ICÔNICO CONIC (2021)
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ICÔNICO CONIC
TEXTO DE Mário Pazcheco & Roberto Gicello
Patrimônio cultural que há de ser lembrado (ad æternum) como submundo, underground, loteado por inferninhos vibrantes, semi-escondidos, fornecedor de loucuras trepidantes a todas as gentes, de todos os gostos, para todas as línguas e – como convém, a poucas centenas de metros do poder central da nação –, portanto ao alcance, de todos os cargos públicos e lúbricos, tudo conformemente exige a discrição, à meia-luz, enquanto a sagrada família dormia seu sono inocente e sem sobressaltos.
Trata-se de História – cativa da memória surrupiada e suturada. Mas, a memória é um para-quedas em que não se deve confiar, conquanto o salto seja obrigatório. Ainda assim (ou por isso mesmo), a cada salto, a memória resguardará o retrato das muitas pequenas alegrias da queda, sôfrega e infinita, e da aterrissagem, refilmada na mente em suave êxtase ou em trágica desventura.
Em 1978/9, rolava a matinê do Le Bateau.
Na Rodoviária mangueávamos (para os millenials: “captávamos”) dinheiro para pagar a entrada. Nestas matinês, além dos hits da dance music... também ouviam-se Slade, Gary Gliter, Left Side, Sweet. Luzes dançavam sob efeitos da benzina.
Na volta, com o inconsciente molhado de melancolia, descíamos do ônibus no Guará I, no ponto antes da 4 DP.
Local de contrastes
Antes dos discos, a literatura. Cortávamos por dentro o Conic, para comprar literatura. E, antes dos livros, os filmes.
No Conic, aconteceram salas de cinema, que construíram a memória fílmica da cidade – o Cine Atlântida (onde estreavam os filmes d’Os Trapalhões, ansiosamente aguardados), Cine Venâncio Jr, Cine Bristol, as salas Miguel Nabut e Badya Helou, além do Cine Ritz, palco pornô durante 20 anos 1989/2009. O gigante Cine Atlântida com a sua tela, mega, máster, ultra, (palco e carpete, na mais pretensiosa tradição hollywoodiana) e que seria, ainda hoje, o maior cinema do DF (se cinema tivesse podido continuar sendo), com capacidade de 1.200 lugares, sem excluir os tradicionais bombonieres (que vendiam mais bombons do que os atuais baldes de pop-corn, copiados alegremente à cultura de distúrbios alimentares dos colonizadores); havia ainda as doces meninas baleiras e os lanterninhas vaselinas. A glória dos adultos: cerveja e sala de fumantes. Lá estrearam Grease, E.T, Guerra nas Estrelas. Certo dia, sua suntuosidade, seu gigantismo e sua localização geográfica atríram a cobiça voraz e terrivelmente evangélica da Igreja Universal do Reino de Deus. Os bispos brasilienses desta agremiação religiosa obsequiosamente mantiveram as grades antigas, estacionárias no tempo e no espaço (talvez porque “grade” tenha algum significado oculto para os seguidores do Bispo Macedo). A Universal ainda mantém a porta de emergência, tanto por exigência do Corpo de Bombeiros quanto mais para expulsão dos demônios indomáveis, recolhidos às suas paredes, desde as sessões de O Exorcista perdidas no passado. Por estas portas também já passaram muitas latas de óleo de soja travestido de azeite de oliva para a santa unção das almas.
Bares corredores portarias paredes palco e esquina de personalidades
Frequentar o Conic, em 1981, era ir ao Jegue Elétrico, o primeiro sebo de Brasília tocado pelo palhaço-jornalista Ary Pararaios. Do balcão de venda, o Válter que nos olhava desconfiado por passarmos horas em pé dentro da loja, folheando livros em inglês da contracultura em sua vitrine, especialmente os de Allen Ginsberg. No Jegue Elétrico, Renato Russo comprou Clara Crocodilo, Quando a sorte te solta um cisne no meio da noite e Arnaldo Baptista e Itamar Assumpção. Do Singin’ Alone, o entusiasmado Renato não parava de comentar com a irmã: “Olha que canções lindas, que o Arnaldo fez para a Rita Lee”.
O Conic é mais dramático (no sentido grego da palavra: "ação" – δράω) graças a Dulcina de Moares, que no centro plantou uma faculdade de artes e um teatro de glorioso passado e doces memórias. Mas além do espaço concedido à representação de comédias e tragédias, o Conic já foi profundamente literário (no sentido livresco da literatura). Outra grande figura que por lá perambulou carregando uma lanterna na mão foi o jornalista Wanderley Lopes Pinho – editor do jornal Rajneesh, da revista Transe e, por último, do tabloide político-sideral Fogo Cerrado (ainda tempos em que a democracia tupiniquim não era ameaçada à luz do dia). As publicações do Wanderley atingiam tiragens fenomenais.
Recolhíamos destes exemplares no restaurante-alternativo Cheiro Verde (de onde se tinha uma visão terra-ar feérica da Esplanada dos Ministérios e do prédio do Congresso). Lá, com um pratinho de queijo de soja e rúcula nas mãos, conheci Renato Matos. Na filial da Livraria Presença, reuniam-se os bardos e é onde encontrávamos as edições de Morangos Mofados e Feliz Ano Velho e as novidades de Umberto Eco e Gabriel García Márquez. No socovão da Presença, encontrávamos os livrinhos de rock da Editora Brasiliense.
Dos poetas
No triênio 1987/88/89, em dias e noites de balbúrdia literária, feijoadas dançantes e jogos de futebol da seleção brasileira, lá se encontravam os jornalistas Roberto Gicello, Zé Mauro e Wilson Brother, os escritores Celso Alcântara, Olímpio Pereira Neto, Ézio Pires, Heitor de Andrade, Anand Rao, Hélio Ricardo Vidal, Ézio Flávio Bazzo, Adriano Aragão, Francisco Vasconcelos, Carlos Augusto Cacá, Márcio Catunda, Luiz Paulo Pieri, Adirson Vasconcelos e Zeferino Alves Neto (nome de palco, “Zan”) e ainda com culpa no cartório, desculpo-me por não me lembrar de todas as almas poéticas que povoavam o torvelinho daqueles luminosos metros quadrados.
Dos poetas do Conic, tive a felicidade de conhecer Jorge Amâncio, José Menezes de Morais, Zé Edson, Pezão e Dedé de Olinda.
Outras livrarias havia: a Thot, a Casa do Livro, do Heargraves, a livraria Galilei, ligada ao Partido Comunista Brasileiro. Funcionava, em uma das centenas de salas para escritório, o Jornal do Lago, do Joanfi – com os cartuns do Kleber Marques. A generosa e rica consultoria sobre futebol e política com Carlão e Dudu Mariano era garantidas em um dos incontáveis botequins daquela cidadela do bem-querer à vida.
Mestre Cascão na certidão chamado Afonso Ligorio Araujo Mesquita quando da sua jurisdição como prefeito organizou um show de rock debaixo da Praça Vermelha. Lá sempre houve primeiros de maios e gritos de carnavais.
No Conic era uma cidade de Deus e do diabo, onde outrora foi possível topar com Brazza, Nick Cave, Tom Zé e ganhar das mãos deles ingressos para as suas produções. O Gicello chegou a trocar, por largo tempo, animada conversa com o ator global Jackson Antunes, frente ao Cine Ritz, tomando uma cerveja em frente às fotos de garotas-fantasias extasiando marmanjos que passavam pela calçada, pisando poças dágua da chuva recém-desabada; “Ah, como era boa a pinga paga pelo vizinho de balcão! “Deus sabe de tudo! Sabe até da saudade de cada um!”.
Próximo ao Natal de 2003. Quinze dias depois da morte de Pezão, Joka Pavarotti não queria um clima de tristeza à mesa do boteco - o Thais -, e de forma solene, ordenou para que o garçom, um daqueles meninos mal-humorados que lá trabalhavam, trouxesse duas garrafas lacradas de Salinas. O clima continuou eletricamente agitado pelas lembranças do poeta, mas ninguém entrou numas de nostalgia deprê. E o Joanfi (o alterego de Joka Pavarotti, na vida real além de tenor/diagramador), a cada copo de cachaça, brindava, repetindo: "Desculpas por ter te conhecido". Joanfi foi um mecenas, à moda e ao alcance dele; um Lourenço Magnífico goiano, acendendo lanternas sobre os artistas perdidos nas penumbras labirínticas do Conic – nossa humilde Florença hoje sem flores.
Faço uma descrição interessante do quadrilátero e das forças que habitam suas esquinas. Infelizmente o elenco cultural-jornalistica do Conic foi ficando desfalcando, além dos lojistas e sindicalistas temos Klebinho e Ligório que mantém atividade teatral, Paulão de Varadero, o compositor rival do sumido Joka Pavaroti. Até algum tempo atrás, Paulo Iolovitch expunha suas telas num varal na praça Ary Pára-raios. Marcão que flagra os atuais e mordazes momentos do Conic em sua câmera. Lá vimos os doidos se manifestarem e vivemos as rupturas que se espalharam pelas asas. De luto perdemos Wilson Brother, Zeferino, Manoel Brigadeiro, Joanfi – o Conic chora, sem flores.
Valdivino e Jorge eram cartógrafos, agrimensores e desenhistas. No bar do seu Antônio, apinhado de malas em pé no balcão. Em trio bebíamos muito. Uma puxada de cigarro daquelas de provocar falta de ar. Éramos velhos amigos das obras quando papai nos sustentava colocando vidro na casa dos ricos. Manda um abraço pro teu pai.
Rock made in Conic
O rock só pintou no final dos 80s; quando Gilmar Batista Santos abriu a filial da paulista Devil Discos, cuja matriz era do Chicão em São Paulo e Antônio Celso Barbieri era o designer criador da logomarca; logo depois dessa loja fechada, inaugurou-se a Berlin Discos. No subsolo do Conic, nas boates, coincidentemente, a banda Akneton participou do lançamento de um número da Víbora, e levou seu show Que Tudo Vá Para O Inferno ao vermelho Cine Ritz. Mestre Cascão, eventualmente conhecido por Afonso Ligório Araújo Mesquita, quando da sua jurisdição como prefeito do Conic, organizou um show de rock debaixo da Praça Vermelha – onde aconteciam os gritos de carnaval e celebravam-se os Primeiros de Maio.
Trocam-se LPs e leva-se para casa sons, livros e gibis da Kingdow Comics
Em 1996, na Subway Discos, nasceu a Associação Cultural Brasiliense de Rock - ACBRock .
Nesse mesmo ano, Os Wallaces lançaram no Cine Ritz, a demotape Pedra Pomes do amor.
Na feira, do Conic lisérgico, na Filial do Rock uma avalanche sonora surpreendente. Um bootleg duplo de mr. Jethro Tull, com material inédito de estúdio, bootleg cuja capa estampada as suas biografias. Outro bootleg simples foi de Led Zeppelin, apenas o volume 1 da apresentação deles em 1979, no festival Knebworth, a edição é transada, a capinha com furo circular na altura do selo e com letras azuis à caneta no selo branco. O excepcional War Heroes de Jimi Hendrix, a capa na qual Hélio Oiticica desenhava rastros finos de cocaína.
Fazendo negócio cultural no Conic na Cona
Renato L Aguiar, o Zoreia, seguidor dos ensinamentos do Chinês, dos Excomungados. Foi um raro lojista que praticou os primórdios da política da satisfação: mais vale um colecionador satisfeito na sua loja do que o passante reto. Da ética do bom comércio favorável sem espoliar.
Na FunHouse Discos, Renato Matos fala sobre a sonoridade e o molho tecnológico d alguns discos de reggae e dub. Falou dos seus LPs e de seus dias na Bahia.
Presenciamos in loco, a desolação do Conic
O Conic, hoje é tão considerado e no entanto, hoje, dele não há fanpage e, no entanto, para inveja de quem goza nas páginas digitais, lá ainda fica-se sabendo das coisas – e sabem-se sobre você! Bruxuleiam os holofotes, acessos em tua fonte imediata, imersa sobre a tela do celular, e nela leem e comentam com sobre seus olhos graúdos. Nunca é o mesmo lugar. Nunca são as mesmas pessoas em cada balcão – promoção individual e intransferível (o último grito do individualismo orgulhoso e faiscante, carimbo da moda e dos novos tempos). No Conic, historicamente, a efervescência toma conta da cabeça da moçada e, de modo lamentável, nenhuma banda que toca lá foi citada - é a tal barreira da mídia que reduz a meia dúzia e músicos-cover, que são os donos dos bares – putas-véias que choram, que choram.
O Velho Conic deixou de existir – como tudo que é velho tende a desexistir, ainda que nem sempre a desistir. A destruição consentida é escondida por tapumes. É muita cara de pau, pensar que eles são donos de todo o espaço e das praças, do chão molhado pela chuva quando chove. No fim, bem no finalzinho, esgotado e escravo do passado tanto quanto vítima do futuro, tudo será triste; a única certeza é que a destruição é vil. Não haverá preservação, revitalização, ressurreição. Só especulação, só solidão enquanto o espaço não se revaloriza – imobiliária e torpemente. O capital no centro da capital, tal qual um engenho de escuridão e silêncio, onde jamais se pode ver os homens e mulheres que por ali passaram, por ali sonharam, por ali trabalharam seu destino – com arte e com fé. Tomai muito cuidado.
Sob os céus da capital, o Conic é um espelho – plano e pleno – do caráter e da tentativa heróica de re-humanizar o Planalto Central. As maiores notas políticas desd’os idos de Madame Pompadour no pré-furor das guilhotinas. Desde as cores menos desbotadas dos pioneiros que bebiam com o presidente JK. “Cadê o Palo-Piloto?”, pergunta um idiota, debaixo do chapéu.. “Des’que pronto, foi mandado pras satélites”, responde um palhaço desempregado no Fortaleza Grill, tomando uma imburana. Noticiários entontecidos pelo girar do carrossel dos cavalinhos com olhos de cifrões dardejantes. Fala-se de embaixatrizes como de meretrizes sem cerimônia. Fala-se das próximas candidaturas – chafarizes de marketing exsudando policiais, pastores e apresentadores de tevê. Socorro! Vamos ter um treco! E a capital fatigada.
O cinema deu à luz o alvará, o altar, deu à luz luzes das igrejas – apagando cruzes e estrelas.
O Conic tá morto. Viva o Conic!
É só mais uma ação devastadora dos caminhos da economia de mercado, suas curvas mais retas que as curvas da vida. Seu próprio caixão aberto no meio da praça. No cortejo, talvez não haja orquestras, nem boleros, nem choros nem discursos de despedida. Expulsaram os músicos e os poetas declamadores, expulsaram o povo para ouvi-los e aplaudi-los.
J. Pingo não está mais aqui. Estamos fodidos – privados do paladar dos vinhos e do peso das emoções. Sobraram-nos drogas baratas. Sem a Legião, sem o Capital, sobra a Plebe – Rude e Faminta.
E sem Cine Ritz e Boate Dragão, sem as putas do porvir – discretas tanto quanto permite a embriaguez de quem delas se acalanta e se destrói em cada gozo pago – os nababos de Brasílianão se divertem mais, nem nas sextas-feiras, nem nunca mais.
Ainda rezamos pelas almas dos amigos; mas ah, e como dói vê-las aumentar em alma e diminuir em corpo presente, e como, em simetria arquitetônica e espiritual, o próprio Conic que não volta mais, nós, os sobreviventes, coexistimos com a bela vida que vivemos, que fizemos, e não volta mais.