Um chá no Saara com Paul Bowles

Um chá no Saara com Paul Bowles 
(Leda Tenório da Motta entrevista Paul Bowles*)

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O escritor norte-americano Paul Bowles fala de sua vida no Marrocos, de sua obra e do contato com os "Beats"


Nascido em 30 de dezembro de 1910, nos Estados Unidos, o escritor Paul Bowles percorreu boa parte da literatura deste século. Participou, nos anos 20/30, da importante revista literária francesa "Transition", dirigida por Eugène Jolas. Foi ao Marrocos, onde mora há mais de 40 anos, pela primeira vez por indicação de Gertrude Stein, em companhia do compositor norte—americano Aaron Copland. Da viagem que fez pelo Saara entre 1934 e 1935 e das experiências com o "kif" (droga que marcaria sua vida e sua obra), escreveu entre 47 e 48 o livro "The Sheltering Sky", cuja primeira parte — "Tea in the Sahara" — inspirou o grupo de rock Police na composição de uma de suas músicas. Casou em 1938 com a escritora Jane Bowles (1917—1973) com quem viajou pelo México. Em 1948, ela o encontrou em Tânger, onde nos anos 50 o casal tornou—se o centro da vida literária local, recebendo escritores como Tennessee Williams, William Burroughs e os "beats" Alen Ginsberg e Jack Kerouac. Além de escritor, Bowles também é músico. Sua autobiografia, "Without Stopping", foi publicada em 1972 nos EUA. Esta entrevista foi realizada em fevereiro deste ano em Tânger.

Leda Tenório da Motta — O senhor é muito procurado aqui em Tânger, não? Há uma descoberta ou uma redescoberta do seu refúgio, e um "mito" Paul Bowles de que se fala cada vez mais.

Paul Bowles — Vem muita gente aqui, sim. Eu não sei que mito é esse, não sei se sou um mito. O que pode alguém saber de si mesmo?

Leda — E os escritores, não sabem de si?

Bowles — Menos ainda. Porque não se escreve na consciência de si mesmo. Eu sei bem que subconscientemente estamos sempre nos pondo no que escrevemos, mas quanto a se saber que se é... eu devo dizer que não me conheço, e muito menos o que se pensa de mim fora de Tânger, porque eu não saio nunca daqui.

Leda — Nunca?

Bowles — Faz 10 anos que eu não vou aos Estados Unidos. A última vez foi em... 1968.

Leda — O senhor não vai nem mesmo à Europa, aqui ao lado?

Bowles — Ao lado? Você quer dizer a Espanha? Não, desde... 1970, não. Em 1970 eu fui três vezes à Suíça, mas a outra parte de forma alguma.

Leda — O senhor disse que não sabe o que se pensa da sua pessoa no exterior. No entanto, num dos seus últimos livros publicados na França, as novelas reunidas sob o título "Le Scorpion", há um prefácio de Gore Vidal em que ele afirma que o que o Sr. escreve está entre tudo que se fez de melhor em matéria de literatura norte—americana.

Bowles — Gore Vidal é um velho amigo, eu sei que ele escreveu isso numa introdução... Eu não sei, se sou algo lendário para alguns, tanto melhor. Mas, na verdade, as lendas não existem, eu, sim.

Leda — Gore Vidal diz uma outra coisa sobre o senhor, que me parece mais interessante e que nos permitiria conversar um pouco, sobre literatura. Diz que o senhor escreve como se Melville não existisse.

Bowles — "Moby—Dick"? De fato, esse é um livro que eu nunca consegui ler, eu tentei anos a fio mas nunca fui além... deixe—me ver, das 100, 120 primeiras páginas. É místico demais para mim.

Leda — E os outros americanos?

Bowles — Há Poe... de Poe eu gosto. Mas, de maneira geral, prefiro os escritores da Europa.

Leda — Justamente, o que se lê sobre o senhor é que as suas referências literárias são francesas, André Gide, Raymond Roussel...

Bowles — Há muitos escritores franceses de que eu gosto. Roussel é engraçadíssimo, o que ele escreve é pura fantasia. Mas seria difícil ler tudo o que ele escreveu, e mais ainda receber influências desse tipo de obra... Ele tem um livro que é inteiramente em versos. Gosto do Gide também, e muito, mas não diria tampouco que tenha havido influência. Gosto de Thomas Mann, de Camus, de Sartre... e naturalmente de Borges.

Leda — O senhor reconheceria influências da parte de algum francês?

Bowles — Sim, acho que sim: Sartre. Veja bem, eu não poderia apontar com o dedo: isto é uma influência... Mas Sartre me impressionou terrivelmente antes de escrever meu primeiro romance, nos anos 40.

Leda — Essa influência sartriana se exerceu em que plano, no das idéias, já que se trata sobretudo de um pensador, ou no da literatura?

Bowles — Eu estou falando de literatura quando falo de Sartre. Mas o Sartre de antes da guerra, o Sartre de "O Muro" e "A Náusea", que são os seus melhores livros na minha opinião, os mais impressionantes. Depois da guerra, é verdade que ele se pôs a escrever demais.

Leda — É curioso: não se detecta no que o senhor escreve a culpa de Sartre, nem o tema da responsabilidade histórica. Tudo isso parece estar completamente fora do seu domínio ficcional, como está fora do de Borges, de quem o senhor gosta.

Bowles — Mas no caso de Sartre existe a guerra na França, o fato de ele ter sofrido por causa disso. Ele tem tudo para se sentir culpado... Muito embora eu me pergunte, às vezes, se essa culpa não viria do fato de que ele baseou o existencialismo em Karl Jaspers e em Heidegger, quer dizer, num pensamento terrivelmente alemão, não é? Sartre é alemão como filósofo, e eu acho que isto é bastante para despertar culpabilidade em qualquer francês.

Leda — Não só esses pontos estão fora do seu domínio ficcional como, bem ao contrário, há uma irresponsabilidade reivindicada por alguns dos seus personagens principais, um certo niilismo que consiste em olhar o mundo exterior a partir de uma distância, de uma isenção perfeitas. Eu estou pensando, por exemplo, no personagem da novela "Cold Point", publicada em "Le Scorpion", um professor que renuncia a ensinar, exila—se num país distante e se demite da educação do próprio filho.

Bowles — Realmente, ele não tem nada a ensinar, nada a transferir como conhecimento ou experiência, filosófica, ética... Ele não se sente obrigado a tal. Há uma espécie de recuo filosófico, logo político porque as duas coisas caminham juntas. Para mim, o escritor nada tem a dizer em matéria de política ou de filosofia. O Sartre que eu admiro não é o político, longe disto. Eu não entendo como um homem maduro como ele, inteligente, pôde aderir a certas posições depois dos anos 50. O que ele escrevia em 39 nada tinha de político, você leu "A Náusea"? É só um belo romance, e original, um romance que fala do seu tempo, como faz todo bom romance. Mas, por outro lado, eu me pergunto se isso pode ainda agradar às pessoas, se Sartre não lhes parece um tanto velho.

Leda — Parece realmente que Sartre caiu há algum tempo em desgraça.

Bowles — Isso acontece. Aliás aconteceu com Gide também. Quem o considera hoje seriamente?

Leda — Nós falamos de franceses e americanos. O senhor conhece os brasileiros?

Bowles — Justamente, estou lendo "Tocaia Grande", de um escritor chamado Jorge Amado, estou lendo em inglês.

Leda — O que está achando?

Bowles — Nada mal. Sente—se que é alguem que conhece o seu país.

Leda — Um bom escritor?

Bowles — ... Não, eu não diria isso. Diria que estou lendo um livro de... um homem simpático.

Leda — Este é um autor brasileiro de grande sucesso — ele está traduzido no mundo todo e é dos raros no Brasil que chegam a viver de direitos autorais. O senhor vive de direitos autorais?

Bowles — De jeito nenhum, como poderia eu? Teria que fazer coisas completamente diferentes do que faço, "best sellers", não é?

Leda — Mas parece que Bertolucci comprou os direitos autorais de um romance seu, para levá—lo ao cinema?

Bowles — Bertolucci esteve recentemente aqui, pouco antes de você. Ele está com os direitos do meu primeiro romance, "Let It Come Down", mas o filme ainda não está produzido e eu não tenho a menor idéia do pé em que estão as coisas.

Leda — Apesar de ser considerado pelos conhecedores como um grande escritor, o senhor é ainda bastante desconhecido, não?

Bowles — De maneira geral, sou.

Leda — Isto se deveria ao fato de o senhor viver aqui em Tânger, no norte da África, há tanto tempo, quase meio século?

Bowles — Certamente. Eu me afastei do meu país, nunca mais voltei para lá, hoje em dia nem sei o que se passa ali. Então é normal que não me conheçam. Se eu não me interesso pelos americanos, porque os americanos haveriam de estar interessados em mim?

Leda — Essa distância com relação ao seu país poderia ser vista como o recuo de que falávamos —como uma distância provocada?

Bowles — Não, não exatamente. O problema é que eu não gosto de voar, não gosto de avião. Como agora não há mais navios, eu não viajo mais. Antes eu viajava o tempo todo. Agora, de avião, muito obrigado. O que eu não gosto é da idéia da morte no avião, embora saiba que se morre mais nos carros. E apesar de ter viajado muito de avião no passado. Antes, eu não saía desses aparelhos, principalmente no México. Eu viajava por pequenas linhas... mas vi tantos acidentes, eu tenho experiências ridículas nesse sentido. Uma vez, estávamos sobrevoando o litoral mexicano, entre Guadalajara e Manzanillo. Eu era o único passageiro a bordo e quando estávamos para aterrissar em Manzanillo o piloto me disse: olhe parra baixo. E o que eu vi era indescritível: a pista de aterrissagem invadida por centenas de cavalos, o que nos impedia completamente de pousar. Fomos obrigados a voltar para o mar, até que os animais fossem tirados dali. Um choque com um só deles nos teria destruído. Uma outra vez, estava embarcando num avião da companhia Ermanos Panini e um funcionário me contou: há menos de uma semana, uma mãe com seus dois filhos embarcou aqui, como o senhor. Mas eles não tiveram volta. Minutos depois da decolagem, o avião caiu, e o funcionário me explicava: "todos carbonizados, senhor, carbonizados", insistindo na coisa, quase com alegria.

Leda — (risos) Uma companhia com esse nome não inspira muita confiança...

Bowles — Os mexicanos são assim mesmo, têm uma visão diferente da morte, não têm medo dela, é como se ela fizesse parte de existir.

Leda — Não têm medo da própria morte, ou da dos outros?

Bowles — Da própria morte. O que é uma boa coisa, eu por exemplo não conseguiria chegar a tanto. São seres religiosos, para quem a religião garante uma transitividade da morte para outra coisa. Mas eu nunca tive religião. Em casa, éramos todos livres—pensadores, meus avós, meus pais, não se cria em nada e eu pensava dentro de mim que as pessoas que precisavam da religião eram um tanto inferiores...

Leda — O senhor ainda pensa isso? Tornou—se religioso?

Bowles — Não, esta é uma coisa que não se adquire. Eu continuo não crendo em nada mas entendo que alguns possam precisar de religião. Os que chegam à religião tardiamente na verdade sempre precisaram dela, sempre precisaram de alguma coisa que não sabiam o que era.

Leda — Tem medo da morte?

Bowles — Da morte, não, só de morrer. Por isso preferia morrer em casa, sem alarde, sozinho.

Leda — Para tratar agora de um ponto bastante explorado pela imprensa e por certos editores europeus a seu respeito: haveria realmente uma influência sua sobre os escritores da "beat generation"? Eles o tinham como mestre?

Bowles — É uma coisa que se diz mas não é verdade. É falso porque os que dizem isso estão pensando numa influência literária. Ora, eu não vejo nenhuma possibilidade de aproximar a minha escrita da dos "beats", absolutamente nenhuma.

Leda — Haveria então uma ascendência espiritual?

Bowles — Nem isso, não vejo como , eu nunca fui um "beat".

Leda — Esses poetas, Corso, Ginsberg, Kerouac passaram por Tânger nos anos 50, e ficaram algum tempo. Eles vinham pelo país ou pelo senhor?

Bowles — Nem um nem outro. Na verdade, era uma peregrinação até William Burroughs. Burroughs viveu aqui anos a fio, foi aqui que eu o conheci. É com a obra de Burroughs que os "beats' têm a ver, com todo aquele experimentalismo que começa com ele. Burroughs tomava muita heroína na época, por isso estava incapacitado de organizar o que quer que fosse. Foi Ginsberg quem salvou os manuscritos que ficavam jogados no chão do quarto de Burroughs aqui em Tânger, um quarto onde ele não deixava ninguém entrar, nem a empregada, e que não era limpo nunca, onde restos de comida apodreciam, misturados com papéis... era infecto. Ginsberg não só recolheu os papéis mas pôs ordem neles, porque Burroughs não escrevia na ordem, não tinha idéia do começo nem do fim daquilo tudo.

Leda — Que texto era esse?

Bowles — "Naked Lunch". Foi graças ao trabalho de Ginsberg que esse livro aconteceu. Ginsberg levou o manuscrito para Paris e o publicou ali, em inglês. Nos Estados Unidos, logo depois, todos os exemplares foram recolhidos, foi um escândalo enorme, não era possível propor ao público americano algo de tão obsceno. Mas graças a esse mesmo escândalo, o livro acabou se tornando lícito.

Leda — Vocês americanos formavam aqui uma confraria literária, apesar das diferenças técnicas?

Bowles — Não. Ginsberg eu conheci aqui, mas os outros só fui encontrar muito mais tarde, nos Estados Unidos. O que prova que eles não vinham por mim, como se pretende, e que não havia aqui nenhuma escola americana. Isto é um mito inventado pelos franceses, ou pelos europeus.

Leda — (Eu mostro a Bowles um recorte de uma revista alemã recente, com fotografias suas tiradas em Tânger e um artigo com a menção constante às suas relações com os poetas "hippies"). O que acha disso?

Bowles — (Depois de percorrer o artigo) Pois é... há aqui outras inverdades além dessa. O autor diz que eu vivi mais de 40 anos na parte velha de Tânger, na medina. É completamente falso. Nós tínhamos realmente uma casa lá, que compramos em 1947. Mas demos essa casa para a empregada, ou melhor, a senhora deu—a à empregada (referindo—se a Jane Bowles, sua mulher, também escritora).

Leda — Burroughs era um "beat"?

Bowles — Sim, embora diga que não. Certamente, o que os "beats' escrevem só a eles pertence, mas não se pode negar que o que eles escreveram está moldado no que Burroughs escreveu, foi feito nos moldes de Burroughs, não nos meus.

Leda — Mas não haveria em comum, entre vocês todos, a recusa dos Estados Unidos, do sistema americano de vida?

Bowles — Sim, claro. Por razões diferentes, no entanto. Os "beats' conceberam esse ódio lá mesmo, ao passo que eu vivia aqui.

Leda — Não poderíamos pensar, então, que foi o senhor quem levou essa recusa às últimas consequências?

Bowles — Talvez, se levarmos em conta que eu nunca penso nos Estados Unidos. Os Estados Unidos são alguma coisa que me escapou, que... se evaporou!

Leda — Se eu falasse de uma outra família de escritores americanos, por perto da qual o senhor também passou, os escritores da "lost generation"? Como o senhor, eles foram à França: Gertrude Stein, Miller, Hemingway, Anais Nin. Haveria neste caso, mais que no dos "beats", a possibilidade de uma relação consigo?

Bowles — Não, eu não sei nem mesmo se se poderia falar em "família" neste caso. Gertrude Stein era a mais velha de todos nós, eu a conheci em Paris nos anos 20, achava—a muito inteligente e gostava dela, mas a via um pouco como uma avó. Quanto a Hemingway, nunca o conheci. Miller, eu iria encontrar muito mais tarde, na Califórnia. Anais Nin eu encontrei em Nova York, e devo dizer—lhe que não nos entendemos. Quando Jane, minha mulher, publicou seu romance, em 1943 ("Two Serious Ladies", traduzido como "Duas Damas bem Comportadas", L&PM, 1984), recebemos uma carta dela, de oito laudas, que não agradou nada a Jane. Anais Nin achava que era a melhor de nós todos, e por isso se permitiu dar alguns conselhos a Jane nessa carta, fazer uma lista de todos os defeitos do romance, o que deixou Jane furiosa. Infelizmente, a carta não foi guardada.

Leda — O que essa gente toda ia fazer em Paris: evitar os Estados Unidos?

Bowles — Não, não acredito. Eles iam para Paris porque ali era possível se viver melhor, com muito menos dinheiro. Por outro lado, tinham em Paris uma liberdade que não existia nos Estados Unidos, por causa do puritanismo ambiente. A vida em Nova York não era muito alegre na época. Aliás imagino que não seja nem hoje.

Leda — Os franceses pensam o contrário, pelo menos uma parte deles. Sair hoje de Paris para Nova York é entrar num mundo mais criativo porque com mais recursos, na cena mesma da modernidade mais avançada —das artes plásticas à literatura, passando pela música. O senhor que é músico também, o que acha disso?

Bowles — Eu não sei, eu me pergunto... Eu componho ainda, mas cada vez menos. Agora, em abril, vão ser apresentadas composições minhas num festival em Nice. Então, para mim, as coisas continuam acontecendo na Europa.

Leda — Que tipo de música, o senhor faz?

Bowles — Clássica. Mas moderna. Mas é difícil catalogar, departamentalizar.

Leda — O senhor se diz sempre um "clássico". O que é ser um clássico, hoje.

Bowles — Eu acredito que sou um contemporâneo pelos meus conteúdos, mais do que pelas minhas formas. Porque vivo o meu tempo e o mostro como ele é: sem começo, sem fim e sobretudo sem que haja uma razão para se estar aqui. Trata—se disto, toda obra é moderna, sem necessidade de inovações formais. Toda criação séria é contemporânea. Eu acho que muita força se perde na maior parte dos experimentalismos, e por isso prefiro ser um clássico, o que não significa um anacronismo. Eu não gosto de "Finnegan's Wake", por exemplo, como não gosto de "Moby—Dick": porque não é possível ler esses livros.

Leda — O seu "classicismo" não parece impedi—lo de coincidir tematicamente com escritores que representam uma ultra—modernidade, escritores como os americanos Patricia Highsmith e Sam Sheppard, ou o alemão Peter Handke. Escritores do exílio interior, da deriva, da não—identidade.

Bowles — Highsmith é uma velha amiga de Nova York, eu a conheci há 50 anos. Sam Sheppard eu não conheço por inteiro, Handke também não, embora os tenha lido. Mas repito que esses aspectos que você levanta, esses temas não poderiam senão estar presentes no que se escreve contemporaneamente, sobretudo se se escreve seriamente.

Leda — Há um sentimento estranhado do desastre em tudo o que o senhor escreve. Os seus personagens de "Let It Come Down", de "The Sheltering Sky"... estão sempre desembarcando em outro lugar, e as coisas só fazem piorar para eles.

Bowles — Esse é o mundo como eu o vejo, o mundo na exata medida em que incomoda.

Leda — O que o incomoda exatamente no mundo que aí está?

Bowles — Tudo, tudo me incomoda.

Leda — E o lado idílico do Marrocos? Há um personagem seu em "Let it Come Down" que afirma que, não conhecendo o desenvolvimento urbano, Tânger não conhece o sofrimento, e jamais o conhecerá.

Bowles — Quem diz isso é a personagem escritora, Eunice Good, e não eu. Eu só escrevi isso para mostrar que a sua profecia não deu certo. Tânger, quando nós chegamos, restringia—se à parte velha, às casas da medina, e a um ou dois bulevares, como o bulevar Pasteur. Hoje é uma cidade perfeitamente urbanizada — não é? — com reclames de Coca—Cola. Já não há mais aqui o que preservar.

Leda — (risos) Em alguma outra parte, o senhor escreve sobre o que chama o "caráter indefinível da clandestinidade do lugar". Pode—se estar aqui clandestino? E por que vir tão longe, quando se é perfeitamente anônimo em Paris ou se nenhum vizinho nos conhece? Gertrude Stein não era anônima?

Bowles — (Mais risos) Acho difícil. Ela recebia tanta gente que não se poderia dizer que passava despercebida...

Leda — Tânger lhe permitiu confrontar—se com o americano que o senhor carrega, isso fica claro em quase todas as suas novelas e romances. E o outro lado disto: a confrontação dos nativos com o Outro que o americano representa?

Bowles — Não há esse confronto, porque eu estou consciente deles, mas não eles de mim. Pelo contrário, os marroquinos, os muçulmanos tendem a ver o estrangeiro como uma vítima, como inferior, porque ele não é muçulmano justamente. Você pode perceber isto aqui através de uma série de ditos populares, que deixam mais ou menos claro o que o cristão é para o muçulmano... Algo assim como a formiga para o inseto.

Leda — O integrismo o incomoda?

Bowles — Incomoda, na medida em que é como.... uma volta a Hitler. Mas não é um problema que me diga respeito naturalmente.

Leda — A "língua gutural" a que o senhor se refere às vezes, o árabe lhe agrada?

Bowles — A língua gutural de que eu falo não é o árabe, é o berbere. Não, ela não é bonita. O árabe sim é uma bela língua, nada gutural, cheia de vogais. Ao passo que o marroquino é uma mistura de berbere e de árabe, não é o verdadeiro árabe, nem o berbere propriamente. O que é lastimável é que o árabe é o que menos se ouve aqui. Eu só ouço o árabe clássico quando ele vem dos minaretes, nas orações ou dos rádios.

Leda — Eu ainda teria muito a perguntar. Por exemplo, se o senhor leu o último livro póstumo de Roland Barthes, que trata do Marrocos, ou se o senhor gosta do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, que ganhou este ano o Goncourt francês...

Bowles — Não, eu não li o livro de Barthes, não sabia sequer da sua existência. Quanto a Ben Jelloun, confesso que não sou um admirador da sua obra. Além do que, não o aprecio pessoalmente, por causa de artigos no "Le Monde", em que me acusa de ser um neo—colonialista. Simplesmente não entendo como se possa extrair essa idéia do que eu escrevo.

Leda — Isto vai ficar registrado aqui, como um convite aos que não o conhecem para que o leiam. Terminamos por aqui?

Bowles — (Aliviado) "Graças a Dios".

 

*Folhetim — Folha de S. Paulo 17 jun. / 1988. Entrevista realizada e traduzida por Leda Tenório da Motta.

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