CARLÃO NASCIMENTO DÁ O AR DA GRAÇA!
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23 de dezembro de 2019, faz quatro anos, período de uma Copa para outra que Carlão desapareceu
por Roberto Gicello
Se o Carlão estivesse aqui, agora, e surgisse alguém dizendo que iria ler alguma coisa minha, ele olharia de soslaio o vizinho de mesa, baixaria a voz e o rosto e comentaria, irônico, amistoso e em voz grave:
- Ih, lá vem o Gicello com as coisas dele!
Ele sabia não apenas ouvir e falar com amigos, sabia reuni-los, mesmo à distância, em comentários – às vezes sutis, às vezes escancarados. Lembrá-lo é, de um certo modo, revelá-lo como se revelavam fotografias em câmaras escuras: dos negativos em celulóide de nitrato de prata até os varais pendurando fotos vivas, de recordações boas, de sorrisos e cores, silêncios, chegadas e partidas, de flagrantes que jamais retornarão senão no papel e na memória.
Por falar em chegadas e partidas, aqui, neste bar, muito provavelmente por centenas de vezes, um esperou pelo outro, olhando as duas entradas do beco, aguardando conversa boa. Às vezes nem um esperava o outro e já surgia Carlão, de uma de suas transversais, de uma destas veredas labirínticas parecendo um monarca africano, despojado de paramentos ou adereços imperiais. Vinha sábio, calado e puro, e espichava a mão de dedos longos a cumprimentar quem estivesse à mesa.
Por isso – mesmo eu não estando aqui no Conic agora que este texto é lido – tenho a impressão que de que ele vai surgir, de uma hora pra outra, de repente, de uma das entradas deste corredor de infinitas recordações. Horas tão distantes e tão próximas, conformadas neste sentimento indefinido chamado saudade.
Não quero aqui falar de nossas conversas, porque foram muitas e difusas em assuntos de maior e menor interesse para a revolução universal, para a literatura, para a seleção do Lazaroni ou do Scolari, ou para Flamengo, meu time, e Botafogo, time dele. Não falávamos muito da vida do vizinho, ainda que eles, vez por outra, fossem contemplados com nossas tímidas reprimendas de rapazes que há mais de trinta anos bebiam juntos para tentar aplacar a voz do desconhecido. Aliás, não à toa, a última vez que vi Carlão foi aqui, há mais de dois anos, com Rogério, com Dedé e com muita cerveja na mesa. Estranho, porque até hoje não parece ter sido a última vez. O interessante, talvez, não sei, é que nunca falamos sobre a morte especificamente, ou sobre estas metafísicas do amanhã. Vivíamos sempre muito o hoje, o agora, o sorriso e a irritação do instante, numa rotina em que todos os tchaus eram apenas tchaus ou que todos os tchaus eram eternos.
Coração de filhote de leão, fala pausada, passos curtos de pernas longas, companheiro e camarada, eterno em nossos corações, aqui abrimos caminho para sua pureza e sua sabedoria passarem, como passou por nós o menino inteligente e pobre do Gama e que um dia se tornaria um gigante discreto e eficiente na defesa de suas ideias e de sua gente; como passaram por nós suas sutilezas psicológicas pejadas de acalanto, de serenidade na voz, de humor perspicaz, de uma doce canção de amigo vinda do outro lado do mar, do outro lado dos sonhos. O Carlão às vezes não falava conosco, ele nos ninava sem saber.
Meu amigo, até breve, sei lá. O que sei de verdade é que valeu a pena ter você como amigo, como irmão de lutas – das lutas pequenas e rasas às lutas que movem montanhas e recriam universos. É bom ainda ser seu amigo, alguém tome por mim algo como se eu tomasse com Carlão, que aí vem, na esquina, divertido e contido a caminhar de mãos pensas e olhos no horizonte. Obrigado irmão