O Viking
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O Viking
Escrito por Viegas Fernandes da Costa
“Vais para onde?” – interpelou-me a voz as minhas costas. Era alto e forte, mãos enormes, cabelos longos e oleosos. Um viking!
O sol a pino torrava-me paciências, e tudo que desejava era o fresco de uma sombra ou a cerveja do primeiro boteco que me aparecesse. Não seria prudente indicar destinos, porém. Não o conhecia!
“Vais para onde?” – implicou altivo e já flexionando o tom para o imperativo. Por muito pouco não substituo a canhestra interrogação por uma inclemente exclamação... em negrito! Estava muito próximo de mim, e era uns três palmos mais alto. Suspeitei-lhe a presença de algo nas mãos – uma arma? – ; abanava-as, entretanto, vazias e carentes, e nos lábios aquele sorriso bobo.
“Vi que conversavas com o Bráulio, lá na pinacoteca. Eu pinto!”
Bem, já era algo. Frequentava a civilização, mediocremente supus, e certamente não me comeria o fígado. Talvez apenas o desejo de um laxante afagar de egos. Dir-me-ia cidadão culto por frequentar pinacoteca em terra de tantas chaminés, e verborragicamente me cantaria sua virtuosa carreira artística. Talvez, até, seria brindado com uma minunciosa e grandiloquente narrativa a respeito de sua última natureza morta, pintada com tintas alternativas produzidas a partir dos esgotos da cidade, e aclamada como a grande revelação da arte extemporânea. É, o sol torrava-me paciências, mas ele era um viking!
“Conversávamos. Vai publicar meu novo livro.”
“Bom, muito bom. Também escrevo! Outro dia publiquei um poema, viste? Saiu no Jornal. Lês o Jornal?”
Sim, leio o Jornal. Todos por aqui leem o Jornal. À propósito, por estas bandas, há mais poetas que pessoas, e todos publicam no Jornal. Um verdadeiro desperdício de palavras! Então a resposta seria, naturalmente...
“... não costumo ler o Jornal, desculpe. Preocupam-me outras coisas.”
“Entendo. Também não costumo ler toda essa podridão, mas... publicaram meu poema, assim, há sempre algo de bom no Jornal.”
“Pois é...”
Caminhávamos lado a lado, subindo a XV, sob aquele sol redundantemente esturricante. Tão próximos caminhávamos que, pêndulo que sou, a cada passo inevitavelmente lhe tocava o ombro com a cabeça, já que manqueio da perna esquerda. Houve até, certa vez, uma senhora de muitos saberes divinos a me explicar expiação de culpas em vida pregressa, daí o castigo deste manquejar. Eu pecara muito e gravemente, por certo, e agora estava lá, bamboleando feito bêbado e tendo como muleta o ombro de um viking pintor que me dizia do seu poema.
Declamou-o!
Claro, não ouso reproduzir aqui os versos, tampouco contarei das suas qualidades oratórias. Basta dizer que as rimas de sua lavra soavam-me – a mim e a todos que, espantados, viravam seus rostos para saber a quem suposamente matavam – como pedras imensas rolando montanhas. Devo confessar-me parvo, entretanto, pois não apreendi bulhufas daquilo que quis dizer, mas ficou-me a impressão de que devia ser melhor pintor que versejador, apesar de nunca ter-lhe visto uma aquarela sequer.
“Bonito” – temerariamente respondi. Ele era um viking!
“Pois não é? Também escrevo contos.”
De minha parte, antes que começasse a me encenar seus contos em via pública, procurei apertar passo, inventar pressas e compromissos. Não houve jeito, acompanhar-me-ia a destinos insólitos, ao inferno se necessário, mas não me largaria.
“É a história do Zé Crente e da Dolores Consolação!”
“Hummm.”
Inevitável, desfiou-me dramalhão envolvendo religião, preconceito de cor e classe e muito palavrão. Entusiasmou-se tanto que eu mesmo não sabia mais se ele falava comigo, com os outros ou se consigo mesmo. Apontava, esbravejava, ofendia, bradava braços e dedos, chutava. Uma vergonheira só! Tentei libertar-me da presença, afastar-me um pouco que fosse, mas qual! Segurava-me pelo braço e me arrastava para si. O louquinho e o manquinho, ô espetáculo circense na principal calçada da cidade! Até parar, repentinamente.
“Moro aqui, quer subir?”
“Tenho compromissos.”
“Quando quiser ver meus quadros, pode vir. Estou sempre por aqui.”
Ao se virar e sumir no hall do pequeno edifício, notei-lhe aquele pequeno detalhe que até hoje me intriga: faltava-lhe a orelha direita.
* Viegas Fernandes da Costa é autor dos livrios "Sob a Luz do Farol" (2005) e "De Espantalhos e Pedras Também se Faz Um Poema" (2008). Permitida a reprodução desde que o texto mantido na íntegra e citado o autor. Escreve no blog http://viegasdacosta.blogspot.com