Urgente! Byra Dorneles morreu
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Byra Dorneles e Flavia Barcellos
Byra Dorneles morreu
“há algo de horrível na realidade mas não sei o que é. Ninguém me diz”
Ele chegava sempre as quintas-feiras na minha casa. Trazia geralmente uma garrafa de vinho,as vezes de marca, noutras,vinho barato ou cerveja preta-ele adorava cerveja preta. Com o passar do tempo eu também passei a gostar. Seus vícios,todos seus vícios se tornaram meus. Eu era o amor no reflexo dos seus olhos. Narciso refletido nas minhas taças de cristais. A esperança narcísica de um auto-encontro. Chegava com a garrafa de baixo do braço,um brilho febril nos olhos. O assunto era desconexo a principio,eu tinha uma sensação de irrealidade, soava como alguém a beira do abismo. Mas era o tipo de loucura que colocava as coisas em movimento. Ele fazia isso em mim. Colocava as coisas em movimento. Sem os seus sonhos e delírios, viver serviria pra que¿ Falava de coisas grandes, amor, Focault, Kant...falava do tempo, sempre o tempo, que ele não estava apenas a frente e atrás mas também em outras direções...em perpetua colisão com o futuro.Me revelava com palavras duras e percepção perversa assuntos vencidos, coisas de família que não me interessava ali,naquele momento...falava e falava e falava e colocava musicas, as mesma musicas, tocava incansavelmente as mesmas musicas como se estivesse viciado nelas como uma droga. Em êxtase e desespero. Numa noite ouviu por horas a fio uma seleção de musicas que abria com Mr. Bojangles de Dylan e continuava com uma canção do filme Moulin Rouge com Tom Waits.
Ele chegava sempre as quintas, os cabelos desgrenhados, falando sem parar.... se perdia por ruas conhecidas.Ligava varias vezes, perdido, as vezes na esquina. Falava de sua briga, seu conflito com deus, sempre deus, sua compulsão repetitiva. Falava como se fosse seu próprio divulgador insano e apostolo.
Falava de Lennon com a intimidade dos mortais. Falava de Lennon e Arnaldo dos Mutantes como se eles estivessem ali, ao seu lado. As vezes era difícil acompanhar a velocidade de seu pensamento e as mil estórias que contava, ia de um assunto pro outro sem respirar, sem virgula, sem pontuação.
Costumava brincar que falava como Kerouak escrevia -ou como Sartre e Saramago,naquela sintaxe em que a velocidade habitava, a velocidade era o seu tempo. Sartre descrevendo as ruas de sua Paris sitiada, na Idade das Razão, sempre no mesmo bar e no mesmo lugar.
Assim como íamos pro bar do Almeida na Cardoso e sentávamos sempre no mesmo lugar. Sempre. A TV ligada e os assuntos eram sempre os mesmos, circulares, sua poesia, sua família, amores passados. E eu ali, coadjuvante do seu delírio, parceira de sua loucura, fui descobrindo aos poucos, que servia- na sua insanidade repetitiva e autista-como uma terapia. Mesmo que eu não ouvisse ele falava e falava e falava.
As lembranças, suas próprias lembranças o tiranizavam, o passado sempre ali na mesa do bar. Uma urgência de falar e viver como se seus dias fossem um único dia. Chegava sempre as quintas e num impulso logo ia pro quarto ver o sol se por. Ficava na janela lembrando das feiras-livres das terças, o sol ia desabando e esparramando cores e sombras pelo quarto.
Ele gostava de experimentar minhas jaquetas orientais cheias de medalhas, citando Vapor Barato do Macalé...seus dedos cheios de anéis...Tinha manias estranhas ditadas pela solidão. Varava as noites no meu computador e escrevia silêncios. Dizia que a moral era a fraqueza do cérebro. Isso era discurso no bar do Almeida. Foi inevitável eu não me contagiar com a excitação a sua volta, seu jeito, como ele mesmo dizia de ‘caçador à espreita do novo’...ele comentava que sua necessidade de escrever vinha de seu desajuste com a vida, que não conseguiria nunca resolver com acão, com atos, por isso escrevia, como bem disse Caio Fernando de Abreu.
Na sexta dia 19 de dezembro de 2008 ele morreu. Não senti tanto sua falta porque eu já sabia do fim próximo. Recolhi todos seus objetos, poucas coisas e fui pro bar do Almeida com meu I-pod e o som que ele tanto ouvia....sentei na mesma mesa de sempre, a TV ligada altíssima e lembrei de uma frase do Borges que ele citava: “Se meu ouvido alcançasse todos rumores do mundo, eu perceberia seus passos” Ps:
Ao vê-lo inerte, no seu tumulo pedi que gravasse, na sua lapide, uma frase do Caio Fernando Abreu que condizia com toda nossa estória: "Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu "
Flavia Barcellos