EPITÁFIO UNDERGROUND, A VIDA DELES DARIA UM FILME (2018)
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EPITÁFIO UNDERGROUND, A VIDA DELES DARIA UM FILME
3 nov. / 2018 - A cabeça tomada de assalto pelo melhor skank varou a noite ligada na tevê: Timeless, e suas aventuras pelas linhas do tempo, fez menção a'Os Waltons, série clássica dos anos 1970. The End, Começa o longa Dois Caras Legais (2016), uma comédia surreal, rodada na metrossexual Los Angeles e inspirada em absurdos contos noir – tipo pornojornalismo investigativo – protagonizado por Russell Crowe. Eu juro: Os Waltons são citados na fita (e homenageados!), com direito à aparição de um ardiloso vilão codinome "John Boy", o qual, soberbo, ostenta uma mancha sinistra na carantonha.
Eu e um screenplay de injúrias: é quando a tevê te mastiga e te deglute. Meu pulmão esquerdo estava com a ventilação prejudicada, e eu respirava, lentamente, pela boca, para tossir menos. Ingeria generosas colheradas de melaço, buscando alentar a imunidade, e mascava cravo, para alcançar a chegada da manhã. Tossia, tossia muito, não suava. Pensei em hospital. Dispensei.
Um cochilo me trazia paz de espirito – ou estaria eu desvanecendo pensando estar em placidez etérea?
Décadas antes do cosplay e dos quase sósias, clones e fakes, atravessei uma noite de sábado mergulhado em febre alta e relembrando o saudoso Michael Jackson da QE 32 Andarilho descalço, notável pedinchante de cigarros, arrastava a barra da calça boca de sino listrada pelo asfalto, e – ai que dó! – nu da cintura pra cima, sempre suplicando por um violão, do qual não sabia combinar três notas harmônicas. Chamavam-no de Michael Jackson acho que porque era moreno e miúdo.
Nesta galáxia, também habitava o rockstar Roberto Plant, da QE 28.
NESSA HISTÓRIA SÓ TINHA LED ZEPP
Nos anos de lazer na praça, uma das maiores sensações era o esguio Roberto Plant da QE 28. Um dos malucos da paz, sempre sem camisa, bronzeado, cabelos curtos e o rosto marcado por eczemas lunares. Não havia uma só atividade nas redondezas em que nosso Robert Plant particular não prestasse a tradicional canja ao seu ídolo-mor. Sem microfone, desabusado, trauteava: 'It's been a long time been a long time/Been a long lonely lonely lonely lonely lonely time'.
Num domingo, no Guará 1, fomos ensaiar em trio num canteiro de obras onde Júlio "Page" trabalhava como apontador. Ele estava na Gibson, além de um colega dele e de mim. Na hora, minha inaptidão nas quatro cordas foi determinante para que eu fosse sumariamente defenestrado do conjunto!
Eis que, do nada, irrompendo vociferante, surge pelos portões do canteiro da obra, nosso Roberto Plant, e, aos brados, nos anuncia em frenesi: "Vocês tocaram como homens!”. Com uma única pose para a câmera, achei melhor fazer o registro. Um dos caras do trio (agora um duo) disse: "Você deveria era ter feito uma foto nossa", e ainda propôs que eu aprendesse gaita para retornar à banda. Fiquei puto, não necessariamente com minha exclusão, mas tomado por um cioso e íntimo desprezo pela gaita de boca. Objetei: “Vocês deveriam convidar o Roberto Plant para os vocais”. Foi a gota d’água, o solo sem cordas, o desafino sem perdão. Por conta de minha amizade com Júlio "Page" – que era um bárbaro guitarrista – aquele meu último ensaio como membro de banda foi tolerado.
Naquele domingo, soube que dois amigos subiram as escadas de minha casa e foram até meu quarto. Sobre a estante de madeira negra, de duas prateleiras, onde eu guardava os discos, coloquei o bloco de vales-transportes, o relógio e uma mixaria. Tenho clara consciência dessa cena. Depois senti falta da grana. Não sei se ela foi surrupiada para compra de maconha.
Com o Júlio, penso que pisei na bola. Desconfiei dele e, injustamente, o coloquei como suspeito, e sem direito a defesa. A história chegou a seus ouvidos através de uma terceira via, colegas em comum. Errei com o amigo, mas não fiz acusações deletérias – foi mais um desabafo. Aquelas coisas, hoje, não significam absolutamente nada.
Perdemos vários amigos regenerados. As perdas mais inesquecíveis e mais dolorosas foram as de Delinho, atropelado abaixo da QE 32 e de Dejanílton, covardemente esfaqueado pelas costas no Bar do Gui-gui, na mesma quadra. Deja era próximo, ele carregava um enorme senso de justiça. Sem camisa, num sábado tomava a sua cerveja no balcão. Reprimiu um menor que queria tirar na base da força o dinheiro de um outro menor. Deja avisou: "Aqui na área não tem isso!" O menor correu na casa da tia e na volta desferiu um golpe mortal na altura do rim de Deja, que instantaneamente caiu morto. Pior foi a matéria dos jornais na manhã seguinte, noticiando a tragédia como "acerto de contas".