira, lá vai a bola rolando e... está lá um corpo estendido no chão. O narrador, onisciente que só ele, diz que o atleta caiu, e pediu falta, e o juiz "falou que não houve nada". No canal Sportv, domingo, ouvi Milton Leite narrar exatamente assim:
- Neymar caiu e pediu falta. O juizão falou que não houve nada.
A primeira frase: “Neymar caiu e pediu falta”.
Bom, que Neymar caiu, todo viu. Agora, pedir, ele não pediu nada. Podre de rico, cheio de gás e com aquela namorada, o que ele pediria mais na vida? Nada. Talvez, um passe de Oscar, para mandar a cafusa para o gol.
Mas, meninos, eu vi: depois que driblou o namorado de Shakira, Neymar caiu de maduro. Porém, pela leitura labial, viu-se que ele só deu um gritinho - “Aiiiiii” - e pronto.
- Então, se ele gritou, ele pediu falta! Quando o jogador grita é pedindo falta.
- Oxente, cê tá doido? Na hora do gol, ele também gritou, será que foi pedindo falta?
- Ali foi diferente...
- Não senhor... Grito é grito, falta é falta e gol é gol...
A outra frase: “O juizão disse que não houve nada”.
Primeiro, o árbitro não era tão grande assim para receber esse aumentativo: juizão. Segundo, o árbitro não disse nada: se dissesse, seria em inglês; além disso, ele não podia falar, pois estava com o apito na boca.
O futebol é tão engraçado que existe gol até "de bola parada”. No vôlei, ninguém diz que um “ace” foi ponto de bola parada. No basquete, o arremesso de um ponto não é lance de bola parada. Mas no ludopédio...
Aí, após o jogo, no vestiário, o treinador diz na entrevista: “Tomamos dois gols de bola parada”. Ah, professor, conta outra! A bola, para ter entrado no gol, só podia estar em movimento. A sua zaga, mal treinada, é que ficou parada.
Ah, o futebol e suas coisas!
Quando eu era menino, achava estranho o locutor dizer que o goleiro ficava “debaixo dos três paus”. Mas como diabos o goleiro iria jogar se ficava debaixo de tantos paus? Logo, descobri: (1) que os paus não são paus, mas barras de ferro, as traves; (2) que são duas as traves e um travessão.
As duas traves laterais, também chamadas balizas, têm altura de 2,44 metros. Já o ferro de cima, por ser o maior, com 7,32 metros, é chamado de travessão. O goleiro, portanto, não fica “debaixo dos três paus”. Ele fica - quando fica – é debaixo do travessão.
Ainda assim, mesmo na hora do pênalti - que é aquele instante em que, pela regra, ele é obrigado a ficar ali - o goleiro não fica debaixo do pau, digo, do ferro. Veja-se o exemplo do glorioso Rogério Ceni: não há ninguém neste mundo que o faça ficar na linha.
E ele ainda vai com aquela "cênica" reclamar do árbitro! Vou contar uma coisa para vocês: esse Rogério Ceni vai se aposentar contando as seguintes vantagens: não-sei-quantos gols de falta, não-sei-quantos gols de pênaltis, não-sei-quantos jogos, não-sei-quantos títulos... e a vida toda fora da linha do gol.
Mas, deixando Ceni de lado, outra coisa curiosa no palavreado da bola é dizer que o time em desvantagem corre atrás do prejuízo. Outro dia, ao ouvir isso, um amigo brincou: “Eu vou correr atrás do prejuízo, sim, mas é para pegar aquele sacana e encher-lhe de porrada”.
E o “gol anulado”, hein? Na maioria das vezes em que se diz isso há um equívoco. Nestes lances, em geral, o assistente já levantara a bandeira antes de a bola entrar. Portanto, só seria “anulado” se fosse (o gol) algo consumado e em seguida desfeito pela arbitragem.
Explicando: um gol só é gol a partir do instante em que o bandeira corre para o meio de campo e o árbitro aponta para o centro de campo. Assim, para ser “anulado”, o gol teria que, antes, ser validado e, em seguida, invalidado.
Pode-se dizer que foi “anulado”, na exatidão do termo, aquele gol de mão que o argentino Barcos, do Palmeiras, fez contra o Internacional no ano passado. Isto porque, num primeiro momento, a arbitragem validou; depois invalidou (após aviso externo, que é ilegal).
E do gol anulado vamos para a falta perigosa. “Falta perigosa na entrada da área”. E tem narrador que usa o superlativo absoluto sintético: “A falta é perigosíssima”. Com tal grau de periculosidade, mesmo quando é a favor do meu time, eu tremo mais que vara verde.
Outro dia, ao ouvir isso, esmurrei o televisor e indaguei: “Perigosíssima para quem?” Por incrível que pareça, talvez só para me pirraçar, Luciano do Valle repetiu: “Pe-ri-go-sís-si-ma!” Aí, desliguei a tevê, contei até dez, liguei de novo e, graças aos murros, o jogo ainda estava no zerazero.
Ah, outra frase interessante é quando o locutor fala que o zagueiro “protegeu a bola”. Isto acontece naqueles lances próximos da linha de fundo, quando o zagueiro se coloca entre a bola e o atacante, impedindo que este chegue até aquela.
No fundo, trata-se de um claro lance de obstrução (que é infração), mas os comentaristas de arbitragem preferem dizer que o zagueiro “protegeu a bola”.
Quer dizer, então, que o zagueiro “protegeu a bola”, para que a pobre e indefesa criatura não fosse atingida pelo artilheiro, o atacante matador, certamente um carcará sanguinolento, um indivíduo de altíssima periculosidade.
E por falar em periculosidade, muita gente acredita - é capaz até de apostar - que o goleiro, na pequena área, é um ser intocável. Ou seja, se o atacante tocar a ponta da unha do seu dedo mindinho no último fio de cabelo do goleiro, pronto, diz-se que foi falta no goleiro.
E é aí que ouvimos a frase mais irônica da narração esportiva: “O juiz marcou perigo de gol”. Esta, de fato, é muito boa. O árbitro, com medo de que saia um gol para aquele time, marca “perigo de gol”.
Outra coisa que eu acho engraçada é quando um comentarista, antes de a bola, rolar, dizer que um time é melhor que outro “no papel”. Vivendo e aprendendo: tem-se o futebol de campo, o futebol de botão, o futebol de salão... e o futebol “no papel”.
Bom, e por falar em papel, Galvão Bueno inventou a expressão “futebol burocrático” e aí todo mundo passou a repetir. Ele quis se referir ao futebol emperrado, truncado e tal, mas não deixa de ser algo insólito, o tal “futebol burocrático”.
Galvão e suas ‘pérolas’...
Outra dele é quando um atleta dá um passe errado. “Fulano tocou absolutamente para ninguém”, ele diz. O pior é que Luiz Carlos Júnior, Milton Leite e Luciano do Valle passaram a falar isso também: “Tocou absolutamente para ninguém”.
Que mal pergunte, se há o toque “absolutamente para ninguém”, acaso haveria o toque “relativamente para alguém”? Se já houve, só pode ter sido aquele gol de Ronaldinho Gaúcho contra a Inglaterra na Copa de 2006. Aquele, sim, foi “relativamente para alguém”.
Eu teria muitas outras frases para jogar nessa resenha - bola pro mato que o jogo é de campeonato; a bola bateu lá onde a coruja dorme; é ripa na chulipa e pimba na gorduchinha - mas vamos ficar por aqui mesmo.
Apenas para encerrar, lembro da resposta da então namorada de Ronaldo, a bela modelo Raica, a um jornalista esportivo. Foi assim:
- Você sabe o que é um tiro de meta? – ele quis saber.
- Claro que eu sei – disse ela, convicta. – É um chute forte, tipo de meta.
Priiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Apita o árbitro, aponta o centro de campo e fim de papo.
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