O REI COBERTO e o AZUL-CADILLAC (2021)
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O REI COBERTO e o AZUL-CADILLAC
Roberto Gicello Bastos
Francisco Kaq aqui assina o sobrenome artístico agora apenas com K (de Kafka ou de Karma) este trabalho de pura poesia, pisando a linha da prosa e da nostalgia. Vou procurar, aqui, trazer à luz minhas impressões vivas, latentes e quase imediatas da arte de meu amigo.
A imagem-colagem à guisa de capa do poema traz um naco do centro de uma São Paulo, à luz do dia, dia comum dos imperecedouros anos 1960 e projeta, como um cartaz de cinema, a batalha entre a anticultura e a contracultura na terra do sol, com perdidos orpheus fardados, mirando de soslaio o inimigo de biquíni, obediente como quem assiste à missa encantado pelo diabo dos vitrais coloridos da igreja , enquanto ecoa o litúrgico “amém”, responso das beatas cinzentas, em latim musical, na voz de prata do padre: “... errare hummanum est!”:
“O Rei refém dos infernos.”
O título é múltiplo, senão caleidoscópico – “revém” é do verbo “revir” (vir novamente, retornar), mas sugere aos ouvidos o substantivo “refém”. Bastam-se-lhe substituir as consoantes labiodentais fricativas, a coisa muda, mudam as dialéticas interpretativas. É o quanto vale uma letra na paisagem da escrita. O Rei, uma vez coroado, não perderia a majestade, mas de modo lento e gradual tornar-se-ia refém dos invernos de críticas a ele apontadas pela omissão em denunciar as tragédias do regime militar e pelo assanhamento nas solenidades com os donos do poder.
Conquanto houvesse à disposição e ao alcance do Rei provocações semânticas e subversões de todos os tipos, ele preferiu usar o verbo em nome da ternura eterna e da paixão de folhetim, e mesmo com tantos disfarces românticos, escandalizou as senhorinhas de sacristia com a blasfêmia no corpo da canção “... só quero que você me aqueça neste inverno / e que tudo mais vá pro inferno!”. Foi o máximo que ele alcançou - e talvez inconscientemente – em termos de desobediência civil.
Não é muito dizer que o conservadorismo romântico cantado ao som do yeah-yeah-yeah tinha poderoso apelo popular e faria sucesso até no Mosteiro de São Bento. Mas de todo modo permanece conservadorismo e, por isso mesmo, o iê-iê-iê tupiniquim passaria ao largo das vigilâncias do regime dos generais. O talento avassalador do Rei tem coragem aparentemente boba de importar padrões anglo-saxões, dar caimento à moda do shake it up, atendo-se uma musicalidade oscilante entre o açucarado e o frenético, aliviando o desconforto do existir nas tardes de domingo.
“A dita dura, perdura. Pendura no pau de arara...”.
A Jovem Guarda não agradou deliberadamente a Ditadura – mas não se deixava de forma alguma desagradá-la. Diferentemente de sua prima inquieta e irredimível, a Tropicália. A banda do Rei era uma “rebelde sem causa”, tanto agradava os vassalos de 64 quanto a Tropicália se agradava do Maio de 68. Todavia, ambos os movimentos conquistavam o gosto do público nacional – o sucesso era harmônico e independente, embora, semiologicamente, entre elas houvesse profunda discrepância estético-comportamental: a segunda, apocalíptica; a primeira, integrada.
Há que se dizer que a musicalidade do rock, aqui no Brasil, surgiu com pouca diferença da do rock norte-americano. Com o tempo, desembarcou o mau gosto cultural: mascar chiclete, fazer tatuagens descartáveis na bochecha, usar jaqueta de couro no calor dos trópicos. O teatro foi armado e com o tempo queriam impingir à Jovem Guarda um aspecto de mofo, porém eles sobreviveriam ainda um tempo com o apelo das “jovens tardes”.
O Rei em 1968 fez seu último show de auditório e, num voo ponto a ponto, desembarcou no território das canções românticas (algumas de suprema cafonice) que lho imortalizariam e que lhe concederiam inclusive o direito de ser mais lembrado por elas do que por suas fotos, de cabelos longos, ladeado por oficiais do regime. Ninguém tem a obrigação de ser engajado (na acepção de Sartre), simplesmente porque é artista; mas o engajamento torna-se uma necessidade universal, para o ente social, quando a injustiça, a opressão e o medo fazem morada no coração do poder. O artista, como “antena da raça”, com sua lâmpada acesa, tem mais alcance, mais influência, mais percepção dos anseios do povo, decodifica melhor o “Panis et Circensis” do seu tempo, e pode amplificar o grito dos angustiados. E, se assim não o faz, descerá à sepultura tendo apenas produzido arte – ainda que arte de primeira, porquanto a história da arte é apenas um ramo da grande aventura humana.
Mas retornemos, com nossa lupa de filatélico, aos quadros do Sr. K. – não são 4² – não são quadros de moldura concretista. A força da narrativa projeta-se mais lírica do que épica, conquanto não contemplam versos. O dramático é o próprio teatro geracional, os conflitos espichados até o limite nestes não acabados dias que se amontoam há meio século. E o Rei (e seu reinado) estará presente em cada um destes dias na vida de milhões de brasileiros.
Nos quadros revêm antigas leituras em redemoinhos, cançonetas de salão dos castelos , dos palácios; menestréis pobres aquecendo a vida fria das tabernas e fazendo revoar a libido das donzelas à janela. Os quadros, no entanto, aqui, são tangidos por carnudas referências filosóficas e de cultura pop – o “ergo sum” cartesiano, e o “Que rei sou eu?” (marchinha de Herivelton Martins & Valdemar Ressurreição, de 1944, e a icônica novela da Globo, de 1989) –, referências latentes em nosso imaginário desbotado pelo excesso de informação; aqui vêm à tona fragmentos dos sons e de imagens do passado (condensado em décadas de vivência na cultura de massa), proporcionando fragmentos de sereno relembrar (pra quem se lembra), e de serena descoberta (pra quem lavra o descobrir).
O morro da Urca, a enseada lápis-lazúli de Botafogo, a baía de Guanabara, o Rio (dos erres que tanto ronronam a doce aliteração da jornada da revinda do Rei), o Rio de janeiro é cenário sugerido, mas exuberante e cheio de aventuras, dos filmes do Roberto dos carrões, do Erasmo sentado à beira do caminho, do Caetano “pisando a areia branca”, que sorrindo iria chorar, e retribuir o canto ao declamar que “a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol...”.
Este mundo de ordenações mequetrefes, observado ao microscópio da história, mundo maquiado e cheio de contradições encontra-se no trabalho de K.
Clarões de consciência e de inspiração borbulhante sintetizam muitas das canções que preenchem o hiato musical deste meio século. O AI-5, a metarreligião do “Jesus Cristo eu estou aqui”, assentada à sombra sonora dum disco voador e à falta de discernimento dos calabouços, dos cala-bocas dos anos 1970s contituem a fina-flor de nossas saudades, ainda verberantes em ondas AM/FM, e revêm, quase bizarras, no rancor encruado que divide um povo debruçado sobre o abismo.
O REI REVÉM DOS INFERNOS – Uma invenção de Francisco K em 16 quadros: https://franciscok.com.br/escritos-2/