Jack Kerouac: O vagabundo americano em extinção
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O vagabundo americano em extinção
(Jack Kerouac)
- extraído do fanzine "Portugueis Klandestino", julho 90 número um)
William Burroughs & Jack Kerouac
O vagabundo americano atualmente tem enfrentado uma barra pesada para vagabundear devido ao aumento da vigilância policial nas auto-estradas, entroncamentos ferroviários, praias, margens dos rios, aterros e mil e um escusos esconderijos da noite industrial. - Na Califórnia, o antigo rato com mochila, aquele velho tipo excêntrico que segue perambulando de cidade em cidade com as provisões e a cama às costas, o "Irmão sem Lar", praticamente desapareceu, junto com ele sumiu também o antigo rato garimpeiro do deserto que costumava cruzar com o coração esperançoso laboriosas cidades do Oeste que são agora tão prósperas que já não desejam velhos vagabundos. - "Os hôme não querem saber de ratos mochileiros por aqui, mesmo que eles tenham fundado a Califórnia", disse um velho com sua lata de feijões escondido ao pé de uma fogueira indígena na margem de um rio nas imediações de Riverside Califórnia, em 1955. - Imensos, sinistros camburões policiais pagos pelos contribuintes (modelo 1960, com holofotes antipáticos) estão sempre a postos para lançarem-se a qualquer instante sobre o vagabundo no seu trote idealista rumo à liberdade e às colinas do silêncio sagrado e da santa privacidade. — Não há nada mais nobre do que aturar algumas inconveniências como cobras e poeira por amor à liberdade absoluta. Eu próprio fui um vagabundo, mas só até certo ponto como vêem, porque sabia que algum dia meus esforços literários seriam recompensados com a proteção social - não fui um vagabundo autêntico, sem esperanças, exceto aquela eterna esperança secreta que se adquire dormindo em vagões vazios que atravessam o vale de Salinas sob o sol aconchegante de janeiro reluzindo Dourada Eternidade em direção a San José onde os rapazes te encaram com cara de durões e te oferecem algo para comer ou beber com os lábios franzidos - lá na beira dos trilhos ou nas margens do riacho de Guadalupe. O sonho original do vagabundo nunca foi melhor definido do que nesse apaixonante poemazinho citado por Dwight Goddard em sua Bíblia Budista:
Oh, por esse raro acontecimento
Com prazer daria dez mil peças de ouro!
Um chapéu na cabeça, uma trouxa às costas,
E minha provisão, a brisa refrescante e a lua cheia
Na América houve sempre (devem ter notado o peculiar tom Whitmanesco desse poema, provavelmente escrito pelo velho Goddard) uma idéia especialmente definida da liberdade que significa andar a pé e que remonta aos de tempos de Jim Bridger e Johnny Appleseed e ainda hoje é preservada por um grupo em extinção de veteranos rijos que às vezes ainda podem ser vistos nalguma estrada do deserto à espera de uma carona até a cidade para esmolar (ou trabalhar) e forrar a barriga, ou então perambulando pelo Leste do país, abordando o exército da salvação e se arrastando de cidade em cidade, de estado em estado, em direção à eventual condenação nos sórdidos becos das grandes cidades onde fatigados seus pés simplesmente desistem. No entanto, há apenas alguns anos vi na Califórnia (profundamente encravado no desfiladeiro ao lado dos trilhos de trem na periferia de San José soterrado pelas folhas de eucalipto e pelo abençoado esquecimento das trepadeiras) um grupo de casebres de papelão caindo aos pedaços ao entardecer em frente do qual sentava-se um velho fumando seu tabaco Granger num cachimbo de sabugo de milho (as montanhas do Japão estão repletas de abrigos gratuitos e velhos tagarelando entre copos de bebidas feitas de raízes à espera da Iluminação Suprema que só pode ser obtida através da completa solidão ocasional). Na América acampar é considerado um esporte saudável para escoteiros mas é crime para homens maduros que fizeram disso sua vocação.— A pobreza é tida como virtude entre os monges das nações civilizadas.
— Na América você passa a noite no xadrez se for apanhado sem o mínimo admissível para vagabundear (eram quinze cents a última vez que ouvi falar nisso, camarada - quanto é agora?). No tempo de Brueghel as crianças dançavam ao redor do vagabundo, ele vestia roupas imensas e rotas e olhava sempre em frente indiferente às crianças, e as famílias não se importavam que as crianças brincassem com o vagabundo, era algo normal. — Mas hoje as mães abraçam seus filhos com força quando um vagabundo cruza a cidade por causa daquilo em que os jornais o transformaram - o violentador, o estrangulador, comedor de crianças. — Afaste-se de desconhecidos, eles lhe darão doces envenenados. Embora o vagabundo de Brueghel e o vagabundo hoje sejam o mesmo, as crianças são diferentes. - Onde se meteu o vagabundo chaplinesco? O antigo vagabundo da Divina Comédia? O vagabundo é Virgílio, ele foi o precursor. O vagabundo penetra no mundo infantil (como no famoso quadro de Brueghel onde um enorme vagabundo cruza solenemente pela vila de tina de lavar roupa e os cães latem e as crianças riem, St. Pied Piper) mas o mundo hoje é adulto, não é mais o mundo infantil. - O vagabundo hoje é forçado a agir furtivamente - todos ficam assistindo aos heróis policiais em ação na TV. Benjamin Franklin era uma espécie de vagabundo lá na Pennsylvânia; cruzou a Filadélfia com três pães enormes debaixo do braço e meio penny no chapéu. John Muir era um vagabundo que partia em direção às montanhas com o bolso cheio de pedaços de pão seco, que molhava nos regatos. Será que Whitman aterrorizava as crianças de Louisiana quando percorria a estrada aberta? E o Vagabundo Negro? Contrabandista de bebidas? Ladrão de galinhas? Remus? O vagabundo negro do Sul é o último dos vagabundos de Brueghel, as crianças lhe pagam tributo e o encaram cheias de admiração, e permanecem caladas. Pode-se vê-lo surgir de entre os pinheiros com seu velho e horroroso saco. Carregará guaxinins? Coelhos? Ninguém sabe o que ele carrega. Forty Niner, o fantasma das planícies, o velho Zacatecan Jack, o Santo Caminhante, o explorador, os espíritos e fantasmas da vagabundagem desapareceram - mas eles (os exploradores) queriam encher de ouro seus sacos horrorosos. - Teddy Roosevelt, vagabundo político - Vachel Lindsay, vagabundo menestrel, maltrapilho - quantas tortas por um de "seus" poemas? O vagabundo vive numa Disneylândia, na terra de Pete-o-Vagabundo, onde tudo são leões humanos, homens de lata, cães lunares com dentes de borracha, trilhas alaranjadas e púrpuras, castelos de esmeralda erguendo-se ao longe sob a bruma, gentis filósofos-bruxos - Nenhuma bruxa jamais cozinhou um vagabundo. - O vagabundo possui dois relógios que não se pode comprar no Tiffany´s, num pulso o sol, no outro a lua, as mãos são feitas de céu.
Hark! Hark! The dogs do bark
The beggars are coming to town;
Some in rags, some in tags
And some in velvet gowns.*
(*) Em tradução literal:
Escuta! Escuta! Os cães ladram
Os mendigos estão chegando na cidade;
Uns esfarrapados, outros em trapos
E alguns em becas de veludo.
A Era do Jato crucifica o vagabundo, como pode ele saltar num cargueiro a jato? Será que Louella Parson é simpática para com os vagabundos? Henry Miller permitiria que os vagabundos nadassem em sua piscina. — E Shirley Temple, para quem o vagabundo deu o Pássaro Azul? Será que as jovens Temples não possuem mais pássaros azuis? Hoje em dia o vagabundo precisa se esconder, e há cada vez menos lugares para faze-lo. Os ratos estão sempre a sua procura, "chamando todos os carros, chamando todos os carros, vagabundos avistados nas imediações de Bird-in-Hand" - Jean Valjean curvado sob o peso dos candelabros enfiados em seu saco gritando para a rapaziada, "Ta aqui a alma de vocês, a alma de vocês!". Beethoven era um vagabundo que se ajoelhava e escutava a luz, um vagabundo surdo que não podia ouvir as lamúrias dos outros vagabundos. — Einstein o vagabundo com suéter de lã roto, Bernard Baruch o vagabundo desiludido sentado num banco de parque com um telefone de lata ao ouvido esperando pela ligação de John Henry, esperando por alguém muito louco, esperando o épico persa. Sergein Essenin foi um grande vagabundo que se aproveitou da Revolução Russa para cair fora e beber suco de batata pelas aldeias atrasadas da Rússia (seu poema mais famoso chama-se "Confissões de um Vadio"), no momento em que estavam derrubando o Czar ele declarou: "Tou afins de mijar ao luar através da janela." É o vagabundo sem ego que algum dia dará à luz a uma criança. — Li Pó foi um vagabundo poderoso. - O ego é o maior dos vagabundos. Viva o Ego Vagabundo! Cujo monumento algum dia será uma lata de café dourada. Jesus era um estranho vagabundo que caminhava sobre as águas. - Buda também foi um vagabundo, que não prestava atenção nos outros vagabundos. O chefe Rain-in-the-Face, mais estranho ainda. W.C. Fields - seu narigão vermelho explica o significado desse mundo triplo, Grande veículo, Veículo Secundário, Veículo de Diamante. O VAGABUNDO NASCE DO ORGULHO, não tem nada a ver com a comunidade mas consigo próprio e com outros vagabundos e talvez com um cão. - Vagabundos pelos aterros da linha férrea à noite fervendo imensas latas com café. Altiva era a maneira como o vagabundo cruzava pela cidade, entrando pela porta dos fundos onde tortas esfriavam nos beirais das janelas, o vagabundo era uma espécie de leproso mental, não precisava esmolar para comer, donas-de-casa possantes e ossudas do Oeste conheciam o tilintar de sua barba e sua toga esfarrapada, "venha e pegue!" Orgulho é orgulho, mas às vezes havia algum aborrecimento quando ela anunciava "vem e pega", e hordas de vagabundos surgiam, dez ou vinte de uma só vez, e ficava um bocado difícil sustenta-los todos;às vezes os vagabundos não tinham a menor consideração, mas não sempre, quando isso acontecia, eles perdiam o orgulho, tornavam-se vadios - migravam para a Bowery, em Nova Iorque, para a Scollay Square, em Boston, para a Pratt Street, em Baltimore, para a Madison Street, em Chicago, para a 12 th Street, em Kansas City, para a Larimer Street, em Denver, para a South Main Street, em Los Angeles, para a Third Street, no centro de San Francisco, para a Skid Row, em Seattle ("áreas doentes" todas). A Bowery é o paraíso dos vagabundos que vêm se divertir na cidade grande empurrando seu carrinhos metálicos e recolhendo papelão. — Vários vagabundos da Bowery são escandinavos, muito deles sangram com facilidade porque bebem demais. - Quando chega o inverno esses vadios tomam uma bebida que chamam "Veneno pra Rato", que consistem em álcool metílico, umas gotas de iodo e raspas de limão e viram-na, "gulp", de um só trago e "bam"! hibernam o inverno inteiro para não apanharem um resfriado porque não moram em lugar algum e faz frio pra burro no inverno da cidade. Às vezes os vagabundos dormem de braços dados para se manterem aquecidos, na calçada mesmo. Os veteranos da Bowery Mission afirmam que os vagabundos cervejados são os mais beligerantes do grupo. Fred Bunz é uma espécie de Howard Johnsons´s dos vagabundos - fica na Bowery 277, em Nova Iorque. Lá, usam sabão para escrever o menu na janela. — Pode se ver os vagabundos relutantes para pagar quinze cents por miolos de porco, vinte e cinco cents pelo goulash, e saltando fora para as gélidas noites de novembro com suas camisas de algodão puídas mergulhando na Bowery lunar ao som de garrafas estilhaçadas no beco onde permanecem esborrados na parede como rapazes arruaceiros. Alguns deles usam chapéus impermeáveis apanhados ao lado dos trilhos em Hugo Colorado, ou sapatos furados abandonados por índios nas lixeiras de Juarez, ou casacos vindos de lúgubres botequins de cais do porto cheirando a peixe e foca. — Hotéis de vagabundos são brancos, azulejados e mais parecem mictórios em pé. Antigamente os vagabundos diziam para os turistas que tinham sido médicos famosos,a gora dizem que eram cicerones de "stars" ou diretores de cinema na África e que quando a TV surgiu eles perderam os direitos de seus safáris.Na Holanda não se admite vagabundos, talvez aconteça o mesmo em Copenhagem. Mas em Paris se pode ser um vagabundo - em Paris os vagabundos são tratados com o maior respeito e raramente lhes recusam alguns francos. — Há várias classes de vagabundos em Paris, o vagabundo classe alta possui um cão e um carrinho de bebê no qual carrega todos seus pertences, que normalmente consistem em velhos "France Soirs", trapos, latas, garrafas vazias, bonecas quebradas. — Esse vagabundo às vezes tem uma amante que o segue, a ele, ao seu cão e ao seu carrinho de bebê. — Os vagabundos de classe baixa nada têm, apenas sentam nas margens do Sena escarafunchando o nariz com dedos sujos e olhando para a torre Eiffel absortos.
Na Inglaterra os vagabundos falam com sotaque, isso os torna estranhos - não compreendem os vagabundos na Alemanha. — A América é a pátria da vagabundagem. O vagabundo americano Lou Jenkins, de Allentown Pennsylvânia foi entrevistado no Fred Bunz´s, na Bowery. — "Por quê cês tão afins de saber todas essas coisas?"
"Me parece que você foi um vagabundo que percorreu o país inteiro".
"E que tal pôr um vinhozinho na roda antes de começar a tagarelar?"
"Al, vai buscar um vinho."
"Onde é que isso vai sair, no "Daily News?"
"Não, num livro."
"O que uns moleques que nem vocês estão fazendo aqui? Cadê o trago?"
"Al deu uma chegada na venda. Ce quer um Thunderbird, não é?"
"Pode crê!"
Lou Jenkins então resolveu abusar - "Que tal uns trocados prum quarto essa noite?"
"Okay, nós só queremos lhe fazer umas perguntas, como por exemplo por que você se mandou de Allentown?"
"Minha mulher. - Minha mulher, - Nunca se case. Não dá pra segurar a barra. Você falou que isso vai sair num livro, êi, quê que eu to dizendo?"
"Vamos lá, conte algo sobre os vagabundos ou coisa parecida. - "
"Bem o que você quer saber sobre os vagabundos? Tem um monte por aqui, a barra anda pesada, ninguém tem grana - escuta, que tal um bom almoço?"
"Nos encontramos no Sagamore." (Respeitável lanchonete dos vagabundos, na esquina da Third com a Cooper Union)
"Legal, garotos, obrigado." Abriu a garrafa de Thunderbird com um cutucão experiente no selo plástico. — Glub, enquanto a lua nasce resplandecente como um rosa ele emborca tudo com enormes lábios feios, tão sedento que seria capaz de engolir a própria garganta, Sclup! E lá vai o trago goela abaixo e seus olhos - pop! - parecem saltar fora e ele passa a língua no lábio superior e diz — Ahhh! — E grita: "Não esquece que meu nome se escreve Jenkins, J-e-n-k-i-n-s.-"Outro tipo - "Você diz que se chama Ephram Freece de Pawling, Nova Iorque?"
"Bem, não, meu nome é James Russel Hubbard."
"Você parece muito respeitável para um vagabundo."
"É que meu avô foi coronel no Kentucky."
"É mesmo?"
"É, sim."
"O que te fez vir parar aqui na Third Avenue?"
"Olha, não saberia dizer, mas não me importa, já não fico mais de saco cheio, não ligo pra nada. Desculpe, mas é que... alguém roubou minha navalha de fazer barba na noite passada, se você me der uns trocados vou comprar um barbeador."
"E onde vai encontrar a tomada? Você tem essas comodidades?"
"Um barbeador a pilha."
"Ah!"
"E sempre trago esse livro comigo - As Regras de São Bento. Livro chato, mas tenho um outro na mochila. Acho que é chato também."
"Por que você os lê então?"
"Porque achei. - Encontrei eles lá em Bristol, no ano passado."
"Por que mais você se interessa? Você se interessa por alguma coisa?"
"Bem, aquele outro livro que tenho é, er, bem, ahn, é um livro bastante estranho - você não devia ficar me entrevistando. Fala com aquele negrão ali, tocando harmônica - Eu não presto pra nada, tudo o que quero é ser deixado em paz."
"Te vi fumando um cachimbo."
"Yeah! Tabaco Granger. Quer um pouco?"
"Posso dar uma olhada no livro?"
"Não, ele não ta aqui comigo, só tenho isso comigo." Aponta para o cachimbo e o fumo.
"Não quer dizer alguma coisa?""Relâmpago!"
O vagabundo americano será exterminado enquanto os xerifes continuarem agindo, como disse Louis Ferdinand Celine, com "Uma linha de crime e nove de tédio", pois já que não tem nada para fazer no meio da noite quando todo mundo está dormindo, resolvem ficar enchendo o saco do primeiro ser humano que vêem caminhando pelas ruas. - Embirram até com amantes na praia. Simplesmente não sabem o que fazer consigo próprios metidos naquelas viaturas. Policiais de cinco mil dólares com rádios estilo Dick Tracy, a não ser encherem o saco de tudo que se mova durante a noite e o dia e que pareça estar se movimentando independentemente de gasolina, eletricidade, Exército ou polícia. - Eu próprio fui um vagabundo mas me vi forçado a desistir ali por volta de 1956 por causa de um número casa vez maior de estórias televisuais com relação à repugnabilidade de mochileiros desconhecidos trilhando seu próprio caminho independentemente - Fui cercado por três radiopatrulhas em Tucson Arizona às duas da manhã enquanto caminhava com a mochila às costas para mergulhar num sono perfumado sob a lua rubra reluzindo no deserto:
"Aonde vai?"
"Dormir."
"Dormir onde?"
"Na areia."
"Por quê?"
"Tenho meu saco de dormir."
"Por quê?"
"Para estudar a vida ao ar livre."
"Quem é você? Deixe-me ver sua identidade.
"Acabei de passar o verão trabalhando no Serviço Florestal."
"Te pagaram?"
"Claro."
"Então por que não fica num hotel?"
"Prefiro o ar livre, e é grátis."
"Por quê?"
"Por que estou estudando o vagabundo."
"O que há de tão interessante nisso?"
Queriam uma explicação para minha vagabundagem e quase me encanaram mas fui sincero com eles e eles terminaram coçando a cabeça e dizendo: "Vai em frente se é isso que você quer." — Não foram capazes de me oferecer uma carona de seis quilômetros até o deserto. E o xerife de Cochise permitiu que eu dormisse na lama fria dos arredores de Bowie Arizona apenas porque não soube. Está acontecendo algo estranho, já não se pode ficar sozinho nem mesmo na vastidão primitiva (as tais de "áreas primitivas", como as chamam), há sempre um helicóptero bisbilhotando, a gente precisa se camuflar. — Então eles começam a pedir que observemos aeronaves estranhas, para avisar a Defesa Civil, como se soubéssemos a diferença entre estranhas aeronaves regulares e, outro tipo qualquer de aeronave estranha. — Pela parte que me toca, a única coisa que resta fazer é sentar-se num quarto e se embebedar e deixar pra lá a vagabundagem e as ambições campistas porque já não existe um só xerife ou vigia florestal em nenhum dos cinqüenta novos estados que lhe permita cozinhar uma comidinha sobre uma fogueira de gravetos em meio à mata espessa ou num vale escondido ou em qualquer outro lugar porque eles não têm nada a fazer senão azarar o que quer que seja que avistem se movimentando na paisagem independentemente de gasolina, eletricidade, guarnições policiais militares. — Não tenho nenhum interesse a defender: simplesmente vou para outro mundo. Ray Rademacher, um camarada que estava no asilo da Bowery, disse dia desses:
"Gostaria que as coisas fossem como eram no tempo em que meu pai era conhecido como Johnny, o Caminhante das White Montanhas. — Certa vez ele endireitou os ossos de um garoto que havia se acidentado em troca de uma refeição, e se mandou. Os franceses que moravam na vizinhança o chamavam de "Le Passante" (O que passa). Os vagabundos da América que ainda conseguem viajar de uma maneira saudável, mantêm-se em boa forma, podem se esconder em cemitérios e beber vinho refugiados em bosques de árvores fúnebres e dar belas mijadas e dormir em cima de pedaços de papelão e quebrar garrafas nas tumbas e não dar a menor bola nem se aterrorizar com os mortos, mas curtirem sob o manto da noite vasculhada por policiais e até se divertirem deixando restos de seu piquenique entre as lajes cinzentas da Morte Imaginada, amaldiçoando o que julgam ser dias duros, mas Oh, os vagabundos pobres dos bairros sórdidos! Lá está ele, dormindo num portal, com as costas contra a parede fria, cabeça caída, com a palma de sua mão direita para cima, como se esperando receber algo da noite, e a outra mão pendente, forte, firme, como as mãos de Joe Louis, patética, tornado trágico por circunstâncias inevitáveis - a mão como a de um mendigo, suspensa no ar com os dedos formando uma sugestão que revela o que ele deseja e merece receber, moldando o gesto da esmola, o polegar quase tocando na ponta dos dedos, como se na ponta da língua ele estivesse prestes a dizer, dormindo e com esse gesto, o que não pode dizer acordado: "Por que me tomam o que tenho direito, por que não posso respirar a paz e na suavidade da minha própria cama e sou obrigado a esperar aqui, nesses trapos anônimos e repugnantes, nesse portal humilhante, sentado à espera que as rodas da cidade se movimentem?" e mais, "não quero mostrar minha mão, mas durante o sono estou desamparado, não posso endireitá-la, aproveitem a oportunidade para verem minha súplica, estou sozinho, estou doente, estou morrendo — vejam minha mão virada, desvendem o segredo de meu coração humano, dêem-me o que preciso, dêem-me a mão, levem-me para as montanhas de esmeralda para lá da cidade, conduzam-me a um lugar seguro, me levem para onde tudo seja paz e amizade, para a vida familiar, minha mãe, meu pai, minha irmã, minha mulher e você, meu irmão, você, meu amigo — mas não há esperança, nenhuma esperança, eu seria capaz de acordar e dar um milhão de dólares para estar na minha própria cama — Oh Senhor, salve-me! — "Em estradas perversas atrás de tanques de gasolina onde cães assassinos rosnam por trás de cercas de arame farpado, viaturas policiais surgem subitamente como carros em fuga, tentando escapar de um crime mais secreto, mais nocivo do que as palavras possam exprimir.
As florestas estão cheias de guardas.